A vida de um pipoqueiro e a competência para ler e escrever

Ao coletar com os alunos a história de vida do pipoqueiro, “Seu Roque”, a professora de uma escola pública ajudou a ampliar horizontes, reforçou laços com a comunidade, proporcionou momentos de prazer e contribuiu com o desenvolvimento de novas competências das crianças
Arquivo Museu da Pessoa

Arquivo Museu da Pessoa

Duas ações simples e óbvias que, conjugadas, têm o poder de introduzir inovações pedagógicas que contribuem para uma educação pública de qualidade e para uma sociedade mais democrática. De um lado, a busca e o registro de histórias de vida; de outro, ler e escrever na escola com sentido e significado. Surgiu assim, há 10 anos, o Programa Memória Local na Escola, fruto da parceria entre o Museu da Pessoa (ver texto abaixo), que se dedica a coletar, registrar e disseminar histórias de vida, e o Instituto Avisa Lá, organização não governamental que trabalha com formação de profissionais de educação para o desenvolvimento de competências leitoras e escritoras dos alunos.

“Pertencemos a um grupo não apenas porque nele nascemos, não porque professemos pertencer, nem finalmente porque a ele prestamos nossa lealdade e obediência, mas principal mente porque vemos o mundo e certas coisas no mundo do mesmo modo que o grupo os vê…”1

Todo ser humano, anônimo ou célebre, tem o direito de eternizar e integrar sua história à memória social.

Apresentação
Fundado em São Paulo em 1991, o Museu da Pessoa atua para registrar, preservar e transformar em informação histórias de pessoas e grupos de toda a sociedade. Sua missão é ser um museu virtual, aberto e colaborativo, que transforma histórias de vida de toda e qualquer pessoa em fonte de conhecimento, compreensão e conexão entre pessoas e povos. Por meio de metodologias próprias capta, organiza e edita conteúdos disseminados em publicações, programas de rádio, TV, exposições e no portal www.museudapessoa.net. Nesse período, inspirou a criação de 3 museus similares fora do Brasil (Canadá, Estados Unidos da América e Portugal), articulou uma rede de memória voltada para o desenvolvimento cultural e social do País, lidera campanhas nacionais e internacionais para a valorização de histórias de vida e sistematiza e dissemina sua metodologia para escolas.

Atualmente, o Museu da Pessoa tem um acervo único com cerca de 14 mil histórias, que narram a história do Brasil nos últimos 100 anos. São 200 projetos realizados, 46 livros publicados e uma média de 480 mil visitantes únicos por ano no portal.

Ler e escrever para fazer o dever, para passar na prova, para fazer o vestibular tem sido, desde muito tempo, os imperativos que parecem condenar o trabalho com leitura e escrita na escola a um empobrecimento fatal. As dimensões políticas, sociais e culturais, o prazer e os sentidos que a palavra escrita pode proporcionar aos alunos precisam ser recuperados no dia a dia da sala de aula.

O domínio da palavra escrita é um direito dos cidadãos do mundo contemporâneo; influencia as relações entre as pessoas, o trabalho os modos de produção, a capacidade de ouvir e de estabelecer diálogos. Mas para que haja a apropriação da escrita é necessário que as atividades escolares façam sentido para os alunos. Ao recolher histórias de vida de pessoas da sua comunidade para registrá-las pela escrita e por meio do desenho, os estudantes se envolvem de forma afetiva e pedagógica em uma produção que transcende os muros da escola. História de vida, ler e escrever bem se casam perfeitamente quando se busca sentido nas atividades escolares.

Moradores da cidade visitam a exposição   dos trabalhos realizados durante o projeto (arquivo Museu da Pessoa)

Moradores da cidade visitam a exposição dos trabalhos realizados durante o projeto (arquivo Museu da Pessoa)

Por que memória oral na escola?
Cada sociedade possui um repertório referente àquilo que conhece. Cada sociedade também tem determinada forma de sistematizar e transmitir esse saber. A escola, em nossa sociedade, é certamente o lugar onde esse conhecimento oficial é acumulado e difundido. Na escola, a História é a disciplina que mais cumpre essa função. Por meio dos conteúdos transmitidos e repetidos ao longo dos anos, os alunos vão incorporando sistemas de pensamento, valores e constituindo uma memória comum. Por mais que acreditemos que os conteúdos referem-se ao passado, as narrativas históricas escolares são formas de moldar o presente, de criar, além de uma memória coletiva, o sentido de pertencimento e coesão social.

Assim, a escola é o ambiente mais adequado para se construir novas percepções da sociedade e se trabalhar a construção e a transformação de valores que perpetuam e/ou mudam a dinâmica social. Mas que valores e percepções um programa como esse pode transformar?

As narrativas de vida resultam das formas com que cada indivíduo articula e dá significado às suas experiências. São, nesse sentido, um ponto de encontro entre o tempo histórico comum e a singularidade de cada um. A entrevista a uma única pessoa, realizada na escola por um grupo de alunos, provoca uma conexão bastante profunda entre entrevistadores e o entrevistado. Ao longo desses anos não paramos de nos maravilhar com os inúmeros desdobramentos que esse contato – a entrevista – provoca nos alunos, professores e em toda a comunidade. A seguir, alguns desses principais impactos:

  • Conexão intergeracional: quando uma pessoa idosa (muitas vezes o convidado é alguém mais velho da comunidade) retoma sua própria vida, ao ser estimulada pelas perguntas dos alunos, torna-se outra pessoa para seus interlocutores. Torna-se uma PESSOA. Os sonhos de infância, as brincadeiras, os castigos escolares, a cidade, e todas as experiências narradas levam os alunos, de forma lúdica, a descobrirem as transformações no tempo. Cria um interesse real pela pessoa e transforma seus olhares sobre outras gerações.
  • Revisão do fazer histórico: os personagens históricos tradicionais apresentados na escola são seres distantes e abstratos. Presentes em nomes de rua, nomes de escolas e nas narrativas dos livros didáticos, tornam-se quase objetos inanimados. A experiência de descobrir a história de um lugar por meio da escuta de uma pessoa comum é altamente reveladora. Traz a história para o presente e transforma os alunos e professores em autores de novas narrativas históricas. Torna-os produtores de conteúdo e faz com que o entorno e as pessoas que o compõem (incluindo os membros da própria família) sejam valorizados. Essa percepção muda o olhar que a escola tem acerca de sua comunidade e transforma os alunos, que percebem novas formas de construir as memórias de seu entorno.
  • Democratização da memória e o valor das pessoas: quando começamos o projeto, encontramos uma série de iniciativas de registro de histórias muito interessantes nas escolas. Inúmeras festas populares eram pesquisadas, e as entrevistas com personagens da sociedade local que dominavam esses saberes, em muitos lugares, era uma prática adotada por professores. No entanto, o Programa Memória Local na Escola tem o firme propósito de fazer com que alunos e professores percebam e valorizem as histórias das pessoas, independente das categorias que elas possam representar socialmente. As pessoas não são apenas informantes ou representantes de fatos, festas, saberes. A transformação se dá quando se consegue olhar o outro por si mesmo. Perceber o que ele tem de único e descobrir como ele vive e dá significado à sua condição social e ao seu tempo histórico. Por isso, cada turma entrevista UMA ÚNICA pessoa. Por isso, os roteiros de perguntas são construídos com base nas curiosidades das crianças e com o firme propósito de serem “roteiros de viagem”. Uma “viagem” pela vida e pelo olhar do outro. Isso modifica o olhar. Isso amplia o respeito e provoca a curiosidade, qualidade valiosa que deve ser estimulada na escola.

Por isso, memória oral na escola é um programa que transcende a própria disciplina História e as demais práticas pedagógicas. É um programa que tem o potencial de TRANSFORMAR valores de todos aqueles que compõem a comunidade escolar.

Crianças apresentam os livros artesanais produzidos (arquivo Museu da Pessoa)

Crianças apresentam os livros artesanais produzidos (arquivo Museu da Pessoa)

A metodologia conjunta
Para duas organizações sociais com trajetórias exitosas e reconhecidas saírem da zona de conforto e criarem conjuntamente uma metodologia de ação, não foi tarefa simples. Em breve análise de trajetória da criação da metodologia é possível destacar pontos relevantes no processo:

  • As duas instituições possuíam um consistente e bem fundamentado objetivo de contribuir para a transformação social, visando a uma sociedade mais justa e igualitária.
  • O objetivo de contribuir com uma escola de qualidade e a vontade de propor inovações pedagógicas estiveram presentes desde o início, assim como apoiar uma relação diferenciada com a comunidade.
  • A articulação entre diferentes parceiros – empresas, organizações não governamentais e poder público local, no caso, as Secretarias de Educação – provou fortalecer as ações locais, dar continuidade e escala ao trabalho.

(Karen Worcman, diretora-presidente do Museu da Pessoa e Silvia Pereira de Carvalho, coordenadora executiva do Instituto Avisa Lá, ambos em São Paulo – SP)

1Ideologia e utopia, de Karl Manheim. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p.49. Tel.: (21) 2529-47-50. Site: www.zahar.com.br

Pipoqueiro em Indaiatuba
Para ajudar o marido, Dona Zenita começou a costurar para fora; fazia roupas e consertos. Seu Roque trabalhou como segurança em várias firmas na cidade de Indaiatuba, em São Paulo. Ele se aposentou aos 43 anos na firma Singer, fábrica de agulhas. Com o dinheiro que recebeu do Fundo de Garantia, resolveu comprar um carrinho de pipocas. Sua esposa não gostou muito, pois não achava garantido, mas ele insistiu. Porém, foi com o dinheiro da pipoca vendida nos portões de escolas que sua vida mudou. Com esse dinheiro, ele garantiu inclusive a faculdade dos filhos Eugênio, formado em Engenharia Eletrônica, e da filha, graduada em Pedagogia.

As crianças o chamavam de “tio” ou “seu Zé”. Todas gostavam dele, especialmente pela simplicidade e bondade. Quando alguma criança estava sem nenhum dinheirinho, mas queria alguma coisa, ele sempre dava uma balinha ou um docinho para fazer a alegria da garotada. Durante 15 anos, vendeu pipocas, doces e balinhas. Ele conta que o segredo da pipoca salgada é ela estar quentinha, daí todo mundo compra. Já com a pipoca doce, o segredo é outro, até hoje guardado consigo.

(Texto elaborado pelas crianças durante o Programa Memória Local na Escola)

Memória Local na Escola

Painel realizado pelo artista Renato Theoblado a partir dos trabalhos desenvolvidos pelas crianças durante o programa (arquivo Museu da Pessoa)

Painel realizado pelo artista Renato Theoblado a partir dos
trabalhos desenvolvidos pelas crianças durante o programa (arquivo Museu da Pessoa)

O Programa Memória Local na Escola é uma ação de formação de professores para o registro da memória de comunidades, envolvendo os alunos na captação e na escrita das histórias dos moradores dos municípios por meio da metodologia de registro da memória oral. Ao ouvir, escrever, desenhar e recontar histórias de vida, as crianças têm a oportunidade de se tornarem agentes de história de sua cidade.

É realizado pelo Museu da Pessoa e Instituto Avisa Lá, desenvolvido junto às escolas das redes públicas do Ensino Fundamental de diferentes estados brasileiros, em parceira com secretarias municipais de educação e de assistência social, e secretarias estaduais de ensino, e conta com o patrocínio de empresas e institutos privados, alguns por meio da Lei Rouanet1.

O objetivo do Programa é registrar a memória de comunidades, envolvendo os alunos no resgate das histórias dos municípios por meio da técnica de memória oral, especialidade do Museu da Pessoa. Ao ouvirem, representarem, reproduzirem e recontarem histórias de vida, as crianças têm a oportunidade de estreitar as relações humanas na comunidade, com ênfase em cidadania e na valorização do cidadão comum. Ao registrarem, por meio da escrita em papel e na internet, as histórias coletadas, importantes aprendizagens ligadas à leitura, escrita e oralidade acontecem.

1A Lei no 8.313, de 1991, mais conhecida como Lei Rouanet, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que canaliza recursos para o desenvolvimento do setor cultural, com a finalidade de: estimular a produção, a distribuição e o acesso aos produtos culturais, proteger e conservar o patrimônio histórico e artístico; estimular a difusão da cultura brasileira. Site: www.cultura.gov.br

Memórias de Jovens e Adultos

Quais as histórias, experiências, expectativas, intenções, dúvidas e conquistas dos alunos que se matriculam em Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Quais são as relações estabelecidas entre aquilo que lhes é ensinado, que lembranças evocam, que conhecimentos acessam?

Não basta apenas saber que essas pessoas, por diferentes motivos, não puderam concluir a escolaridade e, por isso, retornaram aos bancos das salas de aula. É preciso atentar às singularidades desse público, pensando em práticas que contemplem as suas necessidades e não sejam apenas mera adaptação dos assuntos tratados com as crianças.

O Programa Memória Local na Escola – EJA, iniciado em Paulínia (2010) e em São Bernardo do Campo (2011), ambos municípios do estado de São Paulo, propõe o exercício de práticas sociais de leitura e escrita para realizar a divulgação das histórias de vida dos alunos e da comunidade. Ao colocar os alunos como protagonistas das narrativas que escrevem, o programa dá sentido ao aprendizado e torna os textos escritos instrumentos para compartilhar experiências de vida e saberes acerca da língua e da linguagem.

Relato produzido por aluno do EJA

Relato produzido por aluno do EJA (arquivo Museu da Pessoa)

A construção compartilhada desse projeto pedagógico tem como principais objetivos: tornar a memória dessas pessoas uma referência na prática pedagógica e social da escola; potencializar a aprendizagem da leitura, da escrita e do desenho ao se valorizar o conhecimento dos alunos e da comunidade como saberes que se integram às práticas escolares. Ao ouvirem, representarem e recontarem histórias de vida, os alunos entram em contato com as próprias memórias e as de seus pares, ressignificando e estreitando as relações interpessoais no ambiente da escola. A identificação com esse lugar e a formação de laços afetivos fortalecem o sentimento de pertencimento dos alunos da EJA à sua escola, contribuindo com o seu processo de aprendizagem.

Ao mesmo tempo, os educadores têm a oportunidade de conhecer melhor quem são esses alunos que cotidianamente constroem a história de sua comunidade. Que memórias revelam seus modos de ser, ver e criar o mundo? Quais são suas experiências, desejos e preocupações? Com isso, o registro e a divulgação de histórias de pessoas da comunidade podem expressar uma diversidade de experiências de vida que contribuem para a valorização da cultura local.

No que se refere aos objetivos gerais e conteúdos principais, o projeto desenvolvido com o primeiro segmento do Ensino Fundamental em EJA é similar ao do ensino regular. Quanto à metodologia do trabalho, no entanto, há uma diferença com os alunos jovens e adultos, na medida em que trabalham a partir das próprias histórias de vida produzidas por meio da realização da Roda de Histórias. As etapas do projeto nesse contexto Logo que iniciamos os encontros de formação com os grupos de educadores e grupos de alunos, apresentamos a concepção de história e memória sobre a qual nos baseamos, além dos propósitos e das etapas do projeto que implicam novo olhar sobre o conceito de história por meio do registro de histórias de vida de pessoas da comunidade local.

No caso dos alunos de EJA, em sua grande maioria trabalhadores, a história da comunidade local também é fruto de suas ações. Diante de nossa proposta, em Paulínia, os professores levantaram a hipótese de que provavelmente encontraríamos resistência entre os alunos, já que teriam uma expectativa de escola tradicional, valorizando a “lousa cheia” e muitos exercícios de cópia, e de que desenhar e escrever histórias poderiam ser ações encaradas como perda de tempo. Também se mostraram preocupados com a pouca autonomia dos alunos para escrever textos. Em São Bernardo do Campo, a preocupação maior esteve relacionada à produção de desenhos, o que poderia ser visto como uma atividade ligada apenas ao universo infantil.

Apesar dessas expectativas iniciais, quando a proposta foi apresentada nas salas de aula1, a ideia de contar suas histórias para outras pessoas fez com que os alunos se sentissem valorizados e a recepção geral foi muito positiva. Considerando o contexto de EJA, as ações de registro, organização, edição e socialização das histórias de vida da comunidade local foram realizadas com as histórias dos próprios alunos, encontrando espaço para a socialização das memórias de todos os que se envolveram no projeto.

As rodas de histórias
Desenvolvemos o trabalho e muitas histórias foram contadas em diferentes rodas: roda de história do nome, de um objeto, roda de história da foto, de um episódio vivido2. De modo geral, os grupos trabalharam com a sequência de rodas descrita a seguir, considerando que cada grupo buscou adequar a proposta às suas condições específicas.

A primeira roda realizou-se com a história do nome de cada um, quando contaram e ouviram a história das pessoas do grupo e começaram a relacionar as memórias individuais com a memória coletiva. Essa atividade proporcionou boa interação e descontração no grupo: quase todos quiseram falar, tinham muitas lembranças para contar e vários momentos renderam boas risadas. Após a finalização da roda, os alunos escreveram seus nomes de diferentes maneiras.

Depois, com a realização da roda de histórias da foto3, perceberam a importância do registro escrito e da imagem como fontes históricas. Com a roda de histórias, a partir de objetos importantes para eles, viram a diferença entre os objetos de status e os objetos biográficos. Na realização da roda de histórias, em que cada participante escolheria um episódio de sua vida para compartilhar com o grupo, compreenderam que qualquer tema tem relevância, desde que haja um significado importante para a pessoa naquele momento. Contaram como cada um deles sentiu e viveu aquele acontecimento, como foram afetados por ele e como viam a si mesmos inseridos nessa situação. Contaram suas histórias de vida, suas dificuldades, esperanças e aspirações.

Ao falarem das próprias experiências e ao ouvirem os relatos com temas comuns a todos, como origem, migração, trabalho etc., foram percebendo que, apesar das diferenças individuais, todas as histórias têm pontos e situações comuns ao coletivo.

Nesse sentido, perceberam que os aspectos singulares de cada história, somados às outras, formam uma história coletiva, com significados mais amplos – sociais, políticos e culturais –, o que permite maior interação nesses contextos.

Desenho e relato produzido por aluno do EJA (arquivo Museu da Pessoa)

Desenho e relato produzido por aluno do EJA (arquivo Museu da Pessoa)

O registro e a socialização das histórias
Mas como fazer para que registrassem as histórias relatadas? Como escolher um trecho da própria história de vida para torná-lo público, pensando nos diferentes sentidos que cada relato pode ter para cada pessoa com a qual será compartilhado, seja divertindo, emocionando, informando, provocando – essencialmente, promovendo um novo olhar sobre o processo histórico que nos humaniza?

Em Paulínia, pensamos nos desenhos como expressão gráfica e na legenda como um bom texto para que avançassem no trabalho. As propostas de desenho (autorretrato e desenho de uma cena da história – desenho de observação e desenho de memória) pautaram-se no uso da técnica mista: colagem, pintura, recortes, o que ajudou a superarem a inibição com a produção artística. Os alunos escreveram legendas para os desenhos de cenas narradas por eles nas rodas e para fotos e autorretratos, trabalhando em duplas produtivas. Propusemos também a escrita coletiva de um texto que contasse a história do grupo naquele projeto, sendo a professora a escriba. No caso de São Bernardo do Campo, os alunos trabalharam de maneira parecida e finalizaram com a produção de cartões-postais, que continham textos curtos e desenhos que expressavam a essência de cada história contada.

As experiências do projeto no contexto de EJA resultaram belíssimas exposições que revelaram o potencial do desenvolvimento do projeto nessa modalidade de ensino e colocaram em evidência os saberes daquelas pessoas e comunidades. Também incentivamos o uso do ambiente virtual para a socialização das histórias de vida produzidas pelos alunos no portal do Museu da Pessoa. O registro dessas histórias por meio das legendas e dos textos dos cartões-postais, acompanhados de desenhos, implica um processo de reflexão e transformação nas experiências de aprendizagem dos alunos. Em outras palavras, esses registros revelaram acontecimentos que formam cada uma daquelas pessoas e relações individuais e coletivas que movimentam a história.

1A roda de história da foto é uma atividade de captação de histórias utilizada pelo Museu da Pessoa. Organizadas em roda, as pessoas escolhem uma foto pessoal e compartilham a história da foto com o grupo.

2Em ambos os municípios, realizamos o projeto de formação com grupos de educadores, mas em Paulínia também trabalhamos diretamente com duas turmas de alunos observadas como referência para o desenvolvimento das etapas do projeto.

3São atividades de memória diferentes com base na metodologia do Museu da Pessoa.

(Cinthia Manzano e Maria Paula Gennari Twiaschor, formadoras do Instituto Avisa Lá e Marcia Trezza, formadora do Museu da Pessoa, ambos em São Paulo – SP)

Produtos e processos do Programa Memória Local

Por meio de exposições, revistas, calendários, livros e outros suportes, projeto valoriza a história dos entrevistados e o trabalho dos alunos e professores

O trabalho com projetos didáticos em educação envolve sempre confecção e socialização de produtos finais. No Programa Memória Local, a elaboração dos produtos abrange várias esferas. Com as crianças, há um produto compartilhado em sala de aula, que é a confecção de um livro artesanal sobre a história de vida do depoente ou sobre o processo da classe durante o programa – as atividades realizadas, os livros lidos, a preparação e a execução da entrevista. Ao compartilhar a realização desse produto, as situações sequenciadas que constituem os projetos didáticos de leitura e escrita tornam-se práticas contextualizadas, que equilibram propósitos didáticos (por quê escrevem) e propósitos comunicativos (para quem escrevem). Ao longo do ano, as crianças desenham, leem e escrevem muito nas atividades do Memória Local e têm a clareza de que todas essas atividades culminam na produção caprichada de um livro. Desde o início do trabalho, os alunos têm clareza da finalidade de suas produções e de quem será o leitor de seus textos.

Arquivo Museu da Pessoa

Arquivo Museu da Pessoa

Esse produto circula entre as classes e geralmente tem como destino final a biblioteca da escola. Sabemos que a confecção desse produto tem início desde o primeiro dia de atividade com as crianças e que envolve sempre boas referências apresentadas pelo formador e pelo professor, levando livros com textos, imagens e projetos gráficos de ótima qualidade, que possam servir como inspiração para os alunos fazerem seu próprio livro.

Além do livro feito com os alunos, há também a preocupação de que os produtos do Programa Memória Local, que mantém diálogo estreito com a comunidade e sua história, possam alcançar mais leitores, devolvendo-lhes parte da história da cidade. Dessa maneira, desde o início, pensamos em como realizar produtos que circulem não só pela escola, mas também pelas mãos de diversas pessoas da sociedade. No primeiro ano do programa, propomos uma grande exposição em local público (praças, centros de convivência, espaços culturais). Para essa exposição, contamos com o trabalho do artista Renato Theobaldo e sua equipe que, partindo dos desenhos e textos de legendas sobre as imagens e cenas relatadas pelo entrevistado, propõem uma releitura desse trabalho feito em sala de aula, valorizando diante da comunidade tanto a história do entrevistado como a produção dos alunos e o trabalho do professor. Essas exposições são um sucesso! Todos ficam emocionados e sentem-se valorizados; as crianças e os professores ficam orgulhosos do trabalho e a comunidade, curiosa quanto às muitas histórias de pessoas até então desconhecidas.

Outros produtos
No caso de o programa chegar ao segundo ano, mantemos o produto compartilhado com as crianças, já que serão novas salas envolvidas, mas propomos outro tipo de produto voltado para a comunidade. Inicialmente, produzíamos um livro sobre as memórias dos depoentes. A elaboração desse livro tinha o objetivo de agregar e relacionar trechos de histórias de vida da comunidade, que teciam a memória local. Foi assim com as cidades de Itapeva e Votorantim, e com o bairro de São Miguel Paulista, em São Paulo, em 2007, e com Juiz de Fora, em Minas Gerais, em 2008. A circulação desses livros incluía escolas das regiões, secretarias, centros culturais e bibliotecas.

Em 2009, as cidades paulistas Indaiatuba, Belmiro Braga e Santo André receberam o jogo Onde está a História?, que envolvia desenhos e trechos das histórias de vida dos entrevistados dessas cidades, num produto elaborado de maneira que as crianças pudessem usá-lo de forma lúdica Em 2010, as equipes técnicas das cidades e os professores envolvidos no programa escolhiam o que desejavam como produto final a ser compartilhado com a comunidade. São Bernardo, por exemplo, optou por um belo calendário em que se pudesse divulgar em locais variados (centros de saúde, bibliotecas, escolas, hospitais públicos) não só o Programa Memória Local como também a própria educação de jovens e adultos. Indaiatuba aproveitou a existência de uma revista que circula regularmente pela cidade para divulgar as histórias de vida de alguns moradores; assim nasceu Indaiatuba em Revista: olhares para a cidade e seus moradores.

Para a conclusão do segundo ano de trabalho, realizamos também um seminário com os professores, coordenadores e demais profissionais envolvidos no programa. Nesse momento, são lançados os produtos – livros, calendário, revista, jogo. Em 2010, realizou-se uma divertida oficina para os professores de Belmiro Braga, Indaiatuba e Santo André, em que todos aprenderam como se jogava o Onde está a História? e discutiram as possibilidades de uso desse produto. Esse jogo tem sido uma das atividades inseridas no Programa Memória Local.

Jogo Onde está a História? – Produto final das cidades paulistas de Belmiro Braga, Indaiatuba e Santo André

Jogo Onde está a História? – Produto final das cidades paulistas de Belmiro Braga, Indaiatuba e Santo André

Ficha Técnica

  • Programa Memória Local na Escola
    Municípios beneficiados: No estado de Minas Gerais: Belmiro Braga, Belo Horizonte, Ituiutaba, Juiz de Fora, Uberlândia e Uberaba. No estado do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro. No estado de São Paulo: Apiaí, Campinas, Franca, Indaiatuba, Itapeva, Paulínia, Ribeirão Preto, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo, São Paulo, Sorocaba e Votorantim. No estado do Rio Grande do Sul: Guaíba.
    Patrocinadores: Companhia de Telecomunicações do Brasil Central, Instituto Algar, Instituto Rhodia, Instituto Pão de Açúcar, Fundação Toyota do Brasil, Instituto Votorantim e Heding-Griffo.
    Parceiros: Secretarias Municipais de Educação, Diretorias de Ensino, Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo).
  • Museu da Pessoa
    Endereço: Rua Natingui, 1100 – Vila Madalena – São Paulo – SP – CEP: 05403-002
    Tel.: (11) 2144-7150
    E-mail: portal@museudapessoa.net
    Site: www.museudapessoa.net
  • Praxinoscópio
    Artista: Re nato Theobaldo
    Endereço: Rua Prof. Marcondes Domingues, 256 – Parada Inglesa – São Paulo – SP – CEP 02245-010
    Tel.: (11) 2212-0599
    E-mail: praxinoscopio@uol.com.br
    Site: www.praxinoscopio.com

Para saber mais

  • Culturas híbridas, de Néstor Garcia Canlini. São Paulo: EDUSP, 4a ed. 2008. Tel.: (11) 3091-4008. Site: www.edusp.com.br
  • Ensaios de história oral, de Alessandro Portelli. São Paulo: Letra e Voz, 2010. Tel.: (11) 3042-3381. Site: www.letraevoz.com.br
  • A voz do passado: história oral, de Paul Thompson. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Tel.: (11) 3337-8399.Site: www.pazeterra.com.br
Calendário produzido para a cidade de São Bernardo do Campo – SP

Calendário produzido para a cidade de São Bernardo do Campo – SP

Arquivo Museu da Pessoa

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