Ao contrário do senso comum, as crianças pensam de forma complexa e não linear
Estamos bastante acostumados, na vida e na escola, a uma noção de tempo diacrônica, segundo a qual organizamos os fatos à nossa volta em relações de causa e efeito. Ensinamos a criança a ler e escrever. Em breve, ela aprenderá e se tornará letrada. Cuidamos bem de um bebê. Logo, ele se mostrará grato e se sentirá bem. Entretanto, outras civilizações, como a chinesa, concebem o tempo de modo sincrônico. Assim, acontecimentos interligados no tempo e no espaço são significativos para uma pessoa que participe deles e isso abre possibilidades para conhecimentos que diferem e ultrapassam a razão racionalista, digamos assim. Eles conjugam razão, intuição, sensação e sentimento, e quem os experimenta se aproxima da sabedoria e não apenas acumula informações culturais.
Creio que os pequenos aprendem, ou melhor dizendo, apenas são e existem em campos e movimentos sincrônicos. Às vezes, com sorte, os que tenham mantido a espontaneidade nos fazem perguntas que, tal como a pontinha de um iceberg, nos revelam a extensão de seus saberes, gerados pelo fato de estarem presentes em determinados eventos em um período. Mais próximos da natureza, assim como os elefantes que entraram em fuga horas antes dos tsunami atingirem as costas da Indonésia ou, mais recentemente, animais que sentiram antecipadamente o terremoto que atingiria a China, eles têm percepção aguçada em relação aos fenômenos, exatamente por participarem deles sem cisões entre corpo e alma, mente e espírito, razão e sensibilidade.
Lembro-me de três exemplos, de certo modo, tentativas de se situarem no tempo e no espaço. Vale destacar que o milenar jogo de adivinhação chinês I Ching “consiste em usar um modelo mental intuitivo para ler os eventos – os números inteiros naturais. O pressuposto primordial chinês é que, exterior e interiormente, tudo é fluxo de energia que obedece a certos ritmos numéricos básicos e periódicos1”. Nessas recordações, creio que durante a infância, os humanos fazem uso dos números naturais para lançar longe a flecha de seus possíveis conhecimentos.
Avó, dinossauro e Deus
Há muitos anos, quando eu era professora em uma turma com idades entre 4 e 5 anos, uma menina desenhava placidamente quando, sem preâmbulos, virou o rostinho para mim e perguntou: “Monique, quem é mais velho? Minha avó, o dinossauro ou o Deus?” A voz de Iná continua ressoando em mim até hoje, porém, em dado momento escrevi2: “Essa pergunta maravilhosa mostra que ela procurou utilizar alguns pilares – pontos fixos – para conceber o tempo histórico. A avó, o dinossauro e o Deus são referências que ela já conhece e pensou que se conseguisse estabelecer uma seqüência, seriar esses três elementos, poderia ter uma noção sobre a passagem do tempo. Respondi que o mais velho é o Deus, depois vem o dinossauro e, em seguida, a avó. Ela me pareceu satisfeita. Penso que essa informação foi estruturante, permitindo a ela fazer inter- relações entre o que já sabia sobre o tempo e que buscasse novas informações que se encaixassem em sua maneira de pensar”.
Naquele momento, fizemos associações entre as três citações utilizadas pela garotinha. No entanto, o tempo não cessa de escorrer por nossas mãos, e agora faço minha a pergunta da Iná, e penso: O que eu aprendi com ela?
- Permanência: A avó, o dinossauro e o Deus são seres que ficam, que são para a menina imemoriais, grandes referências em torno das quais o tempo permanece imutável. Que surpresa pensar que um dia – há quantos anos? – a avó foi igualmente pequena! De qualquer forma, apazigua o coração pensar que nem tudo se transforma, que há seres, imagens, símbolos que são, se manifestam.
- Transcendência: As menções feitas por Iná não são triviais. Elas implicam visão de mundo sutil, sensível, em que sim, seres são, mas sempre dizem, significam, reverberam outras coisas sobre as quais nada sabemos a priori. Sempre poderemos descobrir mais, e todo conhecimento que tenhamos será ultrapassado por novas experiências vividas.
- Expressão: Ser capaz de comunicar ou compartilhar algo que não se explica e que segue ecoando em nós por toda a vida.
- Síntese: Tudo em tão pouco
- Unidade: São três elementos que se conjugam em uma pergunta: o quê, como, quando? Assim, 1+1+1=I, toda criação ou aprendizagem nos leva a uma outra unidade.
O maior número
O segundo caso ocorreu em um dia de chuva. Todos os pequenos estavam reunidos no salão da escola que, aliás, não era tão grande assim. Tratavase de um cômodo de uma casa comum, com brinquedos, pois não poderíamos ir à área externa devido à chuva torrencial. Devido à algazarra das crianças, um senhor que estava na cozinha consertando a geladeira fazia 15 minutos, saiu gritando:
“Dona, não agüento mais esse barulho! Quando estiver tudo quieto, me chama que eu volto”. Quanto a mim, eu estava no melhor dos mundos. Nesse momento, uma menininha (terá sido Aninha?) emergiu de uma grande minhoca de pano e argolas e me perguntou:
“Não é verdade que não existe nada menor que um?” Essa questão nos lança ao infinito e nos leva ao terceiro exemplo. Ivo, um extraordinário garoto que, com seus colegas Joab, Camila, Wesley, Paulo e Dhevedy, procurava compreender nosso sistema numérico em uma atividade coordenada pela educadora Priscila Monteiro3:
“[…] pedi que as crianças sentassem frente a frente com um colega. Cada um deveria escrever o maior número que soubesse e, depois, compará-lo com o amigo. Ganharia o jogo quem cumprisse o pedido”.
Como vemos acima, dado que ele precisaria registrar o maior número do mundo, começou então a escrever bem no topo da folha em branco, gerando a partir dali linhas organizadoras. Com isso, faço as seguintes suposições:
- Antecipação: Aprendemos com ele que um número grande deverá ter muitos algarismos e que, para representá-lo, é preciso aproveitar ao máximo a folha de papel.
- Potência: Em cada uma das linhas, Ivo colocou uma porção generosa de zeros na suposição muito correta de que um número grande tem muitos zeros ou várias potências de dez. Sobre essa questão capital, Paulo e Dhevedy também argumentaram: Eu acho que ganhei, porque fiz mais mil. Mas eu fiz mais cens! Mais cens… eu fiz mais mil e mil é maior que cem.
- Valor posicional:Na primeira linha, vemos 1099 1000000000 na hipótese de que o primeiro algarismo manda no resto. Ivo parece indicar uma dúvida. O que é maior: dez ou nove? Essa incerteza parece persistir em outras linhas e não sabemos se para ele cada linha é um reinício ou se tudo começa mesmo lá em cima, onde há até um eloqüente recuo de parágrafo.
- Regra decimal: Depois do nove vem o dez. Mas que virada é essa? Será que o dez é maior que o nove? Ou será que noves (como na quarta linha, escritos também com caracteres um pouco maiores) são maiores e tornam o número todo maior do que os zeros?
- Variedade: Um número grande não pode ser composto apenas de potências de dez e de noves. Dessa maneira, logo na segunda linha, vemos outros algarismos como quatro, seis, cinco, sete e variações que seguem até o fim.
- 6 – Composição: Para Ivo, eles não estão isolados. Formam um todo e estão agrupados, em geral, em potências de dez, como vemos nitidamente na sexta linha: 000 3000 0000 40 000000 5 00 0000 0 700000.
- Jogo: Ganha quem tiver atendido ao pedido da professora e, como conseqüência, a paciência imensa de escrever tantos algarismos com significados pertinentes às regras do sistema decimal com valor posicional. Isso só pode se referir à autoregulação e à disciplina, ou seja, à aprendizagem propriamente dita. Aqui cabe, a meu ver, o último parágrafo do livro já citado de Marie-Louise Von Franz: “Essa atitude é idêntica ao que eu chamaria uma atitude religiosa básica: estar completamente envolvido na vida e, ao mesmo tempo, pronto para perder num jogo limpo. […] Os chineses sempre identificam a idéia de legitimidade na natureza como não sendo uma lei absolutamente determinada, no sentido em que a concebemos, mas tão somente uma probabilidade com certa dose de jogo. Não é uma lei completamente rígida, e o mesmo ocorre com os rituais e com os jogos, nos quais está envolvido um elemento não muito rígido. Assim, os chineses dizem que, por meio de um jogo virtuoso e solene, podemos ficar mais próximos de descobrir a ordem objetiva do universo”.
Até hoje não consegui aprender com Ivo o bastante para propor a ele uma atividade ou seqüência didática. O mesmo acontece em relação às perguntas de Iná e Aninha: “Quem é mais velho? Minha avó, o dinossauro ou o Deus?” e “Não é verdade que não existe nada menor que um?” O que você, leitor, faria? Por favor, escreva e me conte.
(Monique Deheinzelin, educadora e autora do livro Construtivismo, a poética das transformações – Ed. Ática, entre outros)
1Trecho retirado do livro Adivinhação e sincronicidade, a psicologia da probabilidade significativa, Marie-Louise Von Franz (Ed. Cultrix).
2No livro Professor da pré-escola, vol. I e II (Ed. Globo), elaborado por uma equipe da qual fiz parte, para um projeto realizado pelo Ministério da Educação e pela Fundação Roberto Marinho, composto por livros e por uma série de 20 programas em vídeo intitulada Menino, quem foi teu mestre?
3O texto faz parte do artigo “O maior número do mundo”, Priscila Monteiro, in revista Por Um Triz, número 6, página 12.
Ficha técnica
Monique Deheinzelin
E-mail: moniqued@uol.com.br
Para saber mais
- Por um triz – atividades e projetos educativos, Instituto C&A de Desenvolvimento Social. Ed. Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399
- Professor da pré-escola, vol. I e II. Ministério da Educação e Cultura e Fundação Roberto Marinho. Site: www.editoraglobo.com.br
- Trilha – Educação, construtivismo e uma entrevista com Caetano Veloso, Monique Deheinzelin. Ed. Vozes. Tel.: (24) 2233-9000