O olhar da Arte sobre objetos do cotidiano

Um artista com uma produção instigante permite que as crianças explorem materiais do cotidiano, misturando realidade e fantasia

Há mais de uma década que se vê difundida nas escolas de Educação Infantil a ideia de que trabalhar com Arte, sobretudo com artistas mais conhecidos, é um caminho frutífero para o desenvolvimento de práticas pedagógicas mais criativas. Essa ideia tem mobilizado muitos trabalhos nessa área, sendo muito difícil encontrar uma escola que não realize projetos dessa natureza com as crianças pequenas.

Produção das crianças da Escola Alfa - SP

Produção das crianças da Escola Alfa – SP

Mas qual é a diferença entre trabalhar a Arte em projetos específicos que se inserem no currículo e adotá-la como área de conhecimento que integra todas as atividades da escola?

Na Escola ALFA, nossa experiência demonstra ganhos significativos quando se investe no trabalho tendo essa área como fio condutor. Essa possibilidade integra e direciona a atividade na Educação Infantil. Parece haver uma apropriação real de seus elementos, tanto os concernentes aos modos de fazer – criatividade, liberdade, fantasia – quanto os relacionados ao desenvolvimento de aspectos do sujeito promovidos pelo acesso e exercício da Arte – sensibilidade, acuidade, criticidade, entre outros.

Produção das crianças da Escola Alfa - SP

Produção das crianças da Escola Alfa – SP

Não soubemos identificar em que momento a Arte passou a ocupar lugar central nas práticas educativas de nossa escola, mas temos clareza do porquê e de como isso aconteceu. Ao começar a trabalhar com Artes, ainda como projetos de ação com atividades bem marcadas, logo percebemos que não avançaríamos se não investíssemos na formação dos professores e de todos os profissionais da escola. Naquela época (há quase quinze anos), achávamos que devíamos iniciar pela sensibilização das professoras. Um levantamento revelou que a maioria delas não tinha vivência com essa área; propusemos, então, como atividade inicial, a exploração em Artes Plásticas, com tintas e suportes diversificados.

Foi assim que iniciamos um processo que se tornaria permanente: a Arte passou a ser objeto de vivência, de discussão e de reflexão nos encontros de formação de professores de modo permanente. Atualmente, além dos espaços de formação em grupo, ela também está presente em reuniões mensais com a assessora especialista da área, que veio, há mais de cinco anos, trazer reforço e consistência à proposta, e ela participou, sem dúvida, da transformação do lugar da Arte na escola.

Para além de espaço de reflexão nos encontros de formação e nas orientações individuais, novos investimentos na formação dos professores têm sido feitos, pois percebemos que, a depender da ênfase dada no trabalho ao longo do ano, é necessário investir na vivência e na apropriação de conhecimentos específicos, o que enriquece o trabalho realizado. Essa percepção muda o paradigma do modo de organizar as práticas e os seus objetivos.

Instala-se na escola o que se poderia chamar Comunidade de Aprendizagem, pois não só os alunos se apropriam de novos conhecimentos, mas também os professores e demais educadores. Foi isso que se observou nos relatos que deram origem a esse artigo1: as professoras participaram de cursos, estudaram vida e obra dos artistas e os movimentos artísticos. Puderam, assim, envolver os pais, que também aprenderam; foram visitar a Bienal; participaram das oficinas na escola; dialogaram com os filhos e com os profissionais da escola.

Hoje, na sala dos professores, encontram-se no mural informações sobre exposições culturais, artigos de jornal de artistas contemporâneos. Há conversas informais sobre o tema e eles compartilham experiências de visitas a museus e a galerias. Essa troca de informações só foi possível porque toda a equipe vivenciou o desafio de entender a Arte como área de conhecimento. Sem dúvida, esse investimento cultural se revela na prática diária do corpo docente da nossa escola.

Além disso, pudemos constatar com o relato dos próprios pais a motivação e o interesse de seus filhos em voltar à Bienal e refazer o mesmo roteiro como “monitores”. Mostrar a obra do “vovô” Leirner de forma carinhosa e com um olhar sensível, desvendando sua Arte, foi um grande prazer.

Trata-se, portanto, de mudar a visão não só da Arte, mas também do trabalho com artes e suas práticas na Educação Infantil. Não é possível defender uma visão de ser humano como ser integral, constituído de aspectos socioafetivos, cognitivos e motores, e tratar as disciplinas ou áreas de conhecimento na escola como algo estanque, que não se integram ou se relacionam. Entretanto, encontrar o caminho para essa integração é um processo que só se realiza com muito investimento e persistência, sobretudo na formação dos profissionais da escola, e, como todo processo, não termina nunca. Temos clareza de que esse momento de reconhecimento do nosso trabalho é apenas um dos resultados do investimento nesse processo.

Produção das crianças da Escola Alfa, em SP

Produção das crianças da Escola Alfa, em SP

Reconhecemos também que não há sucesso possível na escola sem o envolvimento de todas as crianças, professores, auxiliares, orientadores, assessores, pais, diretoras, equipe de apoio. No caso desse trabalho com a Bienal (projeto Nosso Terreiro), também foi fundamental a parceria com outros tantos profissionais, possibilitando a todos o acesso a informações e vivências. Como mediadores nesse processo, os profissionais revelaram outros terreiros plenos de possibilidades.

Os artistas foram nossos mentores, inspiradores e mediadores do pensar, do experimentar, do apreciar. Viver junto e estar no “terreiro” das Artes ratificam a importância da cultura no processo de humanização do homem e nos obrigam a não esquecer que esse pode ser o caminho para uma educação mais humanizada.

Metodologia
O trabalho com os seis artistas estudados seguiu o mesmo formato, para todas as idades (de dois a seis anos):

  • na primeira semana, apresentação da vida e obra do artista e aplicação da atividade proposta pela assessora de Artes;
  • na segunda semana, cada professora devolveu a materialidade realizada na semana anterior para as crianças de sua classe, desenvolvendo uma proposta específica para seu grupo, modificando assim o suporte original. Essa nova ação podia ser coletiva ou individual. Valeu tudo: pintar por cima, cortar e remontar, rasgar e colar em novo suporte, tirar fotos para intervir, ou qualquer outra ação. Nessa etapa, todas as professoras tiveram acompanhamento bem próximo da assessora de artes, esclarecendo dúvidas e auxiliando-as a superar medos e desafios, alçando novos patamares na proposição e orientação do pensar e fazer Arte.

Atividade da primeira semana: Nelson Leirner
Cada criança recebeu etiquetas em branco (foram escolhidos tamanhos e formatos mais apropriados para a classe), nas quais elas deveriam desenhar com diversos tipos de riscantes. Também podiam alterar o formato das etiquetas, utilizando-se de tesouras. Em um mapa coletivo, seguindo uma ordem por sorteio, cada criança escolheu onde queria fixar as etiquetas (as coloridas ficaram disponíveis para complementar atividade).

Atividade da segunda semana: Nelson Leirner
Foram várias as propostas apresentadas pelas professoras. Houve uma diversidade de colagens de etiquetas personalizadas e do mundo infantil, fotografias de cada criança e dela com a família, pintura tridimensional sobre o globo terrestre, recorte de folhas de Atlas, colagem sobre o mapa do Brasil, organização de bonecos e bichos de pelúcia, entre outras.

Na Bienal
Ao entrar no espaço de Nelson Leirner, deparamo-nos com uma construção em madeira de uma réplica de modelo de avião criado no século XV por Leonardo da Vinci, na qual uma paca empalhada parecia voar. Nenhuma criança questionou essa possibilidade, o que confirmou o potencial de fantasia presente nas obras do artista. Os alunos adoraram a cena improvável, como se a tivessem imaginado. Puderam “voar” como se estivessem num desenho animado, em que o real e o imaginário se misturam.

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Uma história verídica
Por uma rua de São Paulo, uma pessoa passeava. Ao cruzar a vitrine de uma papelaria típica de bairro, ela berrou: – Que legal que chegaram os novos adesivos do Garfield e do Snoopy! Quero todos! Essa cena seria completamente corriqueira se acontecesse com uma criança, mas isso aconteceu com Nelson Leirner, um homem de barba branca, que a descreveu em uma palestra na extinta Galeria Brito Cimino, para um público envolvido com artes.

Esse desprendimento de posturas sociais predefinidas demonstra grande aproximação do artista com o universo infantil. O fazer artístico de Nelson Leirner também contém essa união. Em seus mapas, o artista colou obsessivamente adesivos autocolantes nas áreas terrestres. Uma criança repete uma ação até a exaustão, se envolvida e motivada. Quando o artista se utiliza de objetos simples pertencentes ao cotidiano, como bonecos de plástico, a leitura infantil é imediata.

(Carla Gorga Guimarães, coordenadora pedagógica; Cecília Pereira de Almeida Assumpção, diretora; Fernanda Assumpção, assessora de Arte e Vera Trevisan de Souza, assessora institucional, todas da Escola ALFA, em São Paulo – SP)

1Os dois primeiros relatos dos trabalhos que integram essa trilogia foram publicados na Revista Avisa lá nos 46 e 47.

Sobre o artista

sus15Nelson Leirner nasceu em São Paulo (SP), em 1932. É pintor, desenhista, cenógrafo, professor, realizador de happenings e de instalações. Considerado um artista polêmico, Nelson busca atingir as ruas de forma a criar indagações nas pessoas. Para conseguir isso, utiliza várias estratégias de forma experimental, mesmo que isso cause estranheza às pessoas.

Tornou-se hoje um dos mais expressivos representantes do espírito vanguardista dos anos 1960, tanto no Brasil quanto no exterior. Sua ideia central é popularizar o objeto de arte e introduzir a participação do público.

Ficha Técnica

  • Escola ALFA
    Endereço: Rua dos Macunis, 333 – Alto de Pinheiros – São Paulo – SP – CEP: 05585-010
    Tel.: (11) 3031-8656 / 3819-4567
    E-mail: alfa@escolaalfa.com
    Site: www.escolaalfa.com
    Diretora pedagógica: Cecília Pereira de Almeida Assumpção
    E-mail: cecilia@escolaalfa.com
    Diretora administrativa: Sandra Opice
    Assessora institucional: Vera Trevisan de Souza
    Coordenadora: Carla Gorga Guimarães
    Assessora de Arte: Fernanda Assumpção
    E-mail: paraafe@hotmail.com

Para saber mais

  • Catálogo da 29a Bienal de São Paulo: Há sempre um copo de mar para um homem navegar, de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos (orgs.). Fundação Bienal de São Paulo. Tel.: (11) 5576-7611. E-mail: educativo@fbsp.org.br
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