Aproximação com a cultura escrita

Textos de qualidade e professores que consideram a leitura e os comportamentos leitores como conteúdos são fundamentais para aproximar as crianças do universo da cultura escrita

O terceiro encontro do Programa Formar em Rede1 teve início com a leitura em voz alta do texto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector2. Antes, porém, a autora foi apresentada por meio de informações biográficas e de comentários acerca de outras obras da escritora. Entre elas, Laços de família. Após a leitura, o grupo conversou a respeito da escrita criativa da autora sobre a infância e sua relação com os livros. Ficou evidente que conhecer um autor interfere e contribui para que o leitor compreenda o que será lido e possa estabelecer relações para além do momento da leitura.

Na sequência, foram retomados alguns combinados com o grupo. A formadora Telma conduziu a Agenda Cultural3, solicitando aos coordenadores e diretores que fizessem as indicações literárias, conforme acertado anteriormente, mas ninguém se manifestou. Ao serem questionados sobre a não realização da atividade, eles apresentaram como justificativa as diversas leituras ligadas diretamente ao trabalho ou à conclusão de atividades escolares (graduação, pós-graduação etc.). Em seguida, Telma apresentou sucintamente a programação da Semana Literária 2010 do SESC4 Umuarama – PR e destacou a importância da participação de gestores e de leitores.

Interessante como a leitura ainda é algo distante do dia a dia dos coordenadores pedagógicos e dos diretores, pois não são necessárias grandes obras literárias para que se possa usufruir da cultura. A leitura do jornal, de uma revista, ou estar atento ao que se ouve no rádio, abrem inúmeras portas. Às vezes, não conseguimos dar conta de tantos compromissos, mas estar a par, saber o que acontece no mundo e, na medida do possível, instituir a cultura como lazer, é importante. (Comentário da consultora Renata Frauendorf)

Conforme previsto, as coordenadoras Luiza Maria Pagani (Centro Municipal de Educação Infantil Madre Paulina), Maria Ussifati da Silva (Escola Municipal Sebastião de Mattos – Educação Infantil e Ensino Fundamental) e Maria Rosa de Oliveira Santos (Creche Pequeno Polegar) fizeram a leitura da síntese do encontro anterior. O grupo destacou como momento importante as atividades realizadas em torno dos Cantos Literários. Trata-se de uma proposta em que os coordenadores pedagógicos e os diretores escolhem, entre diferentes espaços, uma leitura, um livro e, depois, justificam a escolha. Essa ação formativa fez com que eles percebessem que tal situação contribuiu para ampliar o conhecimento de todos sobre a diversidade dos gêneros literários, dos autores e de títulos. Foi entregue a cada participante uma cópia da pauta, lida em voz alta.

A formadora Silvia propôs uma discussão sobre o texto “Leitura do mundo, leitura da palavra, leitura proficiente: qual é a coisa que esse nome chama?”, de Kátia Bräkling5, para verificar com os participantes possíveis maneiras de uso do texto na formação, baseando-se nas seguintes questões:

  1. Qual a contribuição do texto para o trabalho com os professores?
  2. Qual o ponto que pode causar mais discussão ou reflexão na equipe docente?
  3. Qual o trecho que propiciou mais reflexão durante a leitura? Por quê?

Foi feita uma proposta aos coordenadores pedagógicos e aos diretores para que eles solicitassem aos professores a leitura e o estudo do texto. Durante a leitura, eles deveriam sublinhar as partes consideradas mais relevantes e responder às seguintes questões:

  1. Qual a contribuição decorrente da leitura do texto?
  2. Qual foi o trecho que ampliou a reflexão sobre sua prática?
  3. Quais foram as dúvidas ou dificuldades surgidas ao longo da leitura?
  4. Em que sua prática coincidiu com o explicitado? O que falta ou o que ainda precisa melhorar?

Aceita a proposta, o grupo de formação iniciou a discussão sobre o texto com base nas contribuições feitas pelos professores. Por exemplo: O texto permite refletir sobre a prática. / É um ótimo instrumento para discutir o fazer do professor. / Serve para que o professor perceba a importância da roda de leitura. / Dá clareza sobre os aspectos que a escola ainda precisa melhorar, no que avançar, isto é, nossa prática. / Faz pensar em leitura para quê? Para quem? Ler por ler?

Silvia sistematizou a conversa e deixou claro que o texto contribui para distinguir comportamento e propósito leitores, como também modalidades de leitura, além de fortalecer todos os aspectos apontados. Na sequência, conversaram sobre os pontos que suscitaram mais discussão e reflexão na equipe de professores. Merece destaque a conclusão feita pela coordenadora Dalva Teodoro de Azevedo da Silveira (Escola Municipal Souza Naves – Educação Infantil e Ensino Fun da mental): Nós, professores, estudamos muito, mas colocamos pouco do que aprendemos em prática.

Outros aspectos também foram destacados e merecem registro: “Acreditar no potencial dos alunos… O que é ler? Lemos e não entendemos; isso acontece também com os estudantes… Muitas vezes, eles leem com dificuldade e, por isso, não entendem o que leram… ”

Silvia acrescentou: “Estamos deixando de trabalhar questões essenciais no comportamento leitor, indispensáveis para formar leitores competentes. Portanto, a leitura deve ser algo dinâmico para que os estudantes descubram o que está por trás dela.”

Encontro de Formação com coordenadoras e diretoras (foto: Renata Frauendorf )

Encontro de Formação com coordenadoras e diretoras (foto: Renata Frauendorf )

Leitura qualificada
Na atividade “Banca de livros”, foram recolhidos os exemplares trazidos pelos diretores e coordenadores pedagógicos. Os livros foram colocados em um tapete. Primeiro, cada um observou, leu e escolheu duas publicações: 1) para indicar ao professor para ler em sala, com a turma; 2) que não indicaria ao professor.

Foi um momento interessante de se observar! Afinal, cada coordenador utilizou critérios pessoais, seus conhecimentos prévios a respeito da obra, do autor, das experiências com o livro etc.

Em pequenos grupos, os educadores compartilharam as escolhas, informaram as razões que os levaram a indicar ou não o livro e registraram os pontos comuns.

Essa atividade foi importante porque possibilitou aos coordenadores e diretores perceber o quanto a utilização de critérios consistentes é importante para a seleção dos livros lidos pelos professores no momento da leitura em voz alta.

O grupo foi bastante crítico e, mesmo quando alguém indicava positivamente determinada publicação, quem não concordava com tais argumentos expunha as razões pelas quais não eram favoráveis ao uso do livro para o momento da leitura em voz alta.

Ouvir o outro e dar opinião é um avanço, pois sabemos o quanto é difícil em um grupo fazer as pessoas se posicionarem. (Comentário de Renata Frauendorf)

A seguir, relacionam-se alguns exemplos de livros sugeridos pelos participantes e os critérios que nortearam a indicação:

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Dentre as discussões relacionadas às atividades, alguns pontos foram fundamentais e merecem ser registrados. Inicialmente, a formadora Telma discorreu sobre a importância de se falar sobre os livros lidos pelos alunos. Também foram propostas algumas questões: “Que tipo de leitura desperta o interesse das crianças em cada faixa etária? Devo ler textos curtos ou longos? Qual é a medida quando se trata de leitura?” O grupo indicou critérios para apoiar a escolha de publicações a serem lidas nas escolas:

  • Riqueza de vocabulário e detalhes.
  • Tipo de ilustração.
  • Texto apropriado para crianças, atentando-se para a faixa etária.
  • Conhecer o texto a ser lido com antecedência.
  • Prioridade para as versões originais.
  • Opção por narrativas que tenham marcas de temporalidade.
  • Escolha de exemplares com informações sobre autor, ilustrador, editora etc.

Começar a considerar esses critérios é fundamental para qualificar os momentos de leitura realizados nas escolas. Parece óbvio, mas sabemos o quanto é inédito, para alguns professores, pensar sobre qual livro ler. Desconstruir a ideia de que qualquer leitura vale porque as crianças são pequenas e não são leitoras convencionais é um caminho a ser seguido na formação. (Comentário de Renata Frauendorf)

Para finalizar a atividade, o grupo leu o texto Quem conhece pode escolher melhor, de Maria Virgínia Gastaldi6, e fez os seguintes apontamentos: “O texto fez um fechamento do conteúdo visto até agora. / Será que, realmente, estamos ensinando aos nossos alunos os comportamentos leitores? / Na questão referente a como adquirir os livros de qualidade, o grupo foi unânime na decisão de que cada instituição deve complementar seu acervo para garantir boas leituras e, de modo geral, todos concordaram que possuem um bom acervo e que o PI7 é um excelente instrumento para priorizar as ações necessárias ao enriquecimento ou reorganização do acervo”. Silvia dividiu os participantes em pequenos grupos e pediu que lessem a situação hipotética a seguir:

Durante o encontro de formação realizado com seu grupo de professores, uma coordenadora registrou no caderno alguns comentários feitos pela equipe acerca do sentido da leitura para as crianças e o que fazer antes, durante e depois da leitura de histórias.

“A hora da história em nossas escolas não é bem aproveitada. Muitas vezes, contamos histórias para preencher buracos ou passamos dias sem ler, por falta de tempo.”

“Quando leio histórias para as crianças, peço que façam alguma coisa depois. Pode ser um desenho, uma peça de teatro, ou responder a perguntas sobre o texto. Sem isso, acho que a leitura não é uma atividade. Fico sem saber o que compreenderam.”

“Geralmente, antes da roda, eu peço para uma criança escolher um livro de historinhas que não conhecemos. Digo para prestarem bastante atenção na leitura, ficarem quietos, que depois mostro as figuras.”

“Antes de ler, peço silêncio e digo que depois vou fazer perguntas para saber quem prestou bastante atenção.”

“Não tem história difícil para minhas crianças, pois quando eu acho que tem palavras difíceis, que elas não estão entendendo, paro de ler e explico, ou troco rapidamente por uma mais fácil. Elas nem percebem.”

“Eu prefiro contar histórias porque meus alunos prestam bem mais atenção. Eles não gostam quando eu leio. Logo se dispersam.”

Em seguida, foi pedido ao grupo que respondesse às seguintes questões:

  1. O que os professores entendem por leitura?
  2. Qual deverá ser o foco da formação com o grupo visando a uma reconceitualização do objeto de ensino e por quê?

Respostas: “Acham que, depois da leitura, têm sempre que cobrar algo. / Não compreendem os comportamentos leitores como conteúdo a ser ensinado. / Uma atividade a ser desenvolvida com o aluno, porém sem planejamento, sem acompanhamento, sem objetivo. / Mero objeto de decodificação. / Não estabelecem critérios para a seleção de livros. / Não veem a leitura como prática social. / Não dão ênfase à tipologia textual, aos gêneros e aos portadores.”

Ficou definido, então, que a formação deveria estabelecer momentos de estudo com esse grupo, com vistas a entender a função da leitura.

Houve uma conversa sobre estratégias formativas mais adequadas relacionadas ao trabalho com os docentes e as respostas foram: leitura de bons livros, ser um bom modelo de leitor, indicar estudos teóricos, tematizar a prática… Silvia complementou: “Muitas vezes, quando os professores pedem ajuda, apoio, modelos de atividades, sugestões sobre o que necessitam, devemos usar estratégias formativas com eles, para que mudem a prática e reflitam sobre suas ações. O intuito é fazer o professor buscar a própria autonomia, ajudá-lo a ser pesquisador”.

O coordenador Edson Pompílio da Silva (Escola Municipal Dr. Ângelo Moreira da Fonseca – Educação Infantil e Ensino Fundamental) comentou: “Quando o professor não atinge o objetivo, ele deve retomá-lo. Se o aluno não se apropriou do conhecimento, o educador precisa ter clareza de que deve mudar a estratégia. Ainda não vejo muito essa prática entre eles.”

Notem como a ideia de que a responsabilidade por aprender é apenas do aluno e não do professor; o foco está no ensino, não na aprendizagem. Ainda não há a preocupação sobre como as crianças aprendem. (Comentário de Renata Frauendorf)

Após essas reflexões, a coordenadora Silvia analisou com o grupo a pauta a ser desenvolvida com a equipe docente na escola. Para a leitura em voz alta é fundamental escolher textos de qualidade, com boas tramas, imaginação, gosto, cheiro, prazer, vida, vocabulário amplo…

(Silvia dos Santos Ribeiro Ruffo, coordenadora pedagógica da área de Língua Portuguesa – Educação Infantil e Ensino Fundamental – e Telma Cristina Barbosa Erhardt, coordenadora pedagógica da área de Ciências – Educação Infantil e Ensino Fundamental. Ambas são formadoras locais do município de Umuarama – PR do Programa Formar em Rede, do Instituto Avisa Lá.)

1O Programa Formar em Rede é uma iniciativa conjunta dos Institutos Avisa Lá e Razão Social com o apoio tecnológico da IBM. Nasceu do desejo de contribuir com o atendimento prestado às crianças pequenas por meio de ações formativas dirigidas a diretores, coordenadores e educadores de Educação Infantil, que auxiliem a criança a construir conhecimento de maneira criativa e inteligente.

2Felicidade clandestina, de Clarice Lispector. Ed. Rocco. Tel.: (21) 3525-2000. E-mail: rocco@rocco.com.br. Site: www.rocco.com.br.

3Agenda Cultural é o momento no qual são indicados livros, espetáculos, filmes, sites etc. com o objetivo de ampliar o repertório cultural dos coordenadores.

4A Semana Literária do Serviço Social do Comércio (SESC Paraná) é um evento que conta com palestras, oficinas, mesas-redondas, intervenções literárias, lançamentos de livros, leituras dramáticas e exposições, além de reunir estandes de diversas livrarias e sebos. Durante o evento, renomados escritores nacionais discorrem sobre suas experiências e a importância da leitura, seja como fonte de conhecimento ou entretenimento,  estabelecendo relação com a vida do leitor. As discussões suscitam temas como os hábitos de leitura do brasileiro, os tipos de leituras feitas cotidianamente, a dificuldade para disseminar essas práticas de leitura e como esse processo se dá na vida de renomados escritores que dedicam grande parte do tempo à literatura.

5O texto Leitura do mundo, leitura da palavra, leitura proficiente: qual é a coisa que esse nome chama?, de Kátia Bräkling, foi publicado na revista Para Viver Juntos, outubro de 2008. Edições SM.

6Revista Avisa lá, no 7, julho/2001.

7PI significa projeto institucional desenvolvido pela escola. Ele é elaborado pela equipe gestora e envolve os professores e o apoio escolar (merendeiro, secretária, auxiliar de limpeza etc.)

8Em Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Delia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br

Ficha Técnica

  • Coordenadora: Beatriz Gouveia
    E-mail: biagouveia@uol.com.br
    Consultora: Renata Frauendorf
    E-mail: rsfrauendorf@globo.com
    Responsabilidade técnica: Instituto Avisa Lá
    Parceiros: Instituto Razão Social e apoio tecnológico da IBM
    Site: www.formaremrede.org.br
  • Prefeitura Municipal de Umuarama – PR
    Secretaria Municipal de Educação
    Endereço: Paço Municipal – Centro Cívico – Avenida Rio Branco, 3717 – Centro – CEP: 87501-130 Tel.: (44) 3621-4141, ramal 266
    E-mail: educacao@umuarama.pr.gov.br
    Site: www.umuarama.pr.gov.br
    Formadoras locais: Silvia dos Santos Ribeiro Ruffo e Telma Cristina Barbosa Erhardt
    E-mails: silsantosnbeiro@Tahoo.com.br e telma-erhardt@hotmail.com

Para Saber Mais

Livros

  • Leitura do mundo, leitura da palavra, leitura proficiente: qual é a coisa que esse nome chama?, de Kátia Bräkling. Revista Para Viver Juntos. Edições SM: Rio de Janeiro, outubro de 2008. Tel.: (21) 2145-5214. E-mail: comercial.rj@grupo-sm.com Site: http://www.edicoessm.com.br
  • Ler e escrever na escola:, o real, o possível e o necessário, de Delia Lemer. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br
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