Desafios da reescrita

Professores que enfrentam as mesmas situações-problema propostas aos alunos em sala de aula conseguem ensinar melhor
Foto: Jaquelline Andréa Marques

Fotos: Jaquelline Andréa Marques

O tema produção de textos, em 2009, foi trabalhado nos encontros mensais de formação com as supervisoras do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, no município de Nova Lima (MG), no contexto do Programa Além das Letras1. Como ainda tínhamos dois encontros em 2010, alguns questionamentos surgiram: Quais outros conteúdos sobre produção de texto poderíamos trabalhar com os supervisores que já tinham demonstrado grandes avanços? Quais situações propor aos professores que vinham desenvolvendo um trabalho de reescrita com seus alunos, desde os anos iniciais do Ensino Fundamental? Quais desafios faríamos aos estudantes para que colocassem em jogo a maior quantidade de conhecimentos, avançando ainda mais na escrita? Com isso, planejamos nosso encontro de formação tendo por proposta a reescrita com a modificação do narrador da trama. Resgatamos com as supervisoras os conteúdos aprendidos sobre o assunto a partir da pergunta: Quais as vantagens do trabalho com reescrita? E problematizamos: Uma ideia que geralmente circula entre os professores é que a situação de reescrita não gera nenhum desafio aos alunos, nem exige deles criatividade, porque a história já é conhecida de todos. No entanto, apesar de a trama ser conhecida, eles escreverão o texto com as próprias palavras. A produção escrita é considerada criação do estudante, versão pessoal de um texto-fonte porque não é cópia nem memorização.

Considerando a existência de um texto-fonte, não é possível dizer que o fator preponderante em uma situação de reescrita seja a criação, pois a história já está dada. No entanto, isso não minimiza a importância da situação didática, que traz ao aluno a possibilidade de reescrever, a seu modo, uma história já bem conhecida. Um dos valores didáticos é justamente poder iluminar a elaboração do texto como foco de desafio ao aprendiz.

Saber a história que será escrita certamente não é um ato de criação, mas é um conhecimento que libera o estudante para focar sua atenção em outros desafios importantes na aprendizagem da produção de texto. Portanto, ele pode pensar em como vai escrever a história, quais termos escolherá, em que ordem apresentará os fatos, como vai revelar os personagens e não se preocupar em inventar um enredo original. O foco estará na aprendizagem de elementos que compõem uma boa produção de texto pelo aluno. (Comentário de Débora Rana)

Momentos de reflexão
Para dar continuidade à reflexão acerca da reescrita, analisamos um vídeo que foi feito com uma turma de 5º ano em uma das escolas de nosso município. O bom modelo da aula filmada possibilitou comentários, tais como:

  • Produção coletiva: é nesse momento que a professora tem a oportunidade de tornar claro o comportamento escritor aos alunos, fazendo-os pensar sobre a linguagem escrita.
  • Textualização na reescrita: o professor deve exercer a função de escriba, deixando para a criança a tarefa de textualizar. É o momento em que o docente deve estar atento para descobrir o que cada um de sua turma sabe e quais as dificuldades.
  • Revisão na reescrita: acontece durante e após a reescrita. Ao reler o texto, o professor organiza com a turma o que ainda precisa ser escrito, avaliando a clareza e a coesão para que ele seja compreensível ao leitor, o cuidado com as repetições de palavras, pensando sempre em melhorar a produção.

No segundo momento do encontro, analisamos com o grupo o texto A verdadeira história dos três porquinhos2, de Jon Scieszka, em que o lobo é o narrador e também a personagem: “…No tempo do Era uma vez, eu estava fazendo um bolo de aniversário para minha querida e amada vovozinha.” Para escrever assim, o autor enfrenta como desafio revelar o ponto de vista do narrador.

O texto mostra muito bem essa questão quando o lobo usa bons argumentos para se defender e contar o que aconteceu na trama sob o seu ponto de vista: “…Ninguém conhece a verdadeira história dos três porquinhos, porque ninguém jamais escutou o meu lado da história.” Refletimos sobre a diferença entre uma narrativa feita em primeira e em terceira pessoa, quais os pronomes e conjugações verbais mais empregados e, ainda, os desafios de apresentar o narrador que ao mesmo tempo conta e participa da história. Não nos preocupamos, nesse momento, em conceituar focalização e modalização.

Essa foi uma boa decisão, pois para trabalhar com essa proposta mais complexa, é necessário aumentar o repertório sobre o gênero que será abordado, ou seja, entrar em contato com várias versões da narrativa. Esse tipo de reflexão sobre o uso da linguagem ajuda a reunir os principais elementos e expressões que serão usados no momento de dar vida aos relatos. Vale destacar que a modalização está ligada à voz do narrador, ou seja, quem fala. Nesse caso, desde o início, tem sua intenção definida uma vez que está envolvido na história, tal como o exemplo do lobo. Já a focalização é a perspectiva ou o ângulo de visão de quem conta a história. (Comentário de Débora Rana)

Grupo de Supervisoras Pedagógicas (foto: Jaquelline Andréa Marques)

Grupo de Supervisoras Pedagógicas

Hora da prática
Na próxima situação formativa, a proposta foi colocar as supervisoras diante do desafio de reescrever a fábula A assembleia dos ratos3, de Jean La Fontaine, na pele de um dos personagens. Nesse momento, elas teriam de enfrentar dois desafios simultaneamente: pensar nas palavras a serem utilizadas pelo narrador a fim de convencer o leitor de sua posição apresentada na história – pois ele é ao mesmo tempo também um personagem – e articular o ponto de vista de quem conta a história – o gato, por exemplo, teve sua participação somente no início da fábula. Como contar uma história tendo o gato como narrador e personagem ao mesmo tempo, se ele não sabia o que estava sendo tramado pelos ratos nessa assembleia? Quais argumentos o animal teria para justificar o grande destroço feito por ele na rataria? Percebemos grande envolvimento dos grupos durante a atividade que parecia ser, de fato, desafiadora. Posteriormente, os grupos leram suas produções e falaram das dificuldades enfrentadas e dos caminhos encontrados diante dos problemas ao modificar o narrador da trama.

Presenciamos um momento de reflexão da prática e construção de um novo conhecimento quando uma das supervisoras comentou: “Agora me recordo quando propunha aos alunos que escrevessem um texto a partir do título: Se eu fosse…( um personagem qualquer)”. Se foi difícil para os supervisores modificar o narrador da trama, como os professores poderiam exigir de seus alunos a produção de texto a partir somente de um título desse tipo, sendo que eles não vivenciaram a experiência de produzir uma trama em que o narrador é também personagem? Em seguida, lemos as duas reescritas produzidas por nós, identificando, junto ao grupo, o ângulo de visão de quem conta a história e a voz narrativa.

A estratégia utilizada é chamada de dupla conceitualização – permite colocar dois conteúdos em ação: o objeto de ensino e as condições didáticas para ensiná-lo. Quando trabalhada como uma situação-problema real para as supervisoras, que as colocou de frente com a dificuldade, mobilizou os conhecimentos e possibilitou a tomada de consciência do que está por trás de práticas, às vezes, mecânicas do cotidiano. Portanto, o “real”, da autora Délia Lerner, é aqui tomado no sentido de ser um desafio adequado e não adaptado a elas. No segundo momento, as supervisoras poderão pensar nas condições didáticas de ensino da produção de texto quando se muda o narrador. (Comentário de Débora Rana)

Finalizamos o encontro nesse ponto e, coletivamente, chegamos às seguintes conclusões: não basta apenas propor aos alunos que modifiquem o narrador da trama, pois não é tarefa simples. O professor precisa ensinar como resolver o desafio de ser personagem e narrador ao mesmo tempo (reescrita coletiva, revisões durante e após a reescrita e análise de textos em primeira pessoa). Os docentes necessitam passar pelos mesmos desafios propostos às supervisoras naquele encontro, pois só assim perceberão os desafios contidos na proposta.

Reflexão conjunta

Reflexão conjunta

Pauta de formação 8º encontro

Formadoras: Jaquelline Marques e Luciene Campos

Datas: 22 e 23 de março de 2010

1- Leitura coletiva

  • Leitura em voz alta do livro A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka.

2- Objetivos do encontro

  • Tematizar uma situação de reescrita em sala de aula, analisando a postura do professor.
  • Discutir a importância da re escrita com personagem-narrador, como caminho para a produção de autoria.
  • Mostrar a relevância de analisar os recursos linguísticos utilizados pelo autor, como elementos que vão ajudar os alunos a produzir narrativas em primeira pessoa.
  • Discutir os conceitos de modalização e focalização em uma produção em que o narrador é também personagem.

3- Levantamento de conhecimentos prévios

  • Responder à pergunta: Quais as vantagens do trabalho com reescrita, como proposta para produção de textos?

4- Tematização de reescrita

  • Reescrita da fábula A assembleia dos ratos, de Monteiro Lobato4, e análise de uma aula filmada em uma turma de 5º ano, da professora Vânia Lúcia Vito, na EM Dulce Santos Jones, Nova Lima (MG).

Neste vídeo, a professora Vânia Lúcia Vito realiza com seus alunos de 5º ano uma reescrita coletiva da fábula A assembleia dos ratos, de Monteiro Lobato. A filmagem desta aula serviu para tematizar, com os supervisores, a postura do professor quando se deseja que os alunos realizem uma reescrita de qualidade. A professora conseguiu mostrar uma sequência de propostas, planejando com os alunos o que seria escrito, lendo e relendo o que escreveram, revisando durante e após a produção, deixando sempre a textualização por conta da turma e fazendo-os pensar na linguagem que se usa para escrever. Questões a serem discutidas após a exibição do vídeo:

  • Os alunos conseguiram reescrever a fábula?
  • No momento da reescrita, quem textualizou?
  • Houve momentos de revisão? Quais?
  • Você consegue identificar as intervenções da professora no momento da reescrita? Quais? Com que objetivo?

Me parece claro que querem mobilizar o conhecimento acumulado sobre reescrita. Não esqueçam de, no final, destacar esta intervenção, pois é importante perceberem que sempre se mobiliza o conhecimento acumulado para avançar neste mesmo conhecimento, isto ajuda na construção de sentido. (Comentário de Débora Rana)

5- Análise de texto em grupo

  • Análise do texto A verdadeira história dos três porquinhos, escrito em primeira pessoa, identificando os recursos linguísticos, pontos de vista do narrador (focalização) e voz narrativa (modalização). Quais marcas podem ser encontradas em um texto em que o narrador é também personagem?

A proposta é boa, mas se preparem porque a resposta pode não ser tão fácil. (Comentário de Débora Rana)

6- Situação de dupla conceitualização

  • Reescrever, tendo um personagem como narrador, a fábula A assembleia dos ratos, texto já conhecido do grupo.

Elas precisam se dar conta disso quando forem discutir a pauta.
(Comentário de Débora Rana)

A tarefa deve ser feita em trios, com uma pessoa relatando as discussões. Após a reescrita, comentar quais foram as dificuldades encontradas ao escrever uma narrativa em primeira pessoa em que o narrador é também um personagem, e o que foi essencial fazer para enfrentar esse desafio e quais cuidados tiveram ao escrever.

7- Apresentação de versões

  • Apresentar duas versões da fábula A assembleia dos ratos, sendo que, em uma, os narradores da trama são os ratos; na outra, o gato.
  • Pedir para que as supervisoras comparem as duas e analisem os pontos de vista de quem narra e a maneira como se dá a narrativa.

Fiquem prontas para ajudá-las se o número de coordenadoras pedagógicas for pequeno. Uma ideia é realizar esta etapa com um grupo só, ou seja, com o grupo todo. (Comentário de Débora Rana)

8- Leitura compartilhada

  • Leitura compartilhada do texto Além da reescrita, publicado na revista Nova Escola, edição 223 (junho/julho de 2009).

Qual a consigna para a leitura?
(Comentário de Débora Rana)

9- Sistematização do encontro

  • Uma proposta de produção de texto que tem como tarefa modificar o narrador da trama exige do professor um planejamento que ensine aos alunos produzir esse tipo de texto. Que sequência de ações esse planejamento deve contemplar? É importante vocês se darem conta de que estão propondo uma tarefa difícil.

Penso que seria interessante pedir que voltem à tarefa 6 para ajudá-las nesse planejamento. (Comentário de Débora Rana)

Olá meninas,
Gostei muito desta versão da pauta. Acho que vão encaminhar um encontro difícil, de um trabalho inédito para as participantes; portanto, peço cuidado, sem correr. Busquem construir sentido para as supervisoras para que se torne um trabalho viável para os alunos. Por essa razão, é importante cuidar da chegada desse conteúdo na sala de aula. Deixem claro que as supervisoras precisam acompanhar de perto as professoras nas primeiras atividades (para não desorganizarem os alunos). A sequência proposta para o encontro também está boa. Se tudo der certo, vocês podem ter acabado de fazer o primeiro subsídio produzido pelas formadoras, e é o que buscamos ao fim de um projeto: a autonomia do formador. Análise de Débora Rana sobre a pauta elaborada por Jaquelline Andréa Marques e Luciene Campos Ferreira.

(Débora Rana, consultora do Instituto Avisa Lá; Jaquelline Andréa Marques e Luciene Campos Ferreira, formadoras locais de supervisores em Nova Lima – MG)

1O Programa Além das Letras é uma iniciativa do Instituto Avisa Lá e do Instituto Razão Social. É composto de uma premiação e de uma rede de formadores, que conta também com a tecnologia da IBM.

2A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka. Ed. Companhia das Letrinhas:São Paulo, 2010. Tel.: (11) 3707-3500. Site: www.companhiadasletrinhas.com.br

3A assembleia dos ratos, de Jean La Fontaine, Coleção Fábulas de La Fontaine. Ed. Girassol: São Paulo, 2008. Tel (11) 4196-6699. Site: http://www.girassolbrasil.com.br/

4In FÁBULAS de Monteiro Lobato. Editora Globo: :São Paulo. Tel.: (11) 3767-7880. Site: http://globolivros.globo.com

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Quer saber mais sobre reescrita?

Segundo a formadora do Instituto Avisa Lá, Débora Rana, reescrita é uma proposta privilegiada de produção textual para que os alunos enfrentem o desafio de pensar sobre a organização da linguagem, apoiando-se em um texto já conhecido. Para saber mais sobre o assunto e ter acesso a boas atividades de reescrita, consulte o site Nova Escola On-Line. Acesse www.novasescola.org.br e pesquise o tema.

Ficha técnica

Programa: Além das Letras
Coordenadora: Beatriz Gouveia
E-mail: biagouveia@uol.com.br
Consultora: Débora Rana
E-mail: deborarana@ajato.com.br
Responsabilidade técnica: Instituto Avisa Lá
Parceiros: Instituto Razão Social, em parceria com o Instituto C&A, Gerdau e Natura.

Secretaria Municipal de Educação de Nova Lima – MG
Núcleo de Formação Continuada
Endereço: Rua José Agostinho, 2335 – Osvaldo Barbosa Pena – Nova Lima – MG. CEP: 34000-000 – Tel.: (31) 3541-9715
Site: www.novalima.mg.gov.br
Formadoras locais: Jaquelline Andrea Marques e Luciene Campos Ferreira
E-mails: jaquellinemarques@yahoo.com.br e lucienenl@ig.com.br

Para saber mais

Livros

  • Narrar por escrito desde un personaje: acercamiento de los niños a lo literario, de Emilia Ferreiro e Ana Siro. Ed. Fondo de Cultura Económica, Colección Espacios para La Lectura: México (sem edição brasileira). Site: www.libreriasdelfondo.com/LF_Catalogo.asp
  • Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Délia Lerner. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br
  • Revista Nova Escola, edição 223 (junho/julho de 2009). Ed. Abril Disponível em: revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/mostre-classe-como-reescrever-texto-mudando-narrador-475209.shtml
  • Revista Gestão Escolar, edição (junho/ julho de 2009). Ed. Abril. Disponível em: www.novasescola.org.br

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