Que choro é esse?

Elemento constante da vida das crianças pequenas e, portanto, da rotina dos educadores, o choro revela sentimentos e necessidades das crianças e exige um ouvido atento de quem quer ajudá-las a se desenvolver bem

Embora haja muita produção acadêmica sobre desenvolvimento infantil, nem sempre é possível derivar do material acadêmico uma prática que apóie as questões interpessoais e emocionais enfrentadas pelos professores. Faltam mais relatos sobre situações reais vividas, pois explicitar determinados episódios cotidianos ajuda na reflexão. Portanto, a decisão de publicar o material a seguir visa contribuir para ampliar o olhar sobre o tema. No CEI Grão da Vida, no qual supervisiono1 um grupo de estagiárias de enfermagem da Universidade Santos Amaro – UNISA, a coordenadora pedagógica Vera Figueiredo – Teca, ao conduzir um grupo de educadores no estudo de alguns capítulos do livro Ética na Educação Infantil2, identificou como tema importante para estudo as necessidades individuais das crianças pequenas.

Algumas situações relatadas ao longo dos grupos de estudo ajudam a pensar sobre a questão.

Os episódios

Episódio 1:
Segundo Teca: Em fevereiro de 2006, início de ano letivo, uma menina do grupo de crianças entre um e dois anos (Berçário 2) chamou minha atenção. Estava com uma expressão corporal de desconforto psíquico, parecia “muito sentida” e chorava sentada em meio a algumas almofadas e brinquedos.

Perguntei às educadoras3 o que estava ocorrendo e elas me relataram que já haviam feito algumas intervenções, oferecido brinquedos, conversado, mas a criança não parava de chorar. Relataram também que a mãe havia dito que a menina não gostava de carinho, tampouco de contato físico, por isso elas não se aproximaram mais e só ofereceram brinquedos.

Como sei que as crianças têm capacidade de se relacionar de forma diferente com diferentes pessoas, arrisquei e me aproximei da menina. Coloquei a mão em suas costas e comecei a conversar, sentei a seu lado e novamente lhe ofereci brinquedos. Passados não mais que dez minutos, ela parou de chorar.

Joselma, uma das educadoras, se espantou com o que viu e me disse: – É a doutora Teca! Compreendi essa expressão como um reconhecimento de que eu era detentora de um saber que era diferente do dela, que se traduziu numa intervenção bem-sucedida.

Episódio 2:
Outro dia, na mesma sala de crianças, estavam três estagiárias do grupo de enfermagem, as educadoras e eu. Era um dia frio, muitas crianças gripadas; de repente uma delas chama a atenção de todos porque não consegue parar de tossir. A criança me pareceu assustada com tanta tosse! Resolvi acolhê-la, colocando-a em meu colo. Após uns 30 segundos ela parou de tossir, deixei-a aconchegada por uns minutos, não mais que cinco. Em seguida a coloquei numa almofada, onde dormiu. Decidi, como responsável pela formação continuada, tornar observável para os educadores os fundamentos das minhas atitudes e intervenções, de forma que eles pudessem construir conhecimentos para acolher as crianças em suas diferentes necessidades.

Episódio 3:
Em uma das reuniões de estudo, lancei a pergunta:

– Quantos tipos de choro vocês conhecem?
Educadoras: – Choro de manha, choro de dor, choro porque se machucou, choro porque quer alguma coisa, choro porque está chateado etc.
Continuei: – Vamos pensar neste choro a que damos o nome de manha. O que é a manha?
Educadoras: – Ah! Às vezes é aquele chorinho que a criança está querendo chamar atenção…
– E como costumamos falar sobre este choro?
Educadoras: – Se é choro de manha, ah, então não é nada, a criança está só querendo chamar atenção…
– Não é interessante? A criança chora porque está querendo chamar atenção, aí achamos que isto não é nada e não lhe damos atenção.
Educadoras: – É verdade.
– Mas a criança não chorou justo para isso? Para lhe darmos atenção? E por que não lhe damos atenção?
Educadoras: – Porque se lhe dermos atenção ela vai se acostumar. Vai querer ficar no nosso colo o tempo todo…
– Será? Esta é a experiência que vocês têm no dia-a-dia?
Educadoras: – Não.

Joselma, uma das educadoras, disse que queria contar uma história que aconteceu, parecida com as da Teca:

A Clara foi uma criança de difícil adaptação, ela sempre chegava chorando, não aceitava colo e passava a manhã toda assim, ou quieta no mesmo lugar. Sempre vinha uma educadora para fazer algum convite, oferecendo brinquedos, mas nada adiantava. Utilizamos diversas estratégias, oferecendo o melhor, sem nenhum resultado positivo. Numa manhã, quando ela entrou na sala chorando e pediu para sua mãe deixá-la comigo, eu disse:

– Hoje a Clara vai me ajudar a levar as fraldas novas para o banheiro. Sentei-a perto de mim e enquanto arrumava as fraldas, ficamos conversando. Percebi que este foi um dos melhores dias de Clara no CEI. Passamos a fazer a cada dia um convite diferente, aproveitando sua disponibilidade e desejo de nos ajudar na rotina. Hoje pela manhã ainda fica um pouco por fora, mas percebemos que um acolhimento diferenciado para essa idade é fundamental. Crianças assim estão sempre querendo algo especial das educadoras.

Reflexões a partir dos estudos

O choro fala
Os seres humanos comunicam-se por várias linguagens além da oral, tais como a tonicidade corporal, as mímicas, gestos, a escrita, os desenhos… e também pelo choro. Esta é uma das primeiras formas de expressão e comunicação com o outro. O primeiro choro anuncia o nascimento e a descoberta da respiração. Se vigoroso, é entendido, por aqueles que assistem ao parto, como sinal de saúde do bebê. A partir daí, o choro serve para chamar atenção para uma possível fome, dor, desconforto, frio ou emoção que o bebê sente.
Evidentemente, ele não consegue nomear, compreender o que sente, nem sabe como livrar-se da sensação desagradável por si só. Portanto, poder identificar as causas dos diferentes tipos de choro é fundamental para o cuidador.

Os responsáveis pelos primeiros cuidados ficam atentos, em geral, ao tom, freqüência e intensidade do choro, bem como à tonicidade, aos movimentos corporais e à mímica facial, sinais que indicam a causa do choro. Dessa forma, a dupla bebê-cuidador vai estabelecendo uma linguagem própria que permite uma comunicação cada vez mais aprimorada, que se transforma em novas formas de expressão.

Por isso, o adulto que fica mais perto do bebê sabe dizer se aquele choro é disso ou daquilo:

– Olha: ele chora e estica as perninhas, acho que é cólica.

Ou ainda:

– Ele chora e busca o seio, então é fome.

A leitura do choro e outros sinais corporais que o acompanham permite não só a nomeação, mas, principalmente, respostas que podem ser mais ou menos bem-sucedidas, dependendo se atendem ou não às demandas dos pequenos.

A sintonia do cuidador com o bebê identifica e nomeia adequadamente as necessidades. Isto transmite à criança segurança e a possibilidade de construir uma confiança básica no cuidador, o que é fundamental para as futuras relações afetivas. Ao ouvir o choro, os adultos ficam alertas e buscam resolver o problema para que o bebê se acalme. Assim, o choro tem a importante função de manter o cuidador-educador atento às necessidades expressas pelo bebê.

Há diferenças entre a intensidade e a duração do choro de bebês, conforme as práticas culturais vigentes. Em geral, bebês que vivem em comunidades que proporcionam maior contato corporal e uma amamentação que atende à demanda infantil com mais freqüência, choram menos.

Diferentes fases
O choro sempre está presente na nossa vida, sobretudo nos momentos em que não conseguimos expressar apenas em palavras ou gestos o que sentimos, mesmo quando somos adultos ou idosos. Muitas vezes, no cotidiano, quando “engolimos” o choro nos sentimos muito mal e depois o choro chega sem controle. Chorar pode ser bom, auxiliando a colocar para fora angústias e tristezas.

Os bebês choram mais nos primeiros três meses de vida, com uma intensidade maior em torno de um mês e meio, período de adaptação ao meio extra-uterino. Alguns choram mais que outros, e essas diferenças continuam ao longo do primeiro ano de vida. Após esse período, a freqüência do choro diminuirá, mas poderá reaparecer próximo aos seis meses, tanto pelo desenvolvimento emocional como pelo surgimento dos dentes, que em geral coincide com o início do processo de desmame e a introdução de alimentação complementar. Afinal, são muitas mudanças, para os bebês e para suas famílias.

Em torno de nove ou dez meses, geralmente aumentam a freqüência e a intensidade do choro, sobretudo à noite, devido à maior capacidade do bebê de diferenciar-se do outro e, conseqüentemente, sentir medo da separação. Bebês choram mais durante períodos críticos de desenvolvimento, o que é explicado por mudanças importantes no sistema nervoso, na forma de sentir e expressar as emoções. Assim, chorar faz parte das manifestações do processo de desenvolvimento das crianças, mas recomenda-se observar e identificar as necessidades em cada fase. Os bebês choram por fome, dor, frio, atenção, tédio, frustração ou cansaço. O mesmo objeto que atraiu pode assustar, e apenas um cuidador-educador sensível perceberá as sutis diferenças de expressão e reação, acolhendo-o e confortando-o.

Em especial, bebês e crianças pequenas choram na fase em que estão se adaptando ao Centro de Educação Infantil. Embora seja um modo de expressar os sentimentos em relação a ser deixado em local estranho pela família, há a sensação de estranhamento ou abandono. É preciso acolher este choro e mostrar-se solidário. Se a criança perceber que o educador compreende seus sentimentos e sabe que é difícil a separação do ponto de vista emocional, terá uma sensação de conforto, e o choro vai diminuir.

Consolar as crianças não significa apenas achar modos de silenciar o seu choro, mas ser sensível às suas emoções e necessidades, saber identificá-las e nomeá-las. Isto gradativamente ensinará a criança a cuidar de si e do outro. Acolher as individualidades no coletivo não é simples. Envolve os aspectos de organização da rotina, do espaço e disponibilidade interna dos formadores, além de conhecimentos advindos de diferentes áreas – o que sugere um trabalho de formação continuada eficiente.

Compreender e agir
O episódio 3 mostra como, às vezes, o aconchego parece mágica: bastou pegar um pouquinho no colo e a criança parou de chorar ou de tossir! Este me pareceu ser o espanto das graduandas de enfermagem e da educadora da sala. Mas não é só o contato físico, há muito mais sentimento. O aconchego não é simplesmente um ato físico, mas também tem a ver com o jeito, com a intenção, com a empatia das educadoras com o sofrimento e o desamparo das crianças que choram quando algo não vai bem. Esses episódios cotidianos nos convidam a explorar um pouco mais as motivações e significados dos choros, bem como a pensar sobre as posturas dos formadores e educadores.

Decifrar o choro de um bebê é um desafio que mistura intuição, conhecimento e muita percepção daqueles que cuidam dele. Tranqüilidade é essencial para lidar com o choro dos bebês e das crianças pequenas. Se os adultos se desesperarem com o choro, o bebê sentirá isso e ficará mais tenso, e poderá chorar cada vez mais forte ou até mesmo convulsivamente.

Na maior parte das vezes, uma atitude tranqüilizadora, como pegá-lo no colo ou conversar perto dele e baixinho, demonstrando que de fato o adulto tem disponibilidade para estar com ele, acalmará o bebê que está querendo, naquele instante, sentir-se protegido e amado.

(Damaris Gomes Maranhão, doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e consultora em Saúde Coletiva do Instituto Avisa Lá; Vera Christina Figueiredo, Joselma Veronez, Judite Santana, educadoras do CEI Grão da Vida)

1A narradora deste artigo é Damaris, que contou com a colaboração de Vera, Joselma e Judite.

2Ética na Educação Infantil: O ambiente sociomoral na escola, Betty Zan e Rheta Devries. Ed. Artmed.

3Neste CEI há professores de Educação Infantil e educadores leigos atuando juntos na educação e cuidado infantil. Neste texto utilizaremos genericamente o termo “educadores”.

Dicas que ajudam

  • Para professores de crianças pequenas, o choro é realmente um conteúdo importante, que necessita de ações formativas diferenciadas para dar conta da sua complexidade. A seguir, apresentamos algumas possibilidades:
  • Apoio à capacidade de observar as situações cotidianas enfrentadas pelas crianças e educadores.
  • Registro desses momentos e posterior discussão em grupo, de forma que as ações feitas, algumas até inconscientemente, possam ser discutidas, analisadas de vários ângulos e compreendidas.
  • Possibilitar o exercício de colocar-se no lugar da criança, tentando compreender seu ponto de vista e buscando apreender as situações sob a ótica infantil.
  • Facilitar a discussão entre pares, visando saber expor idéias, sentimentos, compartilhar ações e resultados.
  • Ler e discutir textos teóricos que dão embasamento às ações.

Ficha técnica

Entidade: Grão da Vida/CEI Manoel Bispo dos Santos – Rua Professor Oswaldo – Quirino Simões, 140, Vila Califórnia – São Paulo – SP. CEP: 04775-010 – Tel.: (11) 5523-2406 – E-mail: contato@graodevida.org.br
Diretora: Elza Sampaio
Coordenadoras pedagógicas: Vera Christina Figueiredo (Teca). E-mail: teca@graodavida.org.br / Soraia de Cássia F. L. Rego. E-mail: soraia@graodavida.org.br

Para saber mais

  • Choro e conforto, Eillen Hayes. Série Johnson’s Saúde e Carinho. Ed. Publifolha. Tel.: (11) 3224-2201
  • “Colo: Um cuidado que educa”, Damaris Gomes Maranhão. In Revista Avisa lá no 01 – set/1999. Tel.: (11) 3032-5411.
  • Ética na Educação Infantil: O ambiente sociomoral na escola, Betty Zan e Rheta Devries. Ed. Artmed. Tel.: 0800 703-3444. / (11) 3027-7000.
Posted in Jeitos de Cuidar, Revista Avisa lá #31 and tagged , , , , , , , , , , , .