Areia: as crianças adoram, já os adultos…

Seja na praia ou no parquinho, no quintal ou na beira dos rios, os pequenos se deliciam com a areia. Mas, nos espaços de educação infantil, a vivência com a areia continua pouco incentivada. Veja como ela pode ser incorporada no dia-a-dia das crianças de forma criativa e segura
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Crianças brincam na EMEI Profa Ana Maria Pappovic

Dos centros urbanos às comunidades indígenas (como mostram algumas fotos deste artigo), a areia desperta o interesse, a imaginação e a alegria dos pequenos. Muitos são os motivos que os levam a manipulá-la, se divertir e aprender com ela. Para começar, é fácil brincar com a areia: bastam duas mãos ou um pedacinho de pau para criar formas e desenhos. A areia oferece bons desafios, como vencer sua resistência ou obter consistências diversas ao misturá-la com água. Encher baldes, formas, planejar um castelo ou outras construções possibilita às crianças vivenciarem conceitos que só mais tarde poderão ser formalizados. Observar a areia escorrer por tubos e canos, descer numa ampulheta ou fazer caminhos no chão são experiências que podem ser planejadas por um professor preocupado em estimular as crianças a construir conhecimentos.

Oportunidades de aprendizado

Além do mais, brincar com areia proporciona muitas simbologias. Usada como elemento neutro, ela pode fazer o papel de muitas coisas: comidinhas que são misturadas nas panelas com folhas e água; material de construção que caminhões e carrinholas carregam de lá para cá e daqui para lá; sujeira para ser varrida; “pó de pirlimpimpim”; ou o que for necessário para alimentar o faz-de-conta de cada um. Também pode ser simbólica do ponto de vista da linguagem, pois muitas vezes a areia se torna a “companhia” para a criança conversar consigo mesma e estabelecerem diferentes narrativas.

A areia possibilita ainda uma experiência sensória importante. Torna-se mote para interagir com o corpo de outras crianças. Em suas diferentes texturas e temperaturas, também leva a criança a conhecer a si própria e aos limites de seu corpo. Enterrar-se na areia, esconder os pés ou as mãos e poder descobri-los infinitas vezes proporciona uma sensação de controle que auxilia a criança a construir a sua identidade corporal. Até mesmo ao causar incômodo, quando gruda na pele ou no cabelo, permite que a criança viva essa situação e aprenda como lidar com ela. A areia com água também pode virar uma “meleca” que, no caso de crianças que estão aprendendo a usar o banheiro, pode se assemelhar à consistência das fezes, auxiliando-as na elaboração deste processo.

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Brincadeira do marimbondo acontece no centro da aldeia Kamaiurá – AM

Quebrando resistências
Parece-nos, portanto, que a Educação Infantil pode, e deve, tirar proveito dessas diferentes possibilidades de aprendizagem. Há inúmeras maneiras de planejar o contato das crianças com a areia desde muito cedo, bastando que tenham controle corporal suficiente para manipulá-la e que os devidos cuidados com segurança e higiene sejam garantidos. Para começar, precisamos convidar os profissionais da escola – do diretor às auxiliares de limpeza –, bem como os pais, a rever sua resistência às atividades com areia. Como o conceito de sujo e limpo é relativo em cada cultura, a areia pode ser considerada limpa o suficiente para “arear a panela” e ao mesmo tempo “uma sujeira”, quando retida no cabelo ou no sapato. São freqüentes as solicitações de pais e médicos para que as crianças não brinquem no tanque de areia, principalmente quando apresentam problemas de pele. Muitas mães reclamam da roupa, do calçado, do cabelo úmido ou “sujo”, temendo que os filhos adoeçam. Outras apontam a falta de tempo e de espaço para lavar e secar as peças diariamente. Em conseqüência, muitas escolas eliminam o tanque de areia e as brincadeiras com água para evitar conflitos com as famílias e com os profissionais de saúde.

Ouvir os pais, esclarecer dúvidas e ajudá-los a equacionar os problemas é parte da parceria com a família. É importante que a equipe leve em consideração suas queixas e as necessidades das crianças. Ao mesmo tempo, a escola deve sensibilizar e informar os adultos sobre a importância da atividade com areia e água. Apresentar ao posto de saúde e pais uma circular com os objetivos da proposta e os cuidados efetivos pode ajudar a esclarecer e evitar desentendimentos futuros. Certamente, os pais irão se sentir mais tranqüilos ao observar que a escola toma os devidos cuidados antes, durante e após as atividades com a areia, evitando que as crianças permaneçam com o cabelo, a roupa ou o calçado úmidos ou com areia.

A seguir, alguns pontos que merecem atenção da escola.

Cuidados com as crianças

  • As roupas e calçados devem ser adequados ao tipo de brincadeira. Providenciar, com ajuda dos familiares, bonés para proteção do sol.
  • Após a atividade, todas as crianças precisam lavar bem as mãos e antebraços e retirar resíduos que eventualmente tenham entrado na roupa ou sapato. O contato prolongado com areia ou água costuma trazer desconforto e irritação da pele. Mesmo os adultos, quando vão à praia e ficam na areia, logo gostam de tomar uma ducha, mudar de roupa e calçado.
  • As crianças que cumprem o período integral necessitam de banho ou cuidados de higiene parcial para remoção completa da areia do corpo, calçado e roupa.
  • As crianças devem ser orientadas e supervisionadas para que não joguem areia no rosto dos amigos e para não levarem areia com as mãos para os próprios olhos.
  • Em caso de acidente com areia no olho, lavar imediatamente com água limpa abundante ou soro fisiológico e encaminhar ao serviço de saúde para avaliação.
  • Crianças que apresentem deficiência visual significativa necessitam de orientação do oftalmologista quanto ao risco de acidente resultante de contato com areia – algumas dessas crianças podem ter o reflexo corneano diminuído ou ausente, facilitando a entrada da areia nos olhos, o que pode agravar a lesão pre-existente.
  • Caso alguma criança apresente reação alérgica ao contato com areia, é necessário consultar o profissional de saúde para combinar os cuidados específicos. Nos casos em que há contra-indicação total ao contato direto com a areia, deve-se substituir esta brincadeira por outra e explicar o motivo para a criança e seus amigos.

Prevenir contaminações
Além dos cuidados com as crianças durante a brincadeira, é importante prevenir a contaminação da areia. Não é raro que os tanques sejam contaminados por dejetos de animais domésticos, principalmente gatos, que são animais de hábitos noturnos e costumam sair de casa e usar os tanques de areia para enterrar suas fezes. As fezes dos animais podem hospedar parasitas com risco potencial de transmissão de diferentes doenças. Uma delas é a toxoplasmose. Os seres humanos, principalmente crianças, infectam-se ao ingerir acidentalmente ovos do parasita presentes no solo, por meio de mãos contaminadas. Evita-se a toxoplasmose ao não ingerir carne crua ou malpassada, verduras mal lavadas e ao evitar o contato com fezes de gato. Outra doença comum é o conhecido “bicho geográfico”, causado pelas larvas do gênero Ancylostoma spp. Essas larvas penetram na pele e andam por debaixo dela, provocando uma erupção semelhante a um caminho tortuoso.

Vale ressaltar que esse risco de contaminação dos tanques de areia não é maior, entretanto, do que das praças públicas e da própria praia. Em vez de eliminar esta rica atividade simbólica e exploratória da vida das crianças, é preferível tomar alguns cuidados básicos.

Cuidados com a higiene do local

  • Colocar telas ao redor do tanque de areia para evitar o acesso de animais. Caso seja impossível esse isolamento, recolher imediatamente fezes de animais e descartar.
  • Fazer um exame parasitológico da areia antes de colocá-la em uso e repeti-lo periodicamente, pelo menos de seis em seis meses.
  • Na sexta-feira, desinfetar a areia (ver abaixo) e revolvê-la, voltando a revolvê-la na segundafeira antes de as crianças a usarem.
  • Lavar os brinquedos de areia com o mesmo cuidado e freqüência com que se cuida dos brinquedos de sala.
  • Construir o tanque de areia com sistema de drenagem que o impeça de ficar úmido e empapado em dias de chuva.
  • Deixar o tanque em local ventilado e ensolarado.
  • Cobrir o tanque com plástico resistente ou lona, principalmente à noite.
  • Não permitir que durante reformas ou pinturas sejam misturados restos de cal, cimento ou outras substâncias químicas na areia, devido ao risco de intoxicação e queimadura.
  • Revolver, de tempos em tempos, a areia das partes mais profundas para as mais superficiais, assim como das áreas sombreadas para as ensolaradas.
  • Periodicamente, peneirar a areia para retirar pedrinhas, galinhos e pequenos objetos perdidos ou até mesmo “escondidos” pelas próprias crianças.
  • Qualquer dúvida sobre esse assunto ou procedimento a ser adotado, contatar o Centro de Controle de Zoonoses da sua cidade.

Buscar alternativas
Se não for possível manter um tanque de areia na área externa da escola, convém buscar uma alternativa para levá-la para o interior da sala. Podem ser usados recipientes de plástico que tenham tampa ou possam ser cobertos com material lavável. Eles podem ser instalados na altura da cintura das crianças para que possam brincar com as mãos sem precisar sentar na areia. O importante é proporcionar atividades com areia que tanto agradam as crianças e enriquecem suas aprendizagens.

(Damaris Gomes Maranhão, doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo-Unifesp e formadora do Instituto Avisa Lá e Cisele Ortiz, psicóloga e coordenadora de Projetos do Instituto Avisa Lá)

Em seu próprio ritmo, cada criança começa a explorar os recursos da areia

Em seu próprio ritmo, cada criança começa a explorar os recursos da areia

Como desinfetar o tanque de areia

É recomendável desinfetar a areia semanalmente. A desinfecção deve ser feita quando a creche estiver sem crianças. Uma sugestão é aproveitar o final das atividades da sexta-feira. A manipulação de produtos clorados exige cuidados com a dispensa dos vasilhames vazios e uso de equipamento de proteção individual pelos trabalhadores envolvidos na tarefa. Vale destacar que a solução clorada não elimina todos os parasitas ou bactérias que eventualmente estejam na areia.

  1. Usar 10 gramas de hipoclorito de sódio (em pó) em 1 litro de água para cada metro quadrado de areia. Se você utilizar água sanitária a 2,5%, preparar uma solução com 15 colheres deste produto + 2,5 litros de vinagre em 5 litros de água para cada metro quadrado.
  2. Aplicar a solução, revolver bem e não usar o tanque por dois dias.
  3. Na segunda-feira, revolver a areia novamente antes de usar.

(Manual Creche Saudável – CECIP/ ASBRAC/ UNICEF, Rio de Janeiro, 1997)

Brincadeiras das crianças A’uwe-Xavante

comunidade A’uwe-Xavante, no Parque Indígena do Xingu1, no Norte do Mato Grosso. Especialmente, mulheres e crianças lá se reúnem para lavar roupas e utensílios, banhar-se, refrescar-se ou simplesmente conversar e brincar. Os meninos ajudam a transportar as bacias e recipientes de água. As meninas, a lavar a louça e as roupas. Enquanto fazem suas tarefas, facilmente se distraem com o canto de um pássaro num galho próximo, com a forma das pedrinhas e folhas caídas na beirada, com as cores do barro ou o barulho da correnteza. Perdem a conta das vezes que enchem e esvaziam, com água e areia, os recipientes que estão lavando. Experimentam soltá-los na água para ver se flutuam ou não. As crianças menores também tentam ajudar e sempre encontram algo para virar e revirar, esforçando-se para que fique limpo.

Quando a terra está úmida, ela pode ser facilmente riscada com uma vareta. A espessura e o comprimento da vareta vão determinar traços diferenciados e obrigar jeitos diversos de manuseio. Tampas de latas são usadas para conseguir novos contornos. Quando a terra está seca, a técnica é outra. As crianças trazem água do rio dentro de garrafas e, dependendo do diâmetro do gargalo ou do esguicho conseguido, o desenho nasce da marca da água escurecendo e umedecendo o chão castanho-claro. Além das formas desenhadas, elas observam a rápida evaporação, que causa diferentes gradações de castanho-escuro, até que tudo fique castanho-claro e seco de novo…

Moldam a terra, criando detalhes. Usam pinhas, pedacinhos de pano, borracha e plástico, tampinhas de garrafa, latinhas, papéis coloridos que coletam pelo chão da aldeia antes de começar a brincadeira

1O famoso Parque Indígena do Xingu, na região Norte do Mato Grosso, é considerado a maior área indígena do mundo. Abriga mais de uma dezena de etnias, distribuídas em 49 aldeias e postos, com uma população de cerca de 4,7 mil pessoas.

A areia também está presente no dia-a-dia da comunidade Kamaiurá

A areia também está presente no dia-a-dia da comunidade Kamaiurá

Para saber mais

Livros

  • Crianças Indígenas – Ensaios Antropológicos, (Orgs.) Aracy Lopes da Silva, Ana Vera Lopes da Silva Macedo e Ângela Nunes. Ed. Global. Tel.: (11) 3277-7999.
  • Histórias de Índio, Daniel Mundukuru. Cia. das Letrinhas. Tel.: (11) 3707-3500
  • A Sociedade das Crianças A’ Uwe-Xavante: Por uma Antropologia da Criança, Ângela Maria Nunes Machado Pereira. São Paulo, 1997. (Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – Departamento de Antropologia). Biblioteca Florestan Fernandes. Tel.: (11) 3091-4847.
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