Nem sempre dá certo – O previsto e o provável da prática de projetos

A montagem de um aquário com as crianças era o objetivo final do projeto. Todas as etapas previstas foram cumpridas, mas mesmo assim, no final, não deu certo. O que teria acontecido? Acompanhe todos os passos nas páginas do diário de campo.



Era uma turma de crianças de 3 anos. Desenvolvíamos (as duas professoras da sala e eu como professora de apoio, indo a cada quinze dias) um projeto cujo eixo principal era os seres vivos, um estudo dos peixes e sua vida no aquário. Já havíamos passado por várias etapas, junto com as crianças:

    1. Abordagem inicial, para verificar o que as crianças já sabiam sobre as espécies aquáticas;
    2. Pesquisa em diversos livros repletos de imagens para que os pequenos pudessem fazer leituras com aquele apoio;
    3. Observação e conversa a partir de vídeo sobre o assunto;
    4. Observação direta de peixes em ambientes criados nos diferentes aquários;
    5. Observação direta de um peixe que estava morto, com direito a mexer, tocar, cheirar etc.
    6. Registro de observação.

21 de novembro

Fomos à loja comprar peixes. Dezessete crianças e quatro educadoras: Lucila – a coordenadora – Dora e Linda – as professoras – e eu.
Vimos vários aquários, de todos os tipos e tamanhos. Estavam colocados em prateleiras baixas de forma que as crianças puderam ver bem. Queria que elas escolhessem o que precisaríamos comprar, mas foi difícil, porque de fato havia muito o que ver. A decoração dos aquários era encantadora para eles porque formava pequenos cenários submersos, tudo em miniatura, parecia brinquedo. O garoto que nos atendeu foi bastante simpático e respondeu a todas as perguntas. As crianças escolheram o que queriam. Nem todas as espécies puderam ser compradas, porque algumas não convivem com as outras. Escolhemos peixes bem variados. Compramos cinco espécies diferentes e ainda várias plantas. Tínhamos muito material para observação.

A escolha da população do nosso aquário. As crianças tiveram que subir num banco para alcançar o balcão

A escolha da população do nosso aquário. As crianças tiveram que subir num banco para alcançar o balcão

Na creche, colocamos os peixes no nosso aquário, construído por nós com os vidros doados pelo pai da Linda, uma das educadoras da turma. Arrumamos as pedras e as plantas, ficou lindo!

26 de novembro
Lá fui eu de novo para a creche. Cheguei feliz da vida para começar o que havia planejado, contando com a observação do aquário. Mas quando cheguei… Puxa! Que desastre! Os peixes tinham morrido no fim de semana! Todos! Uma chacina. Ao que tudo indicava, nosso aquário, superpopuloso, passara um fim de semana sem a bomba que oxigenava a água. Na segunda feira, educadoras e crianças se depararam com a horrível cena: todos os peixes boiando. Uns 20 mais ou menos. Muito chato. Sai intrigada. Já tive aquário e nunca tinha visto isso acontecer. Esses bichos são sensíveis, mas nem tanto!
Tinha que ter acontecido algo muito sério para ter matado a população toda. Isso não me saía da cabeça. Levantei com as professoras as hipóteses da causa mortis:

    • colocaram água com cloro ou filtrada?
    • alguém jogou sabão ou alguma outra coisa dentro da água?
    • deram comida demais?
    • lavaram o aquário ou as pedras com sabão e deixaram resíduos?

Nada disso parecia ser resposta. Dora e Linda continuavam tristes e ainda não tinham conversado com as crianças, não sabiam o que dizer. Fizemos então uma roda na sala e eu iniciei a conversa. As educadoras tomaram o maior susto ao perceber que as crianças sabiam muito e com detalhes:
– Os peixes morreram, morreram tudo. Tinha um, aquele grandão que tava aqui embaixo, atrás da pedra, outro aqui em cima, outro aqui…

– E por que será que todos os peixes morreram? – perguntei, pedindo às educadoras que anotassem as hipóteses das crianças, que foram as seguintes:

    • eles morreram porque a Dorinha deu comida demais.
    • a Natália colocou a mão dentro da água.
    • a Natália jogou um isopor lá dentro.
    • o peixe grande matou os peixes pequenos com a boca, com o “dente da boca”, porque ele queria comer e brigar com os pequenos.
Wemerson escolheu este. O que faz o papel dentro do aquário? É o mapa do tesouro?

Wemerson escolheu este. O que faz o papel dentro do aquário? É o mapa do tesouro?

Esta última hipótese foi a mais aceita pelo grupo, a que melhor explicava, segundo as crianças. Elas queriam saber se não íamos comprar mais peixes, uma vez que aqueles tinham morrido. Expliquei que traria só uns dois para fazer uma nova experiência, pois antes de comprar outros precisávamos saber por que aqueles tinham morrido e como fazer para mantê-los vivos. Lucila e eu fomos à loja da rua de cima conversar com alguém mais entendido.

A dona da loja de peixes levantou uma outra hipótese:

    • os peixes não se adaptaram direito ao aquário por causa da maneira como foram colocados; poderia ter ocorrido um choque térmico.

Como todas as pessoas da creche estavam envolvidas com o assunto, escrevi um pequeno cartaz noticiando o ocorrido, pontuando as prováveis causas, e deixei uma pergunta ao fim: “o que vocês acham que pode ter acontecido com os peixes da turma do Infantil I?” Todo mundo veio ler. Muitas mães, curiosas, acabaram se envolvendo. Até compraram aquários para suas casas.

28 de novembro
Como não chegávamos a uma resposta final, continuamos a investigar. Tínhamos que eliminar todas as variáveis: limpamos o aquário, tiramos as pedras e plantas, colocamos água filtrada, controlamos a temperatura, alimentação e oxigênio. Trouxemos quatro peixinhos novos, paulistinhas, colocamos no aquário seguindo os procedimentos corretos, deixando-os no saquinho, boiando no aquário por 15 minutos, como manda o figurino, para evitar o choque térmico. Dois peixinhos foram para o aquário grande, limpo, sem plantas nem pedras, e dois continuavam no aquário improvisado, em condições idênticas. O que acontecerá?

3 de dezembro
Lucila, a coordenadora que acompanhava o projeto, me ligou no dia seguinte: todos os peixes haviam morrido na mesma tarde, mas os que estavam naquele aquarinho, aparentemente insignificante, continuavam vivos. Só pode ser problema com o aquário grande. A mesma água, a mesma bomba, a mesma espécie, dois morrem e dois permanecem vivos em outro lugar. Como morreram?

Lucila contou que eles ficaram na superfície durante um tempo e logo começaram a boiar. Segundo o livro de aquarismo que estávamos consultando, aquilo parecia sinal de intoxicação, envenenamento.
Mas com o quê? Tivemos o cuidado de tirar todas as pedras e plantas, isolando variáveis. Só restou uma possibilidade: a substância que usamos para colar as paredes de vidro. Mas era silicone, especial para vidros, deixamos secar por mais de 48 horas, prazo mínimo segundo o livro. Não sabíamos mais o que pensar. Os peixes poderiam estar doentes, todos eles, poderia ter sido uma coincidência, isso e aquilo mas não conseguíamos nos convencer. Minha experiência com aquários também não conseguia explicar. Houve quem considerasse um possível “olho gordo”. Explicação nada científica.

Do nosso ponto de vista, estávamos aprendendo com esse acidente. E as crianças? É o que nos perguntávamos. Elas já sabiam que os peixes comem pouco, que se comerem demais morrem, que a água precisa ser bem limpa, que precisam ter oxigênio, que não pode juntar espécies que brigam entre si. Sabem que precisam de plantas e pedras, que vivem o tempo todo na água, que tem que fechar o aquário, senão podem pular e morrer. Mas todos esses conhecimentos não eram suficientes para manter os peixes vivos. O que era mais importante? Chegamos à conclusão de que, no nosso caso, o projeto não havia terminado. Precisávamos continuar investigando. Lucila disse que era uma questão de honra.

Wellington adorou este castelo submerso. Será um antigo reino encantado?

Wellington adorou este castelo submerso. Será um antigo reino encantado?

10 de dezembro
Vocês não vão acreditar. Vou vender meus relatórios que contam a história das mortes no aquário para aquele programa, ARQUIVO X. Mais um peixe tinha morrido. Estava no aquário grande. Foram lavar novamente com água quente, para desinfetar, e um dos vidros trincou. As professoras organizaram com as mães uma caixinha para comprar tudo de novo. Nas férias deixaríamos sob os cuidados de uma das famílias da creche.

Janeiro do ano seguinte
O ano acabou e a investigação continuou. Os últimos peixes adquiridos continuavam sobrevivendo no novo aquário. Isso reforçou nossa hipótese de que havia algo de errado com o antigo aquário. Levamos, pela última vez, todos nossos equipamentos e materiais usados no projeto para um aquarista analisar. Tudo certo, exceto uma coisa:

– É para usar silicone, sim, – nos disse o especialista – mas não dessa marca, que é tóxica para os peixes! – completou, desvendando finalmente o mistério.

Reflexões pós acidentes no aquário
Esse episódio nos deixou a seguinte questão: quando podemos dizer que um projeto não deu certo? Dar certo é sair de acordo com nossas expectativas? Dar certo é fazer das etapas prováveis as etapas definitivas, numa seqüência rígida onde tudo precisa sair como fora programado? E ainda, será que poderíamos enxergar algum aprendizado fruto desse nosso projeto?
– Olha, eu nunca ouvi falar tanto de aquário na minha vida, e nunca soube tanto de peixe como agora – disse Dora, uma das educadoras da turma.

Chegamos à conclusão de que, para avaliar se um projeto deu certo ou não, é preciso saber o quanto as crianças aprenderam do que queríamos ensinar. Não basta conferir se todas as etapas foram cumpridas, se deram certo dentro das expectativas. Nós, educadoras, havíamos aprendido com o projeto: sabemos agora como fazer a manutenção do aquário, como limpar, como alimentar, como introduzir peixes novos na comunidade, escolher a população etc. Também as crianças: todas elas sabem quanto os peixes precisam comer, que a água precisa ser bem limpa, ter oxigênio, que pode ser observado pelas bolinhas, como elas chamam, que não se pode juntar espécies que brigam entre si. Sabem que precisam de plantas e pedras que
vivem o tempo todo na água, que tem que fechar o aquário senão os peixes podem pular e morrer. Mas tanto crianças quanto adultos só se apropriaram desses saberes quando viveram um problema real: como tratar dos peixes que já estavam no aquário. Esse é um dos motivos pelos quais estudamos ciências: para responder perguntas para as quais, muitas vezes, não temos respostas prontas.
(Silvana Augusto)

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