Estar atento ao que a criança pequena fala, sente, pensa e observar suas ações é garantia para uma educação de qualidade
Confesso que antes de ver pessoalmente as escolas de Educação Infantil da cidade de Reggio Emilia, no norte da Itália1, tive dúvidas em relação à utilidade desta viagem onerosa, e também acerca do tempo que seria gasto, já que este é um bem precioso nos dias de hoje. Conhecia a proposta já há tempos, tanto pelo material publicado, como por meio de cursos e seminários no Brasil, e também por uma visita a algumas escolas americanas que se inspiram no sistema educacional desta região da Itália. Porém, ao visitar, em maio de 2007, a primeira instituição de uma série de 5, nenhuma dúvida permaneceu. Compreendi a importância de estar presente, de sentir os espaços, de ver as crianças se relacionando entre si, com os adultos e os objetos.
Em uma proposta multisensorial como esta, os sons, cheiros e texturas só podem ser apreendidos in loco. Os desenhos, as fotos, os inúmeros textos não dão conta de descrever a complexidade das relações educativas que se desenvolvem nas diferentes escolas. Observar as salas dos grupos, as áreas externas, o refeitório, os ateliês, as paredes, os materiais, as produções infantis e as pessoas interagindo é conhecer concretamente os princípios que regem a proposta.
Além disso, conhecer a cidade e participar do dia-a-dia de seus habitantes ajuda a apreender o espírito de comunidade que rege as relações entre escolas e famílias. À medida que as palestras e as visitas se sucediam, fui compreendendo melhor o que faz a diferença desta proposta educativa em relação a tantas outras que também são inovadoras, bem cuidadas, ricas em materiais e espaços adequados. Penso que ficou mais claro o que chamam de pedagogia da escuta. Tudo é feito para ouvir realmente as crianças, valorizando acima de qualquer coisa seus saberes e jeitos de pensar e estar no mundo: o processo educativo-pedagógico, a formação continuada dos educadores, a organização dos espaços e do dia, a centralidade da ação por meio dos ateliês de artes visuais, a participação das famílias e a relação com a cidade, enfim, todas essas interfaces da proposta são desenvolvidas com o objetivo de possibilitar e tornar visíveis os processos e, conseqüentemente, as produções infantis.
Espaço que narra e instiga
São poucas as escolas contemporâneas que investem tanto em registrar e compartilhar o que Loris Malaguzzi (mentor da concepção educativa) chama das cem linguagens da criança pequena. A idéia da documentação está a serviço de ampliar a escuta da criança e apoiar a observação, além de servir para compartilhar a informação com a equipe e o público externo. Registra-se o trabalho todos os dias, usando a fotografia, o desenho, a escrita, gravações e filmagens. A documentação do trabalho não começa no fim do percurso, mas quando os adultos têm as primeiras idéias do que trabalhar com as crianças e segue sistematicamente durante todo o processo.
A qualidade e a beleza poética dos trabalhos infantis impactam o visitante e explicitam o potencial infantil para compreender e expressar o mundo. Não há como duvidar de que aquele grupo de adultos acredita em uma criança rica, forte e poderosa. Muito diferente do que acontece com propostas fechadas nas quais as crianças só completam imagens, colorem e reproduzem materiais didáticos idealizados pelos adultos. Embora haja uma suavidade nas cores e no mobiliário e um cuidado estético que geram um clima de tranqüilidade, decididamente o que se vê é um ambiente instigante, aberto às experiências e interesses infantis.
Além dos elementos presentes em todas as escolas, tais como brinquedos, pincéis, lápis, tinta, livros etc., a presença de inúmeras fontes de luz, elementos da natureza em profusão, sobras de artefatos industriais, materiais que permitem elaborações variadas apontam para criações inusitadas e originais. Tudo está ali à mão, disposto de forma a dar voz ao pensamento e à imaginação infantis. Embora o processo de construção de conhecimento seja um dos valores máximos da pedagogia reggiana, há um cuidado com o resultado da produção infantil que se traduz de muitas formas: na oferta de materiais, nas discussões pedagógicas sobre como apoiar as idéias dos pequenos, no suporte dos pais para dar forma aos projetos infantis, no forno que queima as produções de argila e lhes garante permanência, enfim, em inúmeros detalhes que mostram que a criança é uma real interlocutora: ela fala, se expressa é ouvida e valorizada, e o que produz tem valor.
Conteúdo que brota da interação
Estudiosos da proposta retiram da biologia o termo “osmose” para definir a relação das crianças com o mundo externo e a cultura: uma troca de seivas e substâncias. “A realidade pode e deve permear a escola, filtrada por um projeto cultural de interpretação que serve de membrana e interface às propostas infantis”2. Não há conteúdos determinantes a priori. Há objetivos gerais, mas não há um planejamento rígido, já que se atribui importância fundamental ao que emerge das crianças. Os assuntos e temas das aprendizagens surgem de um cotidiano rico de possibilidades. Os projetos ou o que chamam de “projetação” estão alicerçados nas crianças.
Um adulto que segue e desafia as crianças
O adulto parece sempre atento e desenvolve uma ação educativa que segue as crianças, abrindo-lhes novas possibilidades de criação e produção. Ele observa, pergunta, sugere, mobiliza e fornece meios para que elas avancem. Saber como ouvir realmente a criança, como ela pensa e constrói conhecimentos na interação com os outros e com os objetos é essencial para as escolas reggianas. Os educadores são formados para criar um contexto no qual predomina a empatia, a observação e a escuta atenta dos pequenos. Para isto, os professores precisam atribuir valor e significado ao que eles dizem.
Cabe aos adultos ouvir as teorias e hipóteses das crianças e “criar ocasiões de aprofundamento”3 que suscitarão novas idéias. A busca é de um equilíbrio e uma comunhão entre a oferta educativa, isto é, a intervenção do adulto – o que gera oportunidades de avançar nas aprendizagens – e os desejos e necessidades infantis. Quais influências essa experiência pode trazer ao nosso trabalho? Como construir uma apropriação criativa, respeitando contextos, história e cultura do Brasil? A saída está na reflexão sobre nossa prática informada pelos novos conhecimentos. Portanto, há muito trabalho por fazer depois de uma viagem produtiva como essa.
(Silvia Carvalho, coordenadora do Instituto Avisa Lá)
1Para saber mais sobre a proposta: www.reggiochildren.it e www.zerosei.comune.re.it
2Tradução livre de frase do livro Children, spaces, relations- Metaproject for an environment for young children, 1998, Reggio Children and Commune di Reggio. Itália.
3Tradução livre da “Carta de Identidade”, Nido Gianni Rodari, in Publicação interna da Escola Reggio Emília.
Para saber mais
Livros
- Children, spaces, relations – Metaproject for an environment for young children, 1998, Reggio Children and Commune di Reggio. Itália
- As Cem Linguagens da Criança, Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman. Ed. Artmed, Tel.: 0800 703-3444
Documentos
- “Carta de Identidade”, Nido Gianni Rodari, in Publicação interna da Escola Reggio Emília
Palestrantes
- Elena Giacopini, Daniela Lanzi, Tiziana Fillipini, Paola Riccò e Giordana Rabitti
- Equipe técnica do Centro Loris Malaguzzi e das Escolas Municipais de Reggio Emilia