A arte de criar ambientes que educam

“Os espaços sempre transmitem algo”, diz Helô Pavan, diretora da Escola Viva.“Então, é melhor ocupá-los e usá-los para comunicar as idéias que nos interessam”

As pontes de Monet, estudadas por uma turma da escola, inspiraram a construção desse jardim

A formação em arte e o olhar bastante apurado permitiram a Helô Pavan reconhecer e valorizar o que é fundamental e apreciável na produção infantil.

A escola, na sua concepção, é mais do que uma vitrine, é fonte de permanente surpresa, o encontro do olhar com as referências inusitadas e enriquecedoras que se oferece em cada canto: uma linda mandala de sementes e desenhos de uma turma na parede da sala de recepção, belas exposições de pinturas, desenhos e tudo o mais, organizados em painéis caprichados nos corredores, móbiles e outras instalações que criam uma interferência interessante no espaço… e tudo com marca das crianças.

O cuidado estético na organização de ambientes está intrinsecamente relacionado aos valores que se pretende ensinar, à qualidade da educação, de modo que não conseguimos falar em decoração sem falar em proposta pedagógica.

avisa lá:
A beleza em cada detalhe do que se apresenta dentro e fora da escola é uma marca da Escola Viva. De onde vem essa preocupação? Sempre foi assim?

Helô: Desde a origem da escola. Minhas sócias e eu éramos professoras entre os anos 60 e 70. Nos preocupávamos com que tudo tivesse um sentido para as crianças, que se envolvessem com o conhecimento para poder aprender. Naquela época, já fazíamos alguns projetos ligados às artes.

Foi desse gosto e necessidade que nos aproximamos da arte-educação. Fizemos o curso da Fanny Abramovich, e eu trabalhei no ateliê de arte São Paulo, com a Ana Mae Barbosa. Percebemos que a arte possibilitava elaborar o conhecimento de um jeito diferente das outras áreas.

Então, criamos um ateliê, um espaço de complementação à escola, de expressão, que, na época, era uma questão importante e delicada, e começamos a desenvolver um trabalho com música, expressão corporal e artes plásticas.

Esse ateliê se transformou, tempos depois, na Escola Viva. Por causa dessa origem as idéias da arte-educação ficaram muito fortes para nós, a importância da linguagem espacial, da imagética…

avisa lá: Pensar espaços, objetos e materiais faz parte da proposta pedagógica, é mesmo uma questão educativa ou é apenas assunto para decorador?

Helô: É questão educativa, porque também é curricular.Você passa conteúdo através do que oferece e do que não oferece como estímulo. De qualquer jeito está informando, está provocando pensamento, cuidando de uma ou outra competência, priorizando uma coisa e não outra. Então, é preciso ter consciência para que possamos sustentar escolhas. Não é só porque é bonito ou prático. Um bom exemplo é esse chão de terra: manter o piso natural dá mais trabalho do que o chão convencional de cimento, por incrível que pareça.

O contato com a natureza é um dos princípios da Escola Viva

Quem vê pode até achar que é um desleixo, que não se quer gastar dinheiro para cimentar. Mas, não! É o contrário! Dá muito mais trabalho, e é muito mais difícil cuidar para que não forme poças, não fique aquela lama permanente. É mais caro, inclusive. Todo ano refazemos o serviço de perfurar o chão e refazer canaletas para que a água possa escoar rápido, mas também queremos algumas poças no parque, é nosso objetivo.

Os pais sabem, está escrito nas nossas normas internas que nos dias de chuva, por causa das poças d’água, as crianças precisam vir de sapatos mais adequados e confortáveis. Essa é uma escolha definida pela escola.

A mesma coisa acontece com os viveiros dos animas, com as árvores, a horta, os latões de sucata seletiva, que precisam ser limpos, exigem pessoas encarregadas só para fazer isso. São coisas que a gente tem que saber conscientemente e reconhecer o retorno, porque tem um gasto aí.

avisa lá: Por que compensa manter um parque de terra com árvores que derrubam folhas, com água que empoça etc.? Qual é a lógica?

Helô: As crianças que atendemos aqui são bastante estimuladas intelectualmente, incentivadas em casa, mas os aspectos mais relacionados à autonomia, à mobilidade, ficam prejudicados porque em geral essas crianças têm muitas empregadas, são mais tuteladas.

Como educadores, percebemos essa necessidade, sabemos que, se não oferecermos essa experiência a elas enquanto estão na escola, vai ficar faltando esse aspecto na sua formação. Por isso é tão importante, para nós, manter espaços onde as crianças possam fazer experiências, se sujar, estar mais próximas da natureza.

Queremos que elas respeitem a natureza, e isso exige planejamento cuidadoso. Pensamos isso antes mesmo dessa urgência da discussão sobre meio ambiente, a questão ecológica… na verdade, vem do Freinet essa orientação de promover contato com a natureza.

Por dois anos, crianças e pais arquitetos trabalharam no projeto da casinha de árvore

As crianças podem subir em algumas das árvores do parque, sinalizamos as que podem e as que não podem subir para que haja uma interação real. É importante para uma criança conhecer as árvores frutíferas, em que época vão colher os frutos, como vão se organizar para isso. E é incrível ver como hoje as nossas árvores estão muito mais preservadas do que antigamente.

avisa lá: Além de manter presentes alguns elementos da natureza, o que mais a escola considera como princípio para a organização dos ambientes?

Helô:
Oferecemos terra, espaços diversificados, boas imagens, contato com várias linguagens… essa diversidade e multiplicidade é que tanto enriquecem a nossa busca. Procuramos diversificar desde a escolha das plantas: buscamos as que têm cheiro, tamanhos diferentes, plantamos trepadeira, florzinha pequena, árvores frondosas que dão frutos.

Quando pensamos em um tipo de revestimento, variamos as pedrinhas, bambuzinhos, umas coisas mais frias, outras mais quentes, umas cheirosas, outras nem tanto.Tudo para enriquecer o universo das crianças. Buscamos as diferenças, isso é um ponto importante, uma harmonia dos sentidos na multiplicidade, desde o mobiliário até entre a equipe.

avisa lá:
É verdade que qualquer mudança ou investimento envolve muitos gastos? O que dá para fazer com pouco dinheiro?

Helô:
Nem sempre é caro. É preciso fazer o que cabe no bolso, até porque o que é esteticamente bonito e bom pode ser barato. Não só o barato em função do custo, para economizar, mas para não ficar ostensivo, porque isso não é harmonioso com o que queremos mostrar. O simples ressalta as relações, o que vem das crianças. Isso é que é o mais importante na escola.

Queremos que as coisas e os espaços sejam ao mesmo tempo utilitários e esteticamente corretos, sem grandes enfeites. E por que tem que ser mais neutro? Para aparecer o desenho da criança, seu trabalho, que é o mais importante. E, para nós, também é importante a preocupação ética de reaproveitar e transformar a sucata, fazer de uma latinha um lugar simpático para plantar.

Veja essa luminária, é feita pelas crianças para a festa das cores1: é uma lanterna de lata e papel vegetal desenhado e colorido por elas mesmas usando várias técnicas. As crianças fazem experiências de acender a luminária na escola, no escuro. À noite, no dia da festa, todas são acesas como parte do ritual.

Depois levam para casa como uma lembrança. Esse objeto é simples, mas foi superpensado: a idéia da luminária como um símbolo da chama da escola que acompanha as crianças para o resto da vida, pensamos jeitos de executar, que materiais usar, como a criança colocaria seu desenho.

A composição de desenhos de aves e sementes decora a recepção da escola
e no parque uma linda mandala feita pelas crianças com pedrinhas

avisa lá: A simplicidade também está nos espaços externos? As crianças interferem neles?

Helô: Aproveitamos as produções e idéias das crianças para decorar os ambientes. Elas até constroem instalações como a casa da árvore, por exemplo, que foi idéia de uma turma que, por dois anos, junto com os pais arquitetos, fizeram o projeto, a maquete.

Por fim construímos a casa em torno da árvore, que tem uma conotação estética e também funcional porque as crianças brincam lá. Tem uma mandala que elas fizeram e que está instalada no parque. Tinha uma casinha que hoje não existe mais, que as crianças colocaram o nome de Tina e que foi construída junto com um pedreiro.

Às vezes tem um trabalho mais pontual, elaborado em um ano, que depois vira um mosaico para decorar a parede da escola. E sempre tem uma exposição permanente da turma, que ocupa o mural fora da classe, fruto de um projeto específico ou de produções selecionadas pelas crianças.

avisa lá: Como os espaços internos e externos se relacionam? Qual é o limite do espaço individual e do coletivo?

Helô: É importante pensar em espaços que proporcionem intimidade e aconchego, que permitam que possamos receber uma criança sozinha na chegada e preservar um pouco essa relação. Temos muita carência de privacidade, há sempre muitos olhos, a escola precisa oferecer lugar de aconchego e ao mesmo tempo de privacidade, lugar onde as crianças possam não se preocupar com o que é perigoso sem ser descuidado.

Precisa haver lugar para o indivíduo. Na Escola Viva, temos esses espaços reservados e outros coletivos que compõem uma espécie de minicidadezinha, um universo microssocial, com uma estrutura pública.

As salas, por exemplo, têm vários espaços: um mais circunscrito, outro intermediário, que é uma espécie de apêndice da classe, depois tem o espaço externo. Todas as salas têm essa estrutura. Elas dão para uma praça sinalizada que permite que as crianças circulem, que possam encontrar os espaços distantes uns dos outros, isso exige um percurso. O ateliê para as crianças de 6 anos, por exemplo, e o de marcenaria mantêm distância de quase 500 metros, por isso as crianças precisam saber se localizar.

Além disso, tem os espaços comuns, especialmente pensados para cada atividade: uma sala mais funcional para experiências, as salas confortáveis para assistir vídeos, uma outra mais acolhedora, com uma possibilidade acústica interessante para ouvir música, e alguns cantos de faz-de-conta coletivo.

Os painéis da sala expõem produções diversificadas escolhidas pelas próprias crianças

avisa lá: Vamos falar de detalhes práticos: como você disse, tudo informa e transmite valores, até as paredes. Como elas são tratadas nessa escola?

Helô: Quando começa o ano, as paredes das salas de aula são brancas. A decoração tem a ver com o que tem sentido para aquele grupo, aquele professor. Esse é um ponto muito importante. É preciso ser clean, porque as crianças já têm uniformes coloridos, de acordo com cada turma, mas são elas quem vão decorando a escola com trabalhos que escolhem e expõem.

Isso não significa que o professor não tenha que fazer uma seleção, que não tenha um olhar estético que vai se apurando e se desenvolvendo. Essa é uma idéia que tentamos desenvolver na escola, em nossos profissionais. Quem organiza e garante os painéis e murais, por exemplo, é o professor.

Às vezes é ele quem seleciona, outras vezes faz isso junto com as crianças, como parte de avaliação, mas é sempre o professor que estuda como vai colocar os nomes, o suporte, como será o fundo, que cor é o papel que combina com o que vai ser exposto e tudo o mais. Ele é um curador: o mural também é uma expressão artística, não precisa ser uma “obra de arte”, mas é uma expressão de comunicação e tem um cunho artístico que precisa ser visto. Os professores sempre surpreendem, dão idéias muito enriquecedoras.

E as crianças aproveitam e também se enriquecem: vão olhar, conhecer e apreciar os painéis das outras classes, os trabalhos que acontecem na escola.

avisa lá: Tudo muda sempre, está em permanente construção, ou há espaços e objetos que permanecem em função de cada faixa etária?

Helô: A gente não tem decoração fixa. Nossas salas têm de tudo, em função do que o professor está pensando em termos de projeto, e o que vai para a sala é aquela referência: o projeto vai dar a cara do ambiente. Claro que o professor vai estar junto, ele não vai escolher o que não se identifica.

É importante o que ele gosta como pessoa, a referência tem que ser importante para ele também, de modo que faça parte do trabalho. Não temos uma definição fixa, Miró para um, Van Gogh para outro. Tem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e às vezes a referência mais importante é um desenho de criança.

Tomamos cuidado para não ter uma poluição visual: às vezes, chega o fim do ano e a sala inteira está tomada. Mostramos aos professores que a sala pode ser mais clean. No fim do semestre, as salas voltam a ficar brancas, só permanece o que vai continuar sendo estudado no semestre seguinte.

avisa lá: Quais são os critérios para as mudanças e reorganização das salas, a cada ano?

Helô: No fim do ano e no começo do semestre sempre há uma grande modificação. O espaço vai se transformando. Há épocas em que se tira tudo e se colocam novos painéis conforme o que se está trabalhando, quando muda a proposta ou o projeto. Não só os painéis, mas toda a disposição do mobiliário da escola, o modo como a gente acolhe as crianças no espaço.

Queremos favorecer o professor mantendo o foco na criança, por isso organizamos o espaço de várias formas, de modo que possa atender às necessidades de seus alunos: pode criar pequenos cantos em algum momento, abrir a sala toda para uma grande roda, se for necessário deixar as crianças disporem o mobiliário para brincar de faz-de-conta que vai variar em função da rotina e do planejamento que é do professor.

A gente tem uma linha comum de toda a escola, mas o professor tem que planejar em função das necessidades de seus alunos. O ambiente é fundamental na educação infantil, faz parte do currículo e do planejamento do nosso professor saber organizar o espaço.

O laguinho dos marrecos é visto pelas crianças de diferentes ângulos


avisa lá:
Todos os materiais da escola são muito bem cuidados do ponto de vista estético. Isso é intencional? É um princípio da escola?

Helô: O mesmo cuidado que temos com o adulto, também temos com a criança, não fazemos distinção. Não é porque é criança que vamos tratar de forma pueril, simplificada. Damos importância para a formação de nossos alunos e queremos atendê-los com seriedade.

Essa foi a preocupação original e permanece até hoje. Nunca vamos levar para as crianças um Mickey, um Pato Donald ou qualquer outra coisa que não tenha uma referência estética relevante: ou é um desenho das próprias crianças, que selecionamos com elas, ou é uma pintura, reprodução de algum artista, uma bela fotografia, uma peça de artesanato folclórico interessante…buscamos esse tipo de referência para todos nossos alunos2, desde muito cedo.

avisa lá: E o que a escola privilegia, no lugar das imagens pueris e estereotipadas, tão comuns na decoração de ambientes infantis?

Helô: Queremos oferecer outros elementos, a antítese das imagens estereotipadas. Preferimos algo que represente a participação efetiva de todos em um trabalho. Não é um exercício de prontidão que nossos alunos vão fazer, eles vão viver de um jeito produtivo, envolvidos num trabalho que tem uma exigência, claro, mas que tem um produto significativo que traz realização pessoal.

Essa coisa pueril…veja, se você for olhar o gosto da criança, ela gosta do cor-de-rosa, mesmo. Mas a referência dada por nós não precisa reforçar, ela deve servir exatamente para provocar, dar outra possibilidade, afinal o gosto se aprende, agente não nasce gostando do Mickey.

Tem que se preocupar com tudo o que se traz para dentro da escola: se vamos trazer uma peça teatral, temos que analisar a qualidade do conteúdo e da forma. O concerto vai tocar Chico Buarque também, não só músicas produzidas ou rotuladas para o público infantil.

A gente toca músicas infantis do repertório trazido pelos professores e também pelas crianças. E elas também trazem brinquedos do Mickey, fantasias de outros personagens…não é fechado, nem é proibido, e ninguém é criticado ou desvalorizado por isso.

Mas quando a escola vai dar a referência tem o objetivo de enriquecer o repertório das crianças. A mídia já está aí para oferecer o resto, a gente tem é que provocar, oferecer o que complementa a experiência delas.

Materiais naturais para os brinquedos do parque em vez de plástico

avisa lá: Diante de todos os luxos que se pode comprar, o que a escola pode oferecer para complementar as experiências das crianças?

Helô: Os brinquedos, por exemplo. Os pais de nossos alunos têm um certo poder aquisitivo, podem comprar muitos brinquedos para as crianças. Então a escola não vai oferecer mais, mas sim o brinquedo artesanal, feito junto com o grupo: confeccionamos cortinas, móbiles, painéis, mandalas com pecinhas que as crianças fazem com sua turma, com a professora ou mesmo com os pais, em um evento na escola.

Brincar com o peão, a bola de gude, fazer uma boneca de pano são coisas que a gente sabe que são novas para nossos alunos. Buscamos e valorizamos o simples porque o sofisticado elas já têm.

O mesmo não seria se estivéssemos trabalhando com crianças que têm pouco acesso aos brinquedos industrializados, para essas seria interessante oferecer também a Barbie, por exemplo, porque também é legal brincar com a Barbie.

avisa lá: Como a escola consegue manter o tempo todo a marca de criança e ao mesmo tempo é tão bem arrumada?

Helô: Bem arrumada? Sempre tem o que arrumar, a equipe toda precisa ter esse entendimento, mas não pode ser uma coisa autoritária, não posso ficar policiando. Procuramos passar para as pessoas a importância disso, permanentemente.

É um exercício de trabalho cooperativo: buscamos sempre, desde a coordenação, essa diversidade de olhares e competências. Temos um trabalho de formação da equipe dos adultos para que tenham esse entendimento. Os adultos, em geral, têm a perspectiva do prático, mas o critério da escola nem sempre é o prático. Essa mentalidade deve ser mudada.

Temos realizado eventos específicos na escola que servem para isso, não só para propaganda. Nos preocupamos em socializar os princípios da escola, por isso queremos que os pais participem, que vivam conosco experiências semelhantes às que as crianças vivem aqui, diariamente.

1 Ritual de passagem da pré-escola para a escola de ensino fundamental.
2 A Escola Viva atende crianças de 2 a 14 anos.

Escola Viva. Tel.: (11) 3846-0646
www.escolaviva.com.br

No corredor, a casinha dos pequenos tem contas coloridas

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