O que nos contam as caveiras

Ao aproveitar o interesse das crianças pelas horripilantes histórias de caveiras e esqueletos, professoras de são paulo encontram maneira criativa de pesquisar e vivenciar o corpo humano
Desenhos feitos pelas crianças da Escola de Educação Infantil Recreio e retirados da Revista Avisa Lá, nº 15, junho/2003

Desenhos feitos pelas crianças da Escola de Educação Infantil Recreio e retirados da Revista Avisa Lá, nº 15, junho/2003

O projeto Caveiras Imaginárias, Esqueletos Científicos foi desenvolvido ao longo do 2º semestre de 2006 com crianças de cinco anos, na Escola de Educação Infantil Recreio, na cidade de São Paulo. Ao longo deste texto, relataremos nosso percurso, explicitaremos os objetivos e compartilharemos alguns frutos colhidos ao final da trajetória.

Antes de se configurar como um tema de estudos, o esqueleto humano despertava grande interesse no grupo, associado às “horripilantes” histórias de terror, bastante requisitadas pelas crianças! O livro Contos de enganar a morte, de Ricardo Azevedo, reinava soberano em nossas rodas de história, trazendo caveiras em suas ilustrações, além da temática recorrente do moço esperto que não quer “bater as botas” e, para tanto, inventa criativas estratégias para enganar a “marvada” e adiar sua partida “desta para melhor”.

Desmistificando a associação do esqueleto humano com histórias de terror, fantasmas e assombrações, propus às crianças a idéia de estudarmos o corpo humano de maneira científica. Um desafio e tanto, que logo contou com a adesão animada do interessado grupo de crianças.

De onde vêm os ossos?
Apalpando as partes mais duras de seus próprios corpos veio a descoberta: “Nós também temos caveira!”. E algumas crianças, mais familiarizadas com o assunto, traziam ao grupo explicações interessantes: “Todo mundo tem caveira. É que quando a gente morre, nosso corpo derrete e só sobra a caveira!”. Assim, as hipóteses sobre a existência de ossos em nosso corpo foram se configurando. Uns achavam que já nascemos com eles. Outros, pautados pela experiência de conhecerem bebês “molinhos”, pensavam que os ossos vinham através da dieta, composta por ossos de frango ou, ainda, que cresciam quando, dentro da barriga da mãe, os bebês são alimentados com ossos de outros animais. Eis um exemplo de nossas conversas:

Criança 1: – As crianças nascem sem ossos, depois elas crescem e os ossos crescem também.
Professora: – E como é que crescem?
Criança 1: – É que a criança come osso de frango e aí o osso vai para ela e cresce!
Professora: – Quem aqui come osso de frango?
Criança 2: – Não, não. Quando eu nasci eu já tinha osso!
Criança 1: – Ah, então é porque sua mãe comeu frango quando você tava na barriga dela e o osso foi pra você!
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Desde o início, discutir e problematizar as hipóteses levantadas, todas bastante plausíveis e bem articuladas com a vivência das crianças, foi o grande objetivo de nosso projeto de estudo. Mais do que encontrar as respostas certas, o enfoque nas perguntas e na busca por diferentes resoluções foi que moveu o grupo no processo de pesquisar. Neste contexto, registrar nossas descobertas tornou-se um importante ritual de sistematização do caminho percorrido e excelente meio de trabalhar com a linguagem escrita.

Registro das descobertas
Houve várias maneiras de promover o registro e a troca de idéias sistematizadas entre as crianças. Em algumas ocasiões, principalmente no início do projeto, cada criança ou dupla de crianças escolhia um dos livros de pesquisa disponíveis em nosso acervo e o folheava livremente. Aqui, o objetivo era que as próprias crianças elegessem, dentre as tantas temáticas e informações disponíveis, aquela que gostariam de pesquisar num primeiro momento. Munidos de folhas sulfite e lápis grafite, registravam suas sugestões que, em um segundo momento, eram compartilhadas com o grupo.

Definidos os temas de interesse, demos início às pesquisas mais sistematizadas. As crianças interessadas no cérebro, por exemplo, se dedicavam à pesquisa com minha ajuda, enquanto as outras se concentravam em atividades mais autônomas (massinha, jogos ou desenho). Na roda de conversa, trocávamos, todos juntos, idéias, descobertas e impressões que eram registradas, coletivamente, em nosso Diário de Pesquisa (que foi como batizamos o livro de registro).

Como dito anteriormente, a veracidade científica das informações não era tão importante quanto as hipóteses e as conclusões a que o grupo chegava em nossas deliciosas conversas. Dessa forma, os registros se pautavam na compreensão possível de nosso misterioso corpo humano. Esta concepção de ensino/aprendizagem se vincula ao entendimento de que o conhecimento está em processo permanente de construção e, segundo essa lógica, é sempre provisório e inacabado.

Foi assim com o estudo dos ossos, das diferenças anatômicas sexuais, do caminho percorrido pelos alimentos até se transformar em fezes, das funções cerebrais e assim por diante. Muitos questionamentos, conversas, confronto de idéias e busca por novas resoluções foram percorridos até que chegássemos ao registro final de sistematização das pesquisas feitas.
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Hipóteses de escrita
É importante perceber que, nesta forma de planejar e articular as atividades de pesquisa, a escrita e o registro se vinculam ao uso social dos mesmos. A implicação disso para a prática cotidiana é que promovemos uma inversão em relação à concepção tradicional de leitura e escrita. Em outras palavras, ao invés de a criança já saber ler e escrever convencionalmente para, depois, estar apta a pesquisar, ocorre o contrário. Movidas pela curiosidade e pelo desejo da descoberta, elas aperfeiçoam seus conhecimentos a respeito da leitura e da escrita a partir e através de atividades significativas como, neste caso, a pesquisa do corpo humano.

Aqui as coisas acontecem ao mesmo tempo e não há necessidade de que todas as crianças tenham um mesmo nível de conhecimento e habilidades. Frente aos desafios propostos, todos avançam em seu próprio ritmo. Não precisam também estar “prontos” ou preparados para desafio, posto que ele não se esgota, é sempre reeditado e reproblematizado de acordo com os caminhos traçados. Alguns belos exemplos de nossas conclusões e das hipóteses de escrita que as crianças foram construindo ao longo desse percurso:

O SRBO FAZ A GT PSA C MEX E TR IDIA FCA DRO D RNO
(O cérebro faz a gente pensar, se mexer e ter idéias. Fica dentro do crânio.)

O MENINO CONEU 1 BISCOTO TI VAI DIRA COCO O COQO AS PLA BUDA
(O menino comeu um biscoito que vai virar cocô. O cocô sai pela bunda.)

O TETI E 1 OSO APARSC NAS CAVRA
(O dente é um osso. Aparece na caveira.)

OS BBS NACS DA BARGA DA MAI POR QUELA TENO UTRO QE É ACASA DS BEBS
(Os bebês nascem da barriga da mãe porque lá tem o útero, que é a casa dos bebês.)

A VZS TAC 2 BB DI 1 VS SO SOÃ GMIOS
(Às vezes nascem dois bebês de uma vez só. São gêmeos.)

UDO MOREMOS NOSSO CAORPO VIRA POEIR
(Quando morremos nosso corpo vira poeira.)

O SACO FICA ENBAXO DO PINTO QE QUARDA A SEMNTE
(O saco fica embaixo do pinto e guarda a semente.)

NA FMA DU PIUI U PAI XA U OV IA MNI VI KA
(Na família dos pingüins o pai choca o ovo e a mãe vai caçar.)

Visita inesperada
Todas as crianças participaram de nosso Diário de Pesquisa, cada uma a sua maneira e a seu tempo. No início, algumas estavam mais tímidas para escrever, mas, no decorrer das atividades, foram ganhando confiança para arriscar suas hipóteses, sempre em um ambiente de respeito quanto ao processo percorrido por cada criança, rumo à escrita alfabética.

Assim, os temas pesquisados ganharam ares de ciência sem que, contudo, deixássemos de lado a magia do faz-de-conta. As histórias de terror e as brincadeiras de monstro continuaram bastante requisitadas pelas crianças, mesmo sabendo que esqueleto não é sinônimo de “ser do mal”. No transcorrer de nossos estudos, fomos presenteados com a visita do Paulo, um triatleta com a parte inferior da perna direita amputada. Esse acontecimento foi bastante marcante para todos nós. Com o objetivo de desmistificar o mal-estar que eventualmente poderia causar a ausência de uma das pernas, Paulo tratou do tema com a maior naturalidade.

Respondeu às perguntas das crianças, contou histórias divertidas a respeito de sua perna e fez questão de nos mostrar a extremidade do membro amputado, que causou espanto geral nas crianças: “Mas, cadê o sangue?” “Como que tá fechado se, quando a gente corta, fica aberto?”.

Iniciou-se então a procura geral por cicatrizes que, como a do Paulo, indicavam a história de cortes e machucados que já haviam sarado e, por essa razão, não mais tinham sangue nem doíam. Ao final da visita, Paulo deu uma pequena demonstração de corrida com sua prótese especial que, como disseram as crianças: “É igual à mão do Capitão Gancho!”.

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Paulo mostra suas fotos de triatlo e as crianças perguntam: “– Você tira a perna para dormir?”, “– Como toma banho com ela?”, “– Sua perna tem chulé?”…

Laboratório dos Sentidos
Para além das atividades de pesquisa do corpo e de suas possibilidades de movimentação, as crianças participaram do que chamamos de Laboratório dos Sentidos. Momentos de massagem, alongamento e livre exploração dos movimentos foram planejados com o intuito de as crianças vivenciarem outras possibilidades de gestos, posturas e movimentos, que não os explorados nas atividades cotidianas.

Esses momentos possibilitaram a ocorrência de posturas inusitadas, como o toque em diferentes partes do corpo, de si próprio e dos colegas; a escuta do silêncio e dos barulhos corporais emitidos naturalmente; a movimentação de acordo com diferentes ritmos produzidos com nossos corpos, como bater palmas, bater os pés no chão, estalar a língua no céu da boca, entre outros.

As possibilidades, preferências e incômodos das diferentes crianças ficaram bastante explicitados nessas atividades. Uns não gostavam de massagem na barriga, outros não queriam ser tocados e ainda havia aqueles que queriam ser massageados por todos.

Descobrir os próprios limites, respeitá-los por um lado, e tentar alargá-los, por outro, foi um desafio constante e bastante revelador das peculiaridades de cada um. Tudo isso esteve presente nos dias de massagem, dando aos corpos, além da dimensão científica (bastante explorada nos momentos de pesquisa e que nos torna iguais enquanto espécie), a dimensão vivida e subjetiva, diante da qual todos somos diferentes!

O projeto rendeu bons frutos entre as crianças, tanto no que se refere à ampliação dos conhecimentos científicos sobre o corpo humano, quanto em relação ao avanço nas hipóteses de escrita. Além disso, após a visita de Paulo, o olhar de todos para as diferenças corporais ficou mais aguçado. As crianças passaram a relatar histórias de pessoas conhecidas que andam de muletas ou cadeira de rodas e passaram a ter um olhar mais cuidadoso com as crianças da própria escola que são portadora de algum tipo de necessidade especial.
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É preciso mencionar a sempre importante contribuição dos pais, que foi fundamental para que contássemos com boas fontes de pesquisa (através dos livros trazidos de casa) e uma bela “visão panorâmica” dos ossos que sustentam nosso corpo (através das radiografias emprestadas que nos acompanharam por todo o semestre, grudadas à janela de vidro perto da sala). Sem esquecer, é claro, dos diversos CDs de música de relaxamento e meditação, que nos renderam deliciosas tardes de massagem e alongamento: uma experiência com os corpos reais de cada uma das crianças do grupo

(Marta Serra Young Picchioni e Bel Linares, professora e coordenadora pedagógica, respectivamente, da Escola de Educação Infantil Recreio, na cidade de São Paulo)

Ficha técnica

Escola de Educação Infantil Recreio
Rua Mourato Coelho, 1390 – Pinheiros – São Paulo – SP. CEP: 05417-002 – Tel.: (11) 3032-6488 / 3813-0862
E-mail: secretaria@escolarecreio.com.br
Professora: Marta Serra Young Picchioni
Psicóloga e coordenadora pedagógica: Bel Linares

Para saber mais

Livros

  • Contos de enganar a morte, Ricardo Azevedo. Ed. Ática. Tel.: (11) 3346-3000
  • Dr. Cão, Babette Cole. Ed. Ática. Tel.: (11) 3346-3000
  • Corpo humano: A descoberta de um mundo secreto, F. Willians. Ed. Globo.
  • Coleção Pesquisas de conhecer: O corpo humano ed. Nova Cultural. Tel.: (11) 3039-0900
  • Dicionário Larousse: Corpo humano

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