Tematização da Prática Pedagógica: um bom caminho para a formação do professor (e também do formador…)

Tematizar a prática é quando professores analisam em conjunto com um parceiro1 mais experiente situações didáticas já vivenciadas. Essa ação permite a todos o desenvolvimento da capacidade de estabelecer relações, de saber explicar o que foi feito, de fazer escolhas mais ativas e de selecionar uma dentre várias opções, impedindo a repetição de velhos hábitos improdutivos ou ações realizadas por tentativa e erro. É o momento da tomada de consciência de teorias implícitas que vinham sustentando seu fazer cotidiano, de confronto teórico e de construção de novos referenciais para o trabalho. Neste artigo, a orientadora pedagógica usa a filmagem em vídeo para mostrar como é possível tematizar com profundidade a prática educativa, proporcionando reais avanços na aprendizagem das crianças e o desenvolvimento profissional dos professores
desenho de Tatiane, 5 anos

“Amarelinha” foi o tema escolhido para trabalhar com sequência numérica

Desde o ano passado, começamos a recorrer à filmagem em vídeo de algumas situações práticas de trabalho com as crianças ocorridas em nossa escola. Inicialmente utilizados como instrumento de registro – com o objetivo de partilhar com os pais os momentos vividos em sala com as crianças –, esses vídeos funcionaram posteriormente como material importantíssimo de análise do trabalho realizado pelo professor, nos encontros de formação. Continuamos com as filmagens este ano e gostaria de partilhar com vocês um trabalho realizado com as turmas de 4 anos.

O planejamento de matemática feito para essas classes se constituiu numa seqüência de atividades que teve como ponto principal “A Amarelinha”. O tema foi escolhido por nós com os objetivos de resgatar uma brincadeira prazerosa para as crianças e, ao mesmo tempo, trabalhar com a seqüência numérica. A seqüência envolveu diversas atividades: a
brincadeira no pátio utilizando várias amarelinhas que estavam riscadas no chão, momentos de conversa sobre as experiências das crianças nessa brincadeira e momentos coletivos e individuais de montagem da amarelinha, nos quais a série numérica era sempre enfatizada. A finalização seria a montagem individual de uma “Amarelinha”, pelas crianças, em papel pardo, para ser levada para casa. Tínhamos cinco salas de Inf. II (4 anos) nesse processo de trabalho, e não foi difícil registrar os diversos momentos de desenvolvimento das atividades já citadas nas diferentes turmas.

Primeiras descobertas, quase sem querer

O primeiro registro foi feito pela própria professora de uma das classes, com o objetivo de discutir a atividade na reunião de pais, sem imaginar que rico material teríamos para discutir depois. Uma das dificuldades que tivemos era o fato de a professora estar por trás da câmera, o que impedia uma observação mais detalhada de sua atuação no processo. Nesse registro vemos as crianças no chão, cada uma com a sua amarelinha montada no papel pardo e a representação dos quadradinhos feita com folhas de sulfite. Gostaria de deixar claro que cada criança colou a folha de sulfite no papel pardo tendo como parâmetro as suas vivências com a amarelinha. Assim, havia diversos tipos de representação:

Amarelinha com papel sulfite

As crianças fazem a distribuição das folhas de sulfite, representando a “amarelinha”

Por meio das cenas filmadas, observamos a professora escrevendo os números solicitados pelas crianças, entregando-lhes o sulfite e em seguida as crianças colocando o número na amarelinha. O papel da professora nessa atividade foi o de fornecer os números e manter-se como uma observadora da ação das crianças, que utilizavam, como recurso para trabalhar, o conhecimento que possuíam. Um exemplo interessante registrado no vídeo confirma essa situação: como a professora só fornecia o número que era solicitado pela criança, uma
amarelinha ficou só com os números 1 e 2:

As crianças numeram as

As crianças numeram as “casas”

Ao analisarmos a situação, ficou claro que o objetivo da professora – que era o de levar as crianças a usar a série numérica em ordem – não se concretizou. Nesse caso, provavelmente a criança realizou uma correspondência com o número de casas, ou seja, 1 casa é 1, 2 casas é 2!

Outra questão interessante que observamos na filmagem foi que muitas crianças colaram os números aleatoriamente, mas, ao recitarem os
números, o faziam corretamente. Assim como para nós, essa questão também não estava clara para a professora. Portanto, não houve intervenção no sentido de utilizar o que as crianças já sabiam (série numérica oral) como ponto de referência para a ordenação e “leitura” dos números, o que resultaria numa amarelinha viável de ser utilizada e levada para casa.

Tornando observáveis procedimentos comuns em sala

A segunda filmagem registrou uma atividade coletiva de montagem da amarelinha. As crianças se distribuíam em roda, em volta de uma única amarelinha que estava sendo montada no papel pardo. A atividade consistia na colocação dos números que já haviam sido registrados em pedaços de papel dispostos ao lado, no chão. As crianças tinham que colocar os números na amarelinha, e nesse processo a professora recorria sempre à série numérica oral, que era recitada em coro por elas. A criança escolhida para fazer a colagem de um determinado número era
denominada pela professora, que passava a cola e entregava a ela para que o colasse no lugar certo.

Nesse processo as crianças não tinham condições de pensar em estratégias próprias, necessárias para a montagem. Além de não terem possibilidade de intercâmbio de informações, pois seguiam as instruções da professora, que dirigiu integralmente a atividade. Buscando novas estratégias de trabalho com as crianças Nas reuniões que fazíamos periodicamente tínhamos muitos questionamentos a respeito das seqüências de atividades envolvendo a “Amarelinha”. Eram dúvidas detectadas por meio do acompanhamento sistemático do registro diário, e também por meio das trocas de experiências feitas no HTC2. Portanto, continuamos com as filmagens. Dessa vez na classe de uma terceira professora, com a qual eu sempre estava trocando idéias sobre as conquistas e dúvidas dessa proposta. Sugeri que a colocação dos números na amarelinha fosse feita por duplas de crianças, procedimento ainda não muito comum em nossa prática, principalmente nessa faixa etária. Quando cheguei na sala, as crianças já estavam com suas amarelinhas no chão e a professora registrando os números que iria fornecer, em pequenos pedaços de papel. Na filmagem ficou nítido o quanto é importante o intercâmbio de informações. Observamos a riqueza que existe nesse processo, quando, no trabalho de uma das duplas, houve busca de estratégias diversificadas para a solução dos problemas que apareciam. Vimos a ação de uma criança ensinando à outra a importante estratégia de leitura de números fazendo uso do calendário que temos na sala: ela começava a contar desde o número 1 até chegar ao número desejado. Esse processo se repetiu algumas vezes, até a amarelinha ficar completa. Vimos também a importância do professor estar atento à formação dos subgrupos de trabalho, para que todos se beneficiem do intercâmbio de informações. Essa interação entre as crianças possibilita avanços em seus conhecimentos.

Analisar nosso próprio trabalho permite detectar falhas e avançar

Essa filmagem e sua análise nos mostrou a necessidade de repensar nossas concepções referentes ao diálogo entre ensino e aprendizagem. No que tange ao ensino, principalmente com relação ao papel do professor, que é o responsável por fazer intervenções que ajudem as crianças; e no que tange à aprendizagem, enquanto situação que deve envolver desafios, intercâmbio e cooperação entre as crianças. Após todo esse processo, tínhamos em mãos um material riquíssimo, que traduzia uma mesma proposta de seqüência de atividades de amarelinha, com diferentes abordagens, tanto de aprendizagem, na perspectiva das crianças, quanto de ensino, na perspectiva dos professores. O próximo passo foi pensar em como fazer para discutir com as professoras com maior profundidade. Elaborei algumas questões para direcionar o olhar e apoiar a reflexão junto ao grupo de professoras. Ao mesmo tempo, fui levantando uma bibliografia de apoio.

Como o nosso trabalho nunca é solitário, socializei a proposta com outras orientadoras, minhas colegas, que me ajudaram a pensar em questões para o encontro sobre tematização:

– Quais as competências que as professoras julgavam ter sido construídas pelas crianças durante as atividades filmadas?

– Como essas competências foram construídas ?

– Em quais momentos as crianças agiram como produtoras de conhecimento e não apenas como executoras de instruções ?

– Em quais situações tiveram a oportunidade de trocas com os parceiros ?

– Como analisam as diversas estratégias utilizadas pelas professoras?

– Qual o conteúdo não previsto no planejamento?

Além do enfoque na ação do professor, segundo sua concepção de aprendizagem, iríamos discutir também os conteúdos e objetivos vinculados à área de matemática que haviam sido trabalhados. Iniciamos o trabalho no HTC enfatizando o objetivo da tematização, ou seja, a valorização da prática que temos atualmente na escola, com suas diferentes concepções de aprendizagem, como precioso instrumento de reflexão e de aprimoramento do processo de ensino e de aprendizagem.

Uma análise que vai além do “estou certo ou errado”

Na tematização da prática não se busca descobrir o certo ou o errado, mas o que funciona para a aprendizagem e o que não funciona. Com esse enfoque, a discussão sobre a prática se tornou mais tranqüila para todos nós. Acredito que esse momento tenha se tornado um marco em nossa escola, pois evidenciou-se a importância do trabalho de tematização, a clareza dos objetivos perseguidos e o reconhecimento dessa prática como um material de formação. Após assistirem ao vídeo, as professoras se reuniram em subgrupos para refletir e debater as questões, com o objetivo de suscitar uma análise mais detalhada. Esse momento promoveu oportunidades de trocas, questionamentos, levantamentos de dúvidas, confronto de idéias e ocupou diversos HTCs.

A seguir, alguns pontos levantados e discutidos:

  • a importância das crianças em saber recitar a série numérica, como recurso a ser utilizado na leitura numérica (como aprendemos com o texto de Délia Lerner);
  • a descoberta do professor de que a “leitura” numérica era um conteúdo que estava presente na atividade, e que não foi considerado como tal; como esse conteúdo não havia sido considerado na elaboração da proposta, aceitamos que as crianças colassem os números como quisessem, não fazendo nenhuma intervenção e tendo como resultado amarelinhas totalmente desordenadas. Assim, ficamos satisfeitas
    com a recitação oral da sucessão dos números pelas crianças, mesmo quando esta não correspondia às escritas numéricas que elas apontavam com o dedinho;
  • levantamos a questão da ação dos professores frente à aprendizagem das crianças. A discussão foi muito rica, pois ficou claro que às vezes temos muito de “espontaneístas”, ou seja, as ações ficam apenas na constatação do que a criança já sabe e do que ela não sabe, ou ainda somos muito “diretivas”, quando fazemos tudo e impedimos a ação das crianças frente às situações. Vimos que, também na terceira turma, se as crianças aprenderam algo foi mais devido às intervenções do colega do que da professora. Como sair dessa situação? Como chegar à ação mais adequada frente às diversas situações com que nos deparamos?

Houve muita discussão, mas pudemos concluir que a cooperação é essencial na relação criança-criança, que a intervenção do professor é muito importante e precisa ser considerada. É também fundamental que o professor tenha clareza dos objetivos e conteúdos das atividades. Estamos atualmente desenvolvendo outra atividade com a turma do Inf. II, “a montagem de uma trilha”, já com um novo olhar sobre os conteúdos, os objetivos, a ação do professor , suas intervenções e as interações entre as crianças. Nesse processo, nos deparamos com novas dúvidas, que com certeza nos trarão novos conhecimentos, e tudo isso enriquecerá o processo de nossa formação.

Agradeço muito a colaboração das professoras Mônica de Fátima C. de Oliveira, Cláudia de Lima, Ana Luísa Barbosa, da estagiária Patrícia Mara de Paula Santos e dos alunos do Inf. II. Afinal, a formação é fruto da colaboração entre todos esses atores.

(Maria Cristina Köthe, Orientadora pedagógica de uma escola de educação infantil da Rede Municipal de São José dos Campos EMEI “Profa. Zilda Costa de Oliveira em 1999)

Amarelinha na sala de aula

A amarelinha, nesse caso, foi usada como recurso para aprender em uma situação orientada, com objetivos e conteúdos ligados à matemática, tais como a “série numérica oral” e a “leitura numérica”. É importante lembrar que há inúmeras outras possibilidades de aprendizagem para as crianças ao jogar amarelinha – questões ligadas ao movimento; equilíbrio e força; conteúdos vinculados aos valores e atitudes no jogo; conhecimento cultural das diferentes formas de jogar, noção espacial etc. Sobretudo não se deve esquecer que jogar amarelinha deve ser possibilitado às crianças também sem objetivos específicos, apenas pelo prazer e diversão que essa brincadeira oferece.

1 A este parceiro damos o nome de formador.

2 Em muitas escolas públicas foi instituído o horário de trabalho coletivo, que no Estado de São Paulo é chamado de HTC. Ele acontece duas vezes por semana, com a duração de duas horas e meia cada dia. Ele pode se constituir em um momento precioso para analisar a prática, rever objetivos e conteúdos e replanejar.

Bibliografia:

  • A Didática da Matemática – Reflexões. Délia Lerner e outros. Artes Médicas. Cap. 5 – Texto: “A Proposta é produzir ou interpretar – a ordem é um recurso” – pág. 123

Para saber mais:

  • Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, MEC, Vol. 3 – págs. 207 a 223
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