O que significa cuidar de alguém

Cuidar dos bebês e educá-los são faces da mesma moeda: a promoção do desenvolvimento orgânico não está separada das atitudes e dos procedimentos que ajudam a criança a construir conhecimentos sobre a vida sociocultural

Mães cuidando dos filhos no Congo

Para refletirmos sobre o cuidado com crianças atendidas em berçário das unidades de educação infantil, precisamos rever dois conceitos: berçário e cuidado. De acordo com o dicionário de língua portuguesa, “berçário” é uma sala ou quarto das maternidades onde ficam os berços destinados às crianças recém- nascidas.

Provavelmente foi com base nesta concepção que as primeiras creches da cidade de São Paulo, algumas localizadas em empresas, denominaram berçário: o setor que atendia crianças “de berço”. Em que pesem os avanços na educação infantil, a palavra ainda é utilizada tanto para designar um setor da creche quanto uma unidade de educação infantil destinada ao atendimento de crianças menores de 2 anos.

O termo bebê é sinônimo de criança, que por sua vez o é de infante (que não fala) ou lactente (que mama). Alguns educadores classificam como bebês as crianças até 2 anos, outros compreendem que este termo se aplica apenas àquelas menores de 1 ano.

Não é apenas uma questão de semântica. O significado que se atribui aos termos está relacionado a uma concepção de criança e, conseqüentemente, ao conhecimento que se tem desta fase da infância, à identificação de necessidades e capacidades em desenvolvimento dependentes de cuidados e aprendizagens.

Mas o que caracteriza esta fase que a diferencia da classificação geral das crianças? Diante da complexidade do desenvolvimento inicial do ser humano, destacamos a seguir alguns aspectos fundamentais da construção da consciência corporal base da identidade simbólica e das capacidades que caracterizam os seres humanos:

  • a aquisição da postura ereta, libertando as mãos e possibilitando a independência na locomoção e na exploração do ambiente em diferentes perspectivas;
  • o desenvolvimento pleno do movimento de pinça, possibilitando o uso de ferramentas, a manipulação e construção de materiais, o cuidado de si e do outro;
  • o desmame gradativo associado à alimentação autônoma, que amplia o paladar, leva à construção de hábitos e desenvolve a capacidade digestiva dos alimentos cultivados e preparados pelo grupo cultural;
  • o maior controle do corpo, incluindose a capacidade de reter e eliminar os dejetos corporais em momentos e locais considerados adequados;
  • a produção das primeiras marcas, garatujas e palavras que comunicam e transformam o próprio sujeito e o ambiente físico e social.

Estas habilidades construídas pela interação do ser biológico com o ser social, da natureza com a cultura, por meio do cuidado constante de outro ser humano, possibilita a sobrevivência e a construção de significados.

O bebê humano é totalmente dependente do cuidado do outro para sobreviver e participar do meio cultural em que está inserido. Embora ainda seja incapaz de alimentar-se, manter-se aquecido e protegido de forma independente, ele possui habilidades que permitem comunicar suas necessidades a um cuidador sensível.

O processo de gestação prepara a mãe, física e psiquicamente, para que esteja sensível às necessidades do seu bebê. Se apoiada pela família e pela sociedade, ela será o que Winnicott chama de “mãe suficientemente boa”.

O papel do educador
Outros adultos, além da mãe biológica ou de seu substituto, são capazes de cuidar/educar um bebê, mas esta tarefa demanda a construção de um vínculo que, por sua vez, possibilita uma estreita sintonia, uma comunicação que Wallon denomina diálogo-tônico, feita de gestos, mímicas, movimentos corporais e vocalizações.

Nos primeiros anos de vida, evita-se separar a criança de seu principal cuidador, pois cada uma tem suas peculiaridades no sentir, pensar e ser, assim como as mães, as famílias e os educadores podem ser diferentes nas atitudes e nos procedimentos de cuidar/educar.

Os profissionais de educação infantil e famílias precisam manter uma relação de parceria visando à construção de um contexto de desenvolvimento composto pelo ambiente da casa e da creche. Na casa o cuidado é competência da família com base nas relações afetivas, nos conhecimentos, valores e normas do grupo constituído pelos laços de parentesco.

Na instituição de educação infantil há profissionais que desenvolvem suas competências no cuidar/educar também, com base em suas vivências, em sua visão de mundo, em sua própria história de ter sido cuidado por alguém.

Entretanto é preciso que estes profissionais reflitam e resignifiquem suas atitudes e procedimentos de cuidar à luz dos estudos sobre cuidado e desenvolvimento humano, em sua relação com a saúde e a educação da criança pequena. É preciso refletir sobre o que caracteriza o cuidado.

O que significa cuidar de alguém

Muitos especialistas têm procurado definir esse significado. Maria Malta Campos, em 1994, ao escrever sobre a formação do educador infantil, diz que o cuidado inclui todas as atividades que são integrantes ao educar: alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar.

Profissionais de enfermagem vêm realizando pesquisas sobre o processo de cuidar tanto no âmbito dos serviços de saúde quanto na educação infantil. (Leininger, 1988;Waldow, 1992; Maranhão, 2000; Veríssimo, 2001).

Leininger, enfermeira americana, define o cuidar/cuidado como os atos de assistir, apoiar ou facilitar a um indivíduo ou a um grupo com necessidades evidentes ou antecipadas, melhorando sua condição humana ou modo de vida.

Segundo o filósofo Milton Mayeroff (1990), cuidar de outra pessoa, no sentido mais significativo, é ajudá-la a crescer e realizar-se. É uma forma de relação com o outro que envolve uma atitude de preocupação com o crescimento e desenvolvimento da pessoa humana em toda a sua complexidade.

Esta atitude se desdobra em procedimentos que requerem conhecimentos. Segundo o autor, para cuidar de alguém eu devo saber muitas coisas, eu devo saber, por exemplo, quem é o outro, quais são seus poderes e suas limitações, quais são suas necessidades e o que conduz ao seu crescimento. Eu devo saber como responder a suas necessidades e quais são minhas próprias capacidades e limitações como cuidador.

Em nosso meio, outro filósofo, Leonardo Boff (1999), sustenta que cuidado é uma atitude fundamental mediante a qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude. Requer envolvimento e construção de vínculo.

Webb & Blond, 1995, pesquisadoras e professoras do ensino fundamental no Canadá, explicam que a complexa relação entre cuidado e conhecimento requer um constante processo de reflexão. As autoras afirmam que a divisão e a hierarquia de valor, existentes entre cuidar e educar, têm suas raízes na dicotomia entre conhecimento objetivo e subjetivo. Socialmente o conhecimento objetivo é mais valorizado que o conhecimento subjetivo.

Bebês e seus professores na creche Sinhazinha Meireles – SP

Uma visão tradicional
Tradicionalmente, os berçários organizam a rotina de cuidados com os bebês de acordo com uma concepção restrita do termo, compreendendo que as necessidades atendidas são apenas as biológicas – higiene corporal, alimentação, sono, banho de sol, segurança física.

Nas creches públicas pode-se confundir o atendimento dessas necessidades com o assistencialismo às crianças pobres, restringindo os cuidados com a alimentação ao suprimento de nutrientes, os cuidados de higiene ao controle de infecções e parasitoses e os cuidados com o ambiente à prevenção de acidentes.

Nesta concepção dicotômica, as “atividades educativas” são mais valorizadas. Em alguns casos observamos uma hierarquia entre quem cuida e quem educa, compreendendo-se que o cuidar é uma atividade menos qualificada do que o educar. Essa concepção de cuidado separa o corpo da mente; as emoções da razão; a cultura da natureza; a saúde da educação; o cuidar do educar.

Em busca da integração
O Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil prevê duas dimensões curriculares, que na prática ocorrem integradas – A Formação Pessoal e Social e o Conhecimento de Mundo.

Não podemos escrever sobre formação do eu-psíquico sem escrever sobre o eu-corporal, sobre o indivíduo sem contrapor o grupo social. O sujeito psíquico está num corpo e através dele se perceberá separado do outro e do mundo físico.

Através do corpo ele se expressa, reage, interage, comunica-se com o grupo social. Esse corpo, na criança, está em processo de crescimento e desenvolvimento, ou seja, crescimento em tamanho com conseqüentes mudanças de proporções e especialização de funções orgânicas.

Esse processo de crescimento e desenvolvimento orgânico está relacionado todo o tempo com o processo de construção do eu psíquico e das funções intelectuais superiores. A mente existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro que se ocupar do corpo, ou nunca teria existido (Damásio, 1996 ).

Os cuidados que visam à promoção do crescimento e desenvolvimento orgânico não estão separados das atitudes e dos procedimentos que ajudam a criança a construir conhecimentos sobre a vida sociocultural. Portanto, cuidar dos bebês e educá-los são faces da mesma moeda.

O primeiro espelho do bebê são as atitudes do cuidador/educador – seu tom de voz, seu jeito de tocar, de cuidar de suas necessidades mais prementes, como a fome, o frio, o desconforto postural. Antes de conhecer sua mãe ou educador pela visão ou pelo nome, o bebê conhece sua voz, seu cheiro e seu jeito de segurar. Os cuidados com o corpo e com o ambiente físico são procedimentos derivados de atitudes que expressam intenções, sentimentos, com um significado ditado pelo contexto sociocultural.

A rotina de cuidados corporais permite ao bebê construir uma noção de previsibilidade sobre seu entorno, o que resulta em segurança psíquica, além de permitir que o organismo imaturo se adapte gradativamente ao meio.

Quando cuidar é educar

Sendo cuidado, o bebê aprende a cuidar de si mesmo, do outro, do ambiente, construindo sua identidade, autonomia e socialização. Cuidar da criança, ensinar-lhe o cui-dado consigo mesma, com o outro e com o ambiente, demandam do educador habilidades e conhecimentos que têm base nas ciências humanas e biológicas, transitando entre campos de atuação das profissões da área de saúde e educação.

Após essas considerações, compreendemos que o educador infantil precisa construir conhecimentos e desenvolver habilidades para educar e cuidar das crianças, possibilitando a formação de pessoas com uma personalidade diferenciada e ao mesmo tempo integrada ao grupo social, independentes e ao mesmo tempo solidárias, saudáveis no sentido de sentirem-se bem consigo mesmas, utilizando ao máximo suas potencialidades físicas e psíquicas.

(Damaris Gomes Maranhão – Especialista em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Mestre em Enfermagem Pediátrica e Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo. Professora Assistente da Universidade Santo Amaro. Educadora e consultora em saúde coletiva do Instituto Avisa Lá. Endereço para correspondência: Rua Diogo Rodrigues Marques, 56. São Paulo – 04677-040 – damaranhao @uol. com.br)

Bibliografia

  • Saber cuidar: ética do humano — compaixão pela terra. Leonardo Boff. Ed. vozes.Tel.: (11) 3256-0611.
  • Educar e cuidar. Questões sobre o perfil do profissional de educação infantil. In Brasil. Maria Malta Campos. Ministério da Educação e do Desporto — Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília, MEC/ DPEF/COEDI.Texto disponível no site: http://www.anped.org.br
  • O Erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano.A. Damásio. Companhia das Letras.Tel.: (11) 3707-3500 /3707-3253.
  • O cuidado como elo entre a saúde e a educação. Damaris Gomes Maranhão. Cadernos de Pesquisa, no 101, dezembro de 2000. Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 2000. Tel.: (19) 3289-5930 – site:www.fcc.org.br
  • Cuidado: uma revisão teórica.V. R.Waldow. Revista Gaúcha de Enfermagem. Tel.: (51) 3316-5242 – e-mail: revista@enf.ufrgs.br
  • Teacher Knowledge: the relationship between caring an knowing. Teaching & Teacher Education.Vol. 11. K.Webb & J. Blond.
  • O olhar das trabalhadoras de creches sobre o cuidado da criança. M. de La Ó. Veríssimo,Tese de Doutorado. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Há uma biblioteca de teses na USP. Veja site:www.usp.br
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