É comum uma família receber queixas da escola sobre o aluno que mora em área rural. Muitas professoras possuem preconceitos em relação a essas crianças e, ignorando seus saberes, não conseguem fazê-los avançar naquilo que desconhecem. Mas isto pode ser muito diferente, como mostra este artigo
Matheus, para a família, nasceu no dia 6 de setembro de 1997 em Campinas, São Paulo. Desde então mora em Santa Maria da Serra das Cabras, Joaquim Egídio – um subdistrito de Campinas, com o irmão Ronei, a mãe Alessandra, os avós Ana e Benedito (o Ditão) e o tio Tidão. A primeira imagem sua que me assoma são cachos dourados e grandes olhos verdes iluminando o sorriso, que me levaram a pintar um São João, a partir de uma história de seu avô Ditão. A história a seguir Matheus fez em meu computador.
Meu avô e o saci
O meu avô viu um saci em cima do fogão fumando cachimbo e daí ele levantou para olhar e o saci foi embora. O Vô estava tirando leite, a vaca começou a pular, daí o Vô pegou um banquinho e deu bem nas costas da vaca. Daí a vaca começou a pular e daí depois deu com os dois pés no telhado e saiu até telha. E deu um coice e voou até bosta no leite. O Vô pôs o bezerro preso perto do cocho, estava quase enforcado, o bezerrinho até peidou. Aí a vaca parou de pular, daí o Vô foi lá e tirou leite dela. Era a primeira cria, e daí só dá um litro de leite. O bezerro está lá atrás, a vaca na frente, nós temos que empurrar o bezerro para a vaca vir atrás. O Ronei jogou o laço feito com a peia1 para peiar a vaca, prender o bezerro no cocho, numa argola. Daí prendemos o bezerro e soltamos a vaca.Esta região em que moramos é pedregosa, árida, com mandacarus e cascavéis. O Matheus conhece tudo como a palma de sua mão e corre descalço por vales e montes sem perder rumo, nem fôlego. Sento com ele em uma pedra no alto do pasto, ele começa:
– Tá vendo aquela vaca lá, pintada?
– Tá procurando o bezerrinho dela. Tá vendo atrás daquela pedrinha?
– Ele tá lá, mas ela não tá vendo.
– Tá vendo aquele passarinho lá?
– Tá fazendo ninho perto das vacas pra ter o que comer, carrapatos.
– Tá vendo aquela água branca lá? Lá no meio daquelas árvores… parece um homem de braço aberto olhando pra nós.
— Tá vendo aquela eguinha branca lá? Bem atrás do capim.
— Tá vendo …
O Matheus de 9 anos enxerga tudo. Ele olha, sente e sabe, vê o que não suspeitamos. Semana passada ele esteve aqui, foi visitar os pintinhos novos, as galinhas, os galos, o galinheiro e viu uma cascavel. Às vezes ele vem aqui em casa com queixa do professor de que ele não faz lição, que não presta atenção, que não se interessa pelas aulas. Como muitas crianças, durante o segundo ano, Matheus estava silábico (desenho ao lado), mas enquanto a professora pedia que ele copiasse infinitamente o alfabeto, ele foi se infligindo lições e alfabetizou-se sem problema. A essa altura já era bom leitor dos livrinhos que sua mãe lhe dava.
Como vimos no caso da cascavel no galinheiro, Matheus hoje escreve bem. Na escola, copia direitinho a história de Macunaíma2:
Mas será que este texto culto e de boa qualidade diz o que diria Matheus a partir de seu olhar sensível? Aprendi com ele a tomar consciência da enorme distância entre o que propomos na escola e o que a criança sente. Matheus me leva a pensar, o que é autoria? É a possibilidade de ser responsável por ações transformadoras. É um reconhecimento de nosso próprio potencial de percepção e de compreensão do mundo, a partir do qual podemos agir de forma conseqüente. Então, autoria pode ser entendida como tomada de consciência e responsabilidade pela atribuição de sentido que a pessoa realiza ao tentar compreender determinado fenômeno.
A esta atribuição de sentido – que é sempre transformadora – chamamos aprendizagem. E aprendizagem, por sua vez, depende fundamentalmente do nosso modo de olhar o mundo. Nada é mais autoritário do que impor a uma situação ou pessoa o meu próprio ponto de vista, ao passo que se deixar levar pelo olhar é um ato de bondade, de libertação, e de liberdade. O filósofo alemão Walter Benjamin uma vez escreveu: “Ser feliz é olhar para si mesmo sem susto”.
Talvez um modo de buscar a felicidade seja encontrar para si mesmo um lugar para o olhar – para celebrar a visão –, o que corresponde à criação de um espaço para sentir as coisas do mundo. Quanto ao sentimento de felicidade, podemos concebê-lo como uma conjugação de tempo e de espaço, onde se está como que levitando em um instante que é, ao mesmo tempo, fugaz e eterno. Tudo se passa, então, como uma festa dos sentidos, em que tudo dança, em que as coisas todas, ao mesmo tempo, têm mobilidade e se encaixam, e o indivíduo que olha para elas sente, está. Isto é liberdade.
Aprendendo com Matheus: seria demasiado otimismo relacionar o olhar, a aprendizagem e a possibilidade de sentir felicidade?
(Monique Deheinzelin, educadora, publicou Construtivismo, a poética das transformações – Ática, 1996 -, entre outros livros)
1Pequeno pedaço de corda usado para peiar (amarrar) o boi ou bezerro no chão.
2Macunaíma, Mário de Andrade. É considerado um dos grandes romances modernistas do Brasil.
Para saber mais
Construtivismo – a poética das transformações, Monique Deheinzelin. Ed. Ática. Tel.: 0800 115 152