Calorias e preconceitos

Reza a lenda que Calorias são seres minúsculos, praticamente invisíveis, que se escondem nos armários (têm preferência pelos femininos) e trabalham a noite toda, apertando as roupas. Já os Preconceitos são seres com características semelhantes de tamanho e invisibilidade, que formam uma família grande, mas com um traço comum: a violência moral ou física.

Alguns Preconceitos circulam livremente à luz do Sol, pois não têm medo de serem vistos. Acham que têm razão e, por isso, se mostram. São truculentos e valentões. Massacram quem não concorda com seus pontos de vista, pois não têm argumentos que resistam à reflexão ou à comprovação. Reproduzem-se de forma exuberante, especialmente em algumas épocas do ano e em diferentes lugares. Basta lembrar da prima Eugenia, que reinou absoluta na Alemanha nazista; dos primos Apartheid, da África do Sul; nos diversos momentos de escravidão, que se apoiaram no ramo do racismo. Na geração mais jovem, o Bullying está na crista da onda, mas, na verdade, ele esteve sempre por aí. Apenas modernizaram seu nome e, por isso, hoje é mais conhecido.

Outros Preconceitos, mais próximos das Calorias, se escondem em locais escuros e improváveis. São mestres do disfarce. Parecem inocentes e têm cara de bonzinhos, o que dificulta sua identificação. Lembram o Gato de Botas, do filme Shrek, que tem aquele olhar meigo, carente e, de repente, mostra as garras. É difícil identificá-los e desmascará-los. Estão em toda a parte, mas têm predileção por escolas e empresas. Por causa das mudanças sociais, assumem diversas identidades, da sutil à declarada.

Recentemente, um Preconceito foi detectado em uma escola que havia recebido uma criança com síndrome de down. Um belo dia, essa criança soltou um flato, coisa que ocorre com todos nós. Nessa ocasião, o Preconceito estava ligadão e não ia perder essa oportunidade de ouro! Fez as professoras ligarem para a mãe da criança. Ela saiu correndo do trabalho, passou em casa para pegar uma muda limpa de roupas e voou para a escola. Ao chegar lá, viu o filho brincando feliz: tinha sido só um flato, sem maiores conseqüências. Se fosse outra criança, sem deficiência, o Preconceito não teria essa oportunidade e não ficaria tão satisfeito consigo mesmo.

Alguns aparecem em formas musicais e podem ser encontrados em marchinhas de Carnaval: Eu sou o pirata da perna de pau, do olho de vidro, da cara de mau. Ou em sambas: Nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia. / Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé. / Mas como a cor não pega, mulata. Mulata, eu quero o teu amor, entre outros. Esse é um ramo da família extremamente resistente, pois fica na cabeça das pessoas, que saem cantarolando e reproduzindo-os, sem serem percebidos. Outra parte formada pelos Preconceitos se estabeleceu no reino da carochinha, onde o diferente, o que não é como todos, mora no coração da floresta, como os sete anões, que formam uma comunidade fechada e desconhecida. Alguns são malvados, como o Capitão Gancho.

No reino da literatura clássica, o disforme, o que-não-é-como- os-outros também vive escondido e envergonhado, como o Corcunda de Notre Dame ou o Fantasma da Ópera. Ou é um ser amargo e atormentado, como o vingativo Capitão Ahab, que persegue Moby Dick incessantemente, considerando-a culpada por ter ficado sem a perna. Frases como “Falei que não ia dar certo”, “É melhor não mudar”, “Não temos recursos” são consideradas assassinas pelo poder que têm de imobilizar as pessoas e inviabilizar ações.

A pergunta que vem à mente é: Como o Preconceito começou? Segundo alguns estudiosos, ele está conosco desde o início da humanidade e foi fundamental para nossa sobrevivência. Imagine um grupo de homínidas à procura de alimento em ambiente hostil. Estão famintos e encontram um fruto. É preciso decidir: É de comer? É venenoso? Come-se com a casca? E o caroço? Parece com outro que já comeu? Se sim, como se sentiu depois? Se não, deve-se agir rapidamente ou, então, alguém pode roubar a comida. Situações semelhantes aconteciam quando o grupo se deparava com outros bandos de homínidas ou com um animal. Assim, o ser humano desenvolveu a habilidade de criar classificações e aplicá-las imediatamente. Trata-se da capacidade de formar juízos (conceitos) e tomar decisões rapidamente.

Os tempos mudaram e o homem conservou essa capacidade, hoje desnecessária para a sobrevivência. As pessoas continuam a ser classificadas: gordos são alegres e gostam de contar piada; negros gostam de samba e futebol; surdos são irritadiços e loiras são burras. Essas classificações são perversas. É como colocar um espelho à frente da pessoa rotulada e dizê-la: “Você é isso” ou “Esperamos que faça aquilo”. Essas expectativas são moldes, que limitam as pessoas, seus talentos, suas habilidades. Restringem o nosso olhar e procuram fazer o mesmo com o olhar da própria pessoa, que muitas vezes acredita que só é aquilo que a sociedade diz, só vê o que o espelho mostra.

Como acabar com a família dos Preconceitos? É mais difícil do que acabar com a das Calorias. Estas requerem mudança de hábitos alimentares e exercícios físicos, na maioria das vezes. Contra os Preconceitos, é preciso jogar a luz da informação sobre eles. Assim, abrem-se caminhos para que a Inclusão chegue e ocupe seus espaços. Se eles vão voltar? Sem dúvida nenhuma, muitas e muitas vezes. São resistentes e teimosos esses monstrinhos. Afinal, por muitos anos ficaram no bembom. E os seres humanos, seus hospedeiros, também resistem às mudanças, pois mudar dá trabalho. Mas uma coisa é certa: a cada vez que a informação os ilumina e os desmascara, eles se enfraquecem e a Inclusão conquista mais adeptos e espaços. Até que um dia…

(Marta Gil, socióloga, consultora na área de deficiência e coordenadora executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas)

Fonte: Rede Saci. 20/3/2008. Disponível em: http://saci.org.br /index.php?modulo=akemi¶metro=21321

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