O diário da vida na escola

O presente e o passado se encontram nas páginas dos diários. Conheça a experiência de uma professora e um grupo de crianças de 5 anos em busca da memória e da construção de reais leitores.

Gostaria de contar sobre nosso encontro com Helena Morley e os desdobramentos que ele teve, tanto no que diz respeito aos conhecimentos sobre a língua portuguesa, as práticas de leitura, de escrita e a narrativa, quanto aos conhecimentos gerais, em especial um interessante estudo sobre o cotidiano e os modos de vida do passado.

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Museu Histórico Nacional

Tudo começou quando retornamos de férias e revíamos, em grupo, as lembranças de cada um sobre o mês de julho. Havíamos preparado uns cadernos de férias, nos quais as crianças poderiam anotar ou guardar tudo o que não desejavam esquecer a respeito de suas férias. E eis que, no meio desses cadernos, havia um diário trazido pela Izabel, no qual ela relatava, por meio da escrita de suas primas e de sua mãe, o que lhe havia acontecido naquele período.

Aquilo remeteu-me a um livro que eu havia lido em julho, o diário de Helena Morley, Minha Vida de Menina, editado pela Companhia das Letras. Contei às crianças sobre o livro e elas me pediram para trazê-lo. Selecionei um trecho para ler em nossa próxima roda, e assim tivemos a primeira aproximação com essa autora. Como havia imaginado, aquela leitura tinha pertinência para o grupo, e a partir daí o trabalho do semestre foi se delineando.

Após um intenso trabalho realizado nos semestres anteriores com os contos de fadas e com a literatura de fantasia, proporcionados pelas leituras das Fábulas Italianas, de Ítalo Calvino, e das histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, a aproximação e o conhecimento de outro gênero literário – de um texto tão diferente quanto o diário – pareciam interessantes para o grupo e também para o trabalho que buscava a diversidade textual.

Garantir um amplo contato com diversos tipos de textos de nosso universo literário é também possibilitar às crianças que se formem enquanto leitores, cidadãos de nossa cultura letrada. A partir da leitura contextualizada em sua função social, respeitando as características de um determinado texto, sua inserção em nossa cultura e seu uso, elas estarão cada vez mais aptas a se utilizarem significativamente dos textos, conhecendo seus objetivos e incluindo-os como aliados em sua formação como leitores.

Concordando com essa visão, o trabalho de leitura na classe manteve, durante todo o ano, a preocupação de colocar as crianças frente ao nosso universo literário, apresentando-lhes os textos de acordo com a sua utilização real. Buscava-se, além do conhecimento dos textos, a perspectiva de encantamento, fruição e gosto pela leitura e pelos livros, objetivos centrais deste trabalho. Foi dessa forma que entraram em cena as narrativas e o diário.

Pude perceber o quanto esses aspectos do encantamento, do gosto e do desejo pela leitura e pelos livros estiveram presentes. O fascínio que Helena Morley exerceu sobre as crianças fez até com que pedissem a seus pais que adquirissem um exemplar de Minha Vida de Menina, idéia instaurada por uma das crianças, Camila, e logo seguida por outras da sala como Alice, Izabel e Alex. A curiosidade pelos livros se tornava evidente à medida que conversávamos sobre outras histórias, biografias e narrativas. Lembro-me, inclusive, de que um dia li para todos um trecho do livro A Língua Absolvida, em que Elia Canetti rememora sua infância.

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“Esse Navio foi do avô do Má, que veio para o Brasil junto com a boneca japonesa”

Novas leituras
Muitas vezes um professor pode se questionar quanto à pertinência de textos complexos na educação infantil, principalmente em se tratando de crianças pequenas. É claro que não são todos os textos que interessam a elas, assim como acontece com os adultos. No entanto, abrir novas perspectivas de leitura para as crianças pode se constituir em um desafio instigante na relação com os livros, parceiros significativos em nosso trajeto na escola e na vida.

Além do prazer da leitura, o contato com o livro Minha Vida de Menina nos trouxe uma discussão e um estudo interessante sobre uma outra época, sobre os hábitos passados, sobre as memórias e histórias das famílias e dos antepassados das crianças da sala. A curiosidade e o interesse delas nas conversas sobre o assunto confirmam isso:

Criança 1: Ué, mas ela, a Helena Morley, já é do tempo antigo, como ela fica falando do tempo antigo, então?

Prof.: É mesmo, né pessoal? Como é isso? A Helena já era de antigamente e fica falando que queria ser da época antiga!

Criança 2: Mas, se for da época dos homens-macacos, então, era mais antigo ainda. E os dinossauros rex, então, maaaais antigo!

Criança 3: É porque era a vó dela, né? Então era mais antigo que ela!

Criança 4: E a bisavó dela, mais antigo ainda, né?

Criança 1: Então vai ter um dia em que a gente também vai ser antigo? No dia em que tivemos essa conversa, tínhamos acabado de ler um trecho de Minha Vida de Menina, em que a autora nos falava sobre a sua vontade de ser de outra época, de um tempo mais antigo, o de sua avó, que lhe parecia mais agradável do que o seu.

Antes da roda de história desse dia, já vínhamos falando, há algum tempo, sobre a vida de Helena Morley, a sua época e tudo aquilo que ela falava sobre antigamente. Acredito que as crianças, lançadas a esse tipo de estudo e de investigação, também puderam se questionar e trazer à tona os hábitos da atualidade, pensando sobre o movimento da vida e da cultura, relativizando o que temos hoje e que muitas vezes nos é dado como certo e constante, como aconteceu naquela nossa conversa do dia 21 de agosto, em que uma criança imaginou a possibilidade de um dia sermos antigos, das coisas passarem e mudarem.

Objetos que contam história
Procurando ilustrar a discussão, partimos para uma pesquisa sobre os modos da vida antiga, enfatizando principalmente as diferenças do cotidiano do fim do século passado e início deste, tendo como mote a busca dos objetos antigos das famílias que pudessem nos indicar alguns dos hábitos do passado. Nesse trabalho, todos se viram envolvidos e sempre tinham algo a notar sobre os objetos, as diferenças dos antigos e dos atuais. Contavam também histórias passadas, auxiliados pela memória das famílias e muitas vezes pelo próprio objeto trazido para a sala de aula.

Em nossa primeira roda de conversa sobre os objetos antigos, Isabela e Camila tinham muito a dizer sobre o que tinham trazido e, a partir de suas falas, pudemos perceber o quanto os objetos escolhidos remontavam a alguma memória da família:

– Eu trouxe esse livro, mas tá velho. É de 1845. A minha avó lia esse livro. A minha avó, né, quando ela era pequena, ela pegava na rede, né, ela ia na rede, pegava um livro que ela gostava e lia, – disse Isabela.

– E eu trouxe também um colar com pedra, que era do meu pai, que deu para a minha mãe, e esse brinco foi que minha vó deu quando ela tinha treze anos prá minha mãe, quando ela tinha também treze – nos relatou Camila quando chegou sua vez.

– Esse vestido foi da minha mãe, quando ela foi casar. E essa luva, agora, essa luva, ela casou com essa luva, mas depois, agora, tá servindo pra pegar melancia.

As conversas continuavam, e cada vez mais as histórias iam aparecendo:

– Essa toalha é de quando a minha mãe brincava quando era criança, até tem uma foto. Essa faca foi do irmão do meu avô, que era mais velho do que o meu avô, ele… daí, ele sabia que o meu avô gostava, eles nem se conheciam, daí, o meu avô, o irmão do meu avô sabia que o meu avô gostava, daí deu para ele, – contou Alice.

– Esta máquina aqui é do papai, esta máquina. A mamãe do papai tirava foto dele, é só isso que eu sei desta máquina (Martin).

Em certos momentos, a própria imagem se constituía num relato, e dessa maneira o apoio da fotografia se tornava muito importante:

– Esta foto é do meu avô, ele tem oitenta e quatro anos, ele ainda tá vivo e tem oitenta e quatro anos, – disse Gabriel.

– Esta foto é da minha vó, a mãe da minha mãe. É de quando ela estava saindo da escola… Mas ela já tem oitenta e três anos! – relatou Luiza.

– O meu avô trouxe no navio esta boneca, no navio, olha que grande que ela é! – conta Marcelo, impressionado.

Muitas vezes as histórias se cruzavam, se encontravam, um relato pavisa18_tempo4uxava o outro e as falas se associavam:

– Os meus bisavós escaparam da prisão dos alemães… Teve uma guerra com o meu avô um dia e daí a minha avó foi junto – conta Stefano.

– O meu vô falou, né, pra mim, que eles para ir na Guerra Mundial; ele foi, ele tinha que cobrir o pé com jornal, eles cobriam o pé com jornal pra ir na guerra – lembra Izabel, a partir do relato de Stefano.

Em outras situações, objetos e personagens diferentes do passado chamavam a atenção de todos:

– Este binóculo era da minha… tataravó…é pra ver de perto os cantores de ópera. Esta foto é da minha.., da minha tetravó, ela com roupa de ópera… Ela era cantora de ópera! Era. Aí, a filha dela ia lá pra ver – diz Alex.

Amparados também pelos depoimentos de familiares e pela memória das histórias que nos foram enviadas através de fitas gravadas, a leitura de Minha Vida de Menina foi ganhando outros suportes e o diário, texto que se funda e tem como eixo central memórias de vida, pôde ser redimensionado pelas crianças. Elas conheciam sua estrutura, mas também pareciam ter clara a sua função social. O campo já estava bem fértil, foi o que pude perceber quando nos propusemos a trabalhar de uma outra forma esse tipo de texto: escrevendo nosso próprio diário.

O diário das crianças
Desde a elaboração do título, pude notar o quanto as crianças já tinham assimilado algumas das características desse gênero, uma vez que, na discussão que travamos sobre o nome do nosso “livro”, já ficaram evidentes particularidades desse texto, tais como a necessidade de marcar tempo e lugar, por exemplo.

Aqui, transcrevo um trecho de meu registro de classe do dia 4/10, em que tivemos a seguinte conversa sobre a escolha do título:

A discussão começou quando perguntei a eles que título (já que era uma informação de consenso da turma) gostariam que tivesse o nosso diário. Sem pestanejar um segundo, a classe sugeriu…. Minha vida de menina! Já estávamos quase prontos para escrevê-lo quando disse: Mas espera!… Minha Vida de menina… Mas só tem menina nesta classe? Os meninos, indignadíssimos, é óbvio, responderam em coro: Não!!! Até que alguém falou: Tem que ser Minha Vida de Menina e de Menino! Tudo bem. Então, era isso mesmo? Quase isso, porque nesse momento o Alex falou uma coisa bem importante para o grupo: Não, tá errado! Não dá para ser assim porque na Minha Vida de Menina a Helena Morley escreveu sobre a vida dela, a casa, a vó, a mãe, como era a vida dela, e a gente não vai fazer isso, a gente vai
escrever sobre a vida na escola. E então, ele continuou: Então, tem que ser Minha Vida de Escola. Pronto. Ele havia lançado uma discussão
no grupo.

Depois de sua sugestão, ainda surgiram outras possibilidades, como: Nossa Vida no Logos. Nossa Vida de Escola. Minha Vida de Crianças, logo corrigida: Nossa Vida de Crianças. E, finalmente, decidiu-se por: “A Vida das Crianças de São Paulo na Escola Logos”. A resolução do título ficou por conta da afirmação de que os leitores do diário teriam que saber que aquelas crianças eram de São Paulo, uma informação importante, porque senão poderiam pensar que elas eram de Diamantina, igual à Helena Morley, foi o argumento delas.

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Ver objetos antigos possibilitou muita reflexão e interação

O dia-a-dia nas páginas do diário
À medida que íamos escrevendo e registrando a nossa vida na escola, as crianças demonstravam já ter obtido, a partir das leituras que fizemos ao longo do semestre, elementos suficientes para se situar na elaboração desse tipo de texto. A forma casual e personalista de escrever, assim como a presença da primeira pessoa, denotavam o conhecimento adquirido acerca da forma de se escrever um diário, como vemos no exemplo do nosso diário:

22 DE OUTUBRO
A GENTE MANDOU UMA CAR

TA PARA A FAMÍLIA DA HELENA MORLEY PORQUE A GENTE QUER SABER MAIS COISAS DA HELENA MORLEY. A GENTE JÁ DESCOBRIU COMO QUE MANDA AS CARTAS DE ANTIGAMENTE: ERA PUXADA COM BURROS OU CAVALOS. AS CARTAS HOJE EM DIA VÃO DE AVIÃO.

A presença de advérbios de tempo também encerra uma característica desse gênero literário, como acontece com o exemplo seguinte, em que nós encontramos as expressões “hoje” e “agora”.

20 DE OUTUBRO
HOJE NÓS ACABAMOS DE CHEGAR NA ESCOLA, BRINCAMOS E CORTAMOS INTERFERÊNCIAS1. AGORA, NÓS ESTAMOS NA RODA ESCREVENDO O DIÁRIO.

Ainda em outros momentos da escrita2 do diário, as crianças continuavam dando indícios de que dominavam a estrutura desse tipo de texto, como no dia em que havíamos relatado nossa ida ao Jardim Botânico. Todas tinham muito a lembrar e contar e, dessa forma, ficamos um bom tempo na roda às voltas com a sua escrita. Ao final, todos pareciam cansados e, quando percebemos que o melhor seria interromper a nossa atividade daquele dia, uma criança sugeriu:

– Pode escrever aí: “Nós estamos cansados, agora vamos parar e vamos continuar amanhã”.
– Não! Amanhã, não! Segunda, segunda-feira!
– completou uma colega, lembrando que já estávamos na sexta-feira.

Se esse final cabe perfeitamente na escrita de um diário, ele não apareceria em qualquer outro texto – por exemplo, em um conto ou mesmo em um bilhete –, o que nos sugere um conhecimento específico sobre o modo de se fazer um diário.

Conclusões
Este trabalho não foi planejado como um projeto desde o início. Mas o interesse das crianças, a partir da leitura do livro Minha Vida de Menina, transformou uma simples atividade em um projeto de todo um semestre. Os eixos principais foram a leitura de texto literário e conhecimentos gerais, na medida em que os alunos conheceram um novo tipo de texto, o diário, bem como os hábitos da vida cotidiana de épocas passadas.

Como suporte para este estudo, consultamos diversos livros de fotografias, de ilustrações e de histórias do cotidiano da segunda metade do século XIX, além de estabelecermos uma correspondência com uma das filhas de Helena Morley. A apreciação das fotos e das ilustrações, bem como a leitura dos livros de história, aconteciam em nossas rodas de conversa e serviam tanto para o conhecimento de uma época passada quanto para comparações com a atualidade.

No fim do semestre, na feira cultural da escola, organizamos uma exposição com todos os objetos trazidos pelas crianças e as fitas gravadas pelos pais, com depoimentos de histórias familiares. Foi um sucesso para as crianças e suas famílias.

(Ana Carolina Carvalho, psicóloga, foi professora da escola Logos em 1998)

1 Interferências são recortes de figuras de diferentes procedências que, coladas em um suporte, possibilitam que as crianças completem as imagens e/ou desenhem ou pintem a partir delas.

2 A professora atuou como escriba, já que a maioria das crianças ainda não escrevia convencionalmente

“São Paulo Capital – Pais e mães, por  avor mandem objetos antigos de volta para a escola, para arrumar sábado cultural” [Texto coletivo do bilhete, tendo como escriba a Izabel]

“São Paulo Capital – Pais e mães, por avor mandem objetos antigos de volta para a escola, para arrumar sábado cultural” [Texto coletivo do bilhete, tendo como
escriba a Izabel]

Bibliografia

  • No Tempo de Dantes. Maria Paes de Barros. Ed. Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399.
  • História da vida privada no Brasil – vol. 2. L. F. Alencastro (org). Companhia das Letras. Tel.: (11) 3707-3501.
  • Fábulas Italianas. Ítalo Calvino. Cia. das Letras. Tel.: (11) 3161-7081.
  • O Sítio do Pica-pau amarelo. Monteiro Lobato. Editora Brasiliense. Tel.: (11) 6198-1488.
  • Minha vida de Menina. Helena Morley. Editora Cia das Letras. Tel.: (11) 3707-3501.
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