Cuidado é Educação: o trabalho com bebês

“Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”, Leonardo Boff1
avisala_33_jeitos21.jpg

Fotos: Fernanda Carolina Dias Tristão

A perspectiva moderna de compreender o ser humano em categorias estanques e já definidas implicou fragmentações no modo de conceber homens, mulheres e crianças. Herdamos a tradição de binarismos, em que um componente do par seria mais importante do que o outro. Um exemplo disso é a tendência de privilegiar a racionalidade, e, conseqüentemente, as atividades e profissões que supostamente lidam com a mente, preterindo as emoções e tudo o que se refere ao corpo. Essas dicotomias fizeram-se presentes na história da educação de crianças pequenas, quer sob a forma da existência de profissionais com funções diferentes atuando junto às crianças, quer na estruturação de formas de atendimento diferenciado para crianças de meios socioeconômicos diferentes, ou, ainda, no privilégio que as ações ditas educativas tiveram sobre as ações ditas de cuidados.

A expressão cuidar/educar foi uma tentativa de superar essas antinomias, sendo compreendidas como unidades indissociáveis do trabalho pedagógico em creches e pré-escolas. Desde a década de noventa, pesquisadores e professores vêm afirmando que o binômio cuidar e educar é definidor das ações pedagógicas com crianças pequenas. Contudo, a prática dessas instituições, que vem sendo colocada em evidência por diversas pesquisas, mostra que esses termos ainda estão entendidos e aplicados de forma dissociada. Assim, é predominante a visão do cuidado resumida apenas às atividades ligadas ao corpo, bem como da educação como a necessidade de ensinar algo, revelando a incapacidade de perceber o ser humano constituído de muitos aspectos que não podem ser descolados uns dos outros.

Em uma pesquisa realizada em uma creche do município de Florianópolis, com o objetivo de melhor compreender as práticas e as relações pedagógicas que acontecem entre professoras e bebês (crianças de até cerca de um ano de idade), foi necessário qualificar, adjetivar e problematizar o significado mais amplo das expressões cuidar e educar. Quanto menores são as crianças, mais se destaca a dimensão do cuidado no dia-a-dia das creches. São atos muitas vezes pouco valorizados, em muitos momentos automatizados, mas que não podem ser negligenciados, dada a sua importância na relação com os pequenos. Os cuidados com higiene, alimentação, sono, proteção, amparo e aconchego podem ser ricos espaços de trocas afetivas, inserção social e estimulação. No entanto, nem sempre essas ocasiões são assim aproveitados.

Todas as formas de cuidado são essenciais para a criança pequena, já que é por meio do outro, daquele que dela cuida, que tomará contato com suas primeiras impressões sobre o mundo, experimentando sensações agradáveis ou desagradáveis. Desse modo, é importante que sejam tocadas, acariciadas e respeitadas. A base do cuidado refere-se ao respeito à criança, como ser único e especial. Todas as crianças pequenas têm o direito de serem educadas e cuidadas, sem hierarquias, pois as duas dimensões são essenciais para a possibilidade de viver infâncias voltadas para a emancipação.

Assim, contar uma historinha e trocar as fraldas de um bebê não são atividades incompatíveis ou de valor diferenciado, mas complementares, em uma perspectiva de criança inteira, completa. A hora do banho na creche2, por exemplo, pode servir ao interesse pedagógico/educativo de reconhecer as partes do corpo, mas também pode ser um intenso momento de prazer, de sentir a água batendo no corpo, de estar limpo, de estar sem roupa, livre. Proporcionar situações prazerosas é (ou deveria ser) uma das especificidades da educação dos pequenos:

A professora aproxima-se de João Victor, que está sentado no colchonete, e fala:

“Vamos tirar essa roupa para tomar banho?”, leva o menino para o banheiro, no qual a banheira já está preparada para o banho, e fala:

“Que água gostosa, que aguinha boa! Tá com cheiro de suado, João, vamos lavar esse pescoço, o cabelo, o meio dos dedinhos, o pé, lavar atrás agora… Tu gostas de tomar banho, né, João? Eu só vou cuidar para não molhar o teu ouvido, porque tu estás com dor de ouvido. Ai, que banho bem gostoso! Estás me molhando toda…” Altera a voz e fala: “Ai, que cheiroso que eu fiquei, eu gostei de tomar banho. Agora eu vou dormir um sono bem gostoso, antes eu não conseguia dormir, estava incomodado”. Volta a falar com a sua voz: “Deixa eu secar bem a tua cabeça, o ouvido, debaixo do braço, o peruzinho… tu não trouxeste pomada hoje. Vamos vestir agora, a cabeça… achou! Agora a mão, a outra. Agora tu estás feliz, deu, cara?” Finaliza a higiene de João com um beijo na barriga do bebê.
(Registro no caderno de campo)

É, pois, trabalho de professora reconhecer a criança como um ser inteiro, que precisa estabelecer com ela uma relação de confiança, de forma a ter a certeza de que será cuidada para se sentir confortável e segura. Cuidar de crianças em ambientes coletivos não é uma atividade simples, mas sim complexa e, como tal, exige preparo e competência profissional. É importante ressaltar que a afetividade é parte fundamental do cuidado, contudo, tem sido um empecilho para a profissionalização da professora de Educação Infantil. Por ser a afetividade entendida como intrínseca ao cuidar, contrapõe-se ao racional e profissional, elementos extremamente valorizados nas sociedades modernas.
avisala_33_jeitos3
Essa dicotomia levaria a uma incompatibilidade entre a formação profissional e o prover o cuidado do outro. Entendo que é possível e necessário educar para o cuidado. A professora do berçário da creche pesquisada acreditava que a afetividade era essencial no seu trabalho com os bebês:

“Em primeiro lugar a afetividade, para mim, que me ajuda nisso. A interação deles comigo, com os outros. É isso que eu acho que faz o trabalho andar, em primeiro lugar, o carinho que eu dou para eles, que eles me dão, que eu acho que fortalece bastante a gente. Tu chega, pega, eles não choram, dão tchau para a mãe, ficam numa boa. Isso é sinal de que eles gostam, que são bem tratados aqui. A afetividade está em primeiro lugar. Na minha relação com eles eu tenho que ser afetiva, tenho que ser carinhosa para conseguir alguma coisa deles, é através da afetividade que eu vou contribuir para o desenvolvimento deles.” (Entrevista)

Na verdade, pensando na educação, especialmente na Educação Infantil, é importante ter a clareza de que incorporar atributos afetivos na atuação profissional não retira dela as características de desempenho técnico necessárias para a sua valorização. Certamente ser afetiva é uma característica importante para as professoras de crianças pequenas. Paulo Freire3 (1996) já dizia que precisamos descartar como falsa a separação entre seriedade docente e afetividade.

Entendendo que o cuidado possui componentes racionais e cognitivos e que, dessa forma, pode ser construído em processos formativos, e considerando que a afetividade está contida no cuidado, podemos afirmar que também ela pode ser construída, aprendida, de modo que este atributo não pode ser considerado natural, um dom de algumas pessoas.

Numa perspectiva mais ampla, busco um redirecionamento do conceito de cuidar, compreendendo-o em seus aspectos afetivo-emocionais, mas também cognitivos, entendendo que incluir atributos afetivos na ação docente não dispensa a formação acadêmica. Compreendendo o cuidado como uma atitude com um prisma racional, podemos afirmar que pensar, refletir e planejar podem ser incluídos nesse conceito e, assim, educar para o cuidado torna-se efetivamente possível. No berçário pesquisado estas atividades não eram contempladas no planejamento da professora. Os momentos de alimentação e de higiene não eram pensados previamente de forma sistematizada No entanto, neste berçário houve várias cenas em que as crianças – meninas e meninos – eram estimuladas a cuidar dos outros bebês. Percebemos que, desde muito pequenos, podemos educar para o cuidado, para a disponibilidade para com o outro:

“Kalil começa a chorar, Lucas coloca o bico na boca do outro menino. A professora percebe e diz a Lucas que ele já sabe cuidar do nenê.” (Registro no caderno de campo)

Samanta senta-se ao lado de Maria Victoria, que está deitada no colchonete, e fica olhando-a atentamente. A professora pede para Samanta fazer carinho na bebezinha, fala para ela cuidar direitinho da pequena. Samanta passa a mão na cabeça da menina menor. A professora entrega um chocalho para Samanta e diz que ela pode chacoalhar para Victoria e que pode entregar na mãozinha dela para ela brincar. Samanta sacode o chocalho na frente da pequena, esta esboça um sorriso e pega o brinquedo da mão da menina maior.”
(Registro no caderno de campo)

“A professora estava recebendo as crianças dos berçários I e II, já que hoje é o dia da reunião com as famílias do berçário II. Maria Victoria chega, a professora coloca-a deitada de bruços no colchonete. Camila (BII) fala: ‘Nenê?’, a professora responde: ‘É a nenê, Camila, o nome dela é Maria Victoria. Cuida dela para mim?’. A menina passa a mão no corpinho da pequena, a professora comenta: ‘Isso, Camila, faz carinho na Victoria’. Victoria (BII) e Samanta também se aproximam da nenê e a professora fala: ‘Viu, Victoria, a bebê é Victoria igual a você’. A menina maior ri.” (Registro no caderno de campo)

Cuidado, educação e cultura
Uma compreensão reducionista do cuidado relaciona-o apenas com o corpo físico, afastando a idéia de sujeito integral. O cuidado é uma característica intrínseca às relações humanas e, portanto, constitutiva da educação, não apenas da Educação Infantil. Tentando elucidar em linhas gerais a noção de educação e pensando em termos históricos, podemos afirmar que a educação, entendida em um amplo espectro, que engloba todos os processos de aquisição do conhecimento, independentemente da escola e da educação escolar, sempre fez parte da história da humanidade. Nesse sentido, torna-se possível pensar a educação ligada ao processo de inserção social e de humanização de pessoas, um processo fundamental para aprender a viver em sociedade.
avisala__jeitos33
Educar alguém, assim, vai muito além do repasse de conteúdos, ou de uma preocupação exclusiva com o intelecto, já que deve englobar os diversos elementos presentes na cultura e contemplar aspectos referentes, além do cognitivo, ao corpo e à moral – que aqui estou entendendo como as regras de convivência entre humanos. Assim, podemos afirmar que o educar necessariamente inclui o cuidar. Os bebês do berçário em questão tiveram contato com diversos elementos da nossa cultura, por intermédio do outro, dos adultos. Relacionaram-se com diferentes formas de linguagem, com a brincadeira, com a fantasia, com o afeto, com o cuidado, com regras de convivência, com a música, a dança, a literatura, o teatro, e as festas da nossa tradição popular.

Certamente os pequenos não se relacionaram de forma passiva com todos os elementos culturais com os quais conviveram – também experimentaram a sua forma particular de brincar, de dançar, de se comunicar, como co-construtoras sociais e culturais que são. Todas estas experiências estão impressas em cada uma daquelas crianças, marcando-as como pertencentes a um dado tempo histórico, a uma classe social, àquela comunidade específica e a determinada instituição educativa, como indivíduos sociais que recebem e produzem cultura.

Percebendo os vários elementos culturais com os quais os bebês deste grupo tiveram contato, tendo a possibilidade de explorá-los, de forma a ressignificá- los, afirmo o papel das professoras de crianças desta faixa etária como impulsionadoras e instigadoras da experiência de conhecer e desfrutar dos elementos culturais construídos pela humanidade. Na concepção de Charlot4 a educação é o processo pelo qual a criança, que não nasce pronta, constrói-se como ser humano, singular e social, que ingressará em uma história que é individual, enquanto representante único da espécie, e também coletiva, dos humanos. Isso só pode acontecer pela mediação do outro, no âmago das relações sociais – só há educação onde há troca entre as pessoas e o mundo.

Nessa perspectiva, educação é a inserção dos pequenos no seio de uma cultura entendida de forma ampla. Portanto, o trabalho de uma professora que atua com esta faixa etária é proporcionar os primeiros contatos delas com uma cultura diferente da familiar, com experiências que não lhes seriam proporcionadas no ambiente doméstico. Esses bebês experimentaram e se aproximaram de vários objetos culturais. Certamente há questionamentos cerca, por exemplo, das músicas ou dos livros que foram oferecidos. Esses, geralmente, não eram escolhidos a priori, ou seja, esses recursos não foram selecionados, refletidos e estudados antes e serem utilizados.

Penso, no entanto, que, nesse momento, é importante frisar que este oferecimento não é neutro, mas parte de modelos culturais pertencentes ao repertório dos adultos. Portanto, é importante o papel de uma sólida formação cultural das professoras da Educação Infantil, entendendo ser fundamental que esses profissionais tenham acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade, podendo escolher aquilo que acreditam que realmente vai produzir significado para aquele grupo infantil.

Expõe-se, assim, uma concepção de educação humana que vai muito além da instrução e da transmissão de conteúdos. O pensamento que daí advém é: será que ainda faz sentido falarmos em educar/cuidar se não queremos uma infância e uma educação não integradas? Em contrapartida, não me parece que as dicotomias históricas da Educação Infantil, e quiçá da constituição da sociedade moderna, irão desaparecer pelo simples fato de mudarmos a terminologia: em vez de educar e cuidar, falarmos apenas em educação.
avisala_33_jeitos4
Penso que o mais importante este momento seria incluir reflexões e problematizações sérias do binômio educar e cuidar na formação das professoras, para que este não seja apenas mais um termo repetido e não entendido. Apenas com a mudança de postura das profissionais da educação em enxergar as crianças e a si próprias como seres completos, inteiros, nos quais há muitas dimensões para se prestar atenção e para se educar cuidando, é que poderemos finalmente afirmar que educação é cuidado.

(Fernanda Carolina Dias Tristão, psicóloga, pedagoga, mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina)

1Leonardo Boff, teólogo brasileiro, escritor e professor universitário.
2A creche em que essa pesquisa foi realizada pertence a uma instituição que coordena e mantém três creches conveniadas com a Prefeitura de Florianópolis. A fim de conhecer essa instituição, foram realizadas entrevistas com o diretor geral e a coordenadora geral, bem como buscas em documentos cedidos pela própria instituição.
3Educador brasileiro, considerado um dos grandes pedagogos da atualidade, escreveu Pedagogia do Oprimido, livro que o tornou conhecido mundialmente (1921-1997).
4Veja, ao final deste artigo, as referências sobre as obras citadas.

Ficha técnica

  • E-mail: fefetristao@hotmail.com

Para saber mais

  • Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra, Leonardo Boff. Ed.Vozes. Tel.: (24) 2246-5552.
  • Da relação com o saber: Elementos para uma teoria, Bernard Charlot. Tradução de Bruno Magne. Ed. Artes Médicas Sul. Tel.: (51)3330-3444.
  • Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa, Paulo Freire. Ed. Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399
  • O cuidado e a formação moral na Educação Infantil, Thereza Montenegro. EDUC – Editora da PUC-SP. Tel.: (11) 3670-8558.
  • “O cuidado como elo entre a saúde e a educação”, Damaris Gomes Maranhão, in Cadernos de pesquisa, n.111, págs. 115-133. Ed. Autores Associados Ltda.Tel.: (19) 3289-5930. Resumo disponível nos endereços eletrônicos: http://www.scielo.br/pdf/cp/n111/n111a06.pdf e http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/dama.html
  • Ser professora de bebês: um estudo de caso em uma creche conveniada, Fernanda Carolina Dias Tristão – Dissertação de mestrado. 2004. Disponível no endereço eletrônico: http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/teses.html

avisala_33_jeitos5

Posted in Jeitos de Cuidar, Revista Avisa lá #33 and tagged , , , , , , , .

2 Comments

  1. Como foi dito nós comentário anteriores pra ser professor na educação infantil tem que ter um perfil correto saber conviver com si mesmo e com os outros e ter muito amor pelo trabalho e pelas crianças. Pois esse professor vai lidar com crianças pequenas e que depende de muito amor , carinho ,compreensao pra aprender e se desenvolver abilidade ,que são necessárias para seu dia dia.

Comments are closed.