Menor e maior foco para a invenção

O estudo de uma artista contemporânea bem próxima enseja fazeres com diferentes graus de foco para invenção nas produções das crianças de 6 anos


Valéria Pimentel¹

Para que se faça significativa a aprendizagem de Arte, seus conteúdos precisam ser interessantes, acessíveis e apreensíveis
para quem vai aprender. Foi com base nessa ideia que pensei, há 12 anos, na possibilidade de os alunos de 1º ano estudarem a arte de Stela Barbieri (ver BOX sobre a artista). O fato de sermos próximas garantiria aos alunos conhecê-la e compartilhar com ela o processo de estudo que fizessem a respeito de sua produção.

Meu primeiro passo foi mergulhar em sua obra, no que ela havia criado até então, buscando entender sua poética, para transpô-la como objeto de estudo às crianças dessa faixa etária.


1 Coordenadora pedagógica da Educação Infantil na Escola Verde que te Quero Verde, em São Vicente (SP), e assessora na área de Artes Visuais.

No primeiro momento, pareceram distantes da compreensão de alunos tão pequenos questões complexas, próprias da Arte Contemporânea, como quando o artista se propõe a tratar da femeridade, da resistência dos materiais, da precariedade e organicidade da obra, da relação da obra com o espaço e o espectador. Tudo aparentemente subjetivo ou mesmo conceitual demais. Todas essas questões bastante distantes de temas normalmente tratados com crianças dessa faixa etária nos currículos escolares, caso dos gêneros artísticos e dos elementos da composição visual próprios das modalidades mais tradicionais, como a pintura, o desenho, a colagem e a escultura – temas aparentemente mais simples de abordar com esses alunos, por sua objetividade visual.

Mas à medida que eu refletia e me punha no lugar de quem aprenderia sobre tudo isso, fui me dando conta de que esses aspectos possíveis de habitar a arte de hoje dialogariam plenamente com as capacidades de compreensão e criação dos alunos. E como não ser interessante para crianças ver, pensar e criar a partir de trabalhos que incorporam a transparência, a transformação, a liquidez, a fluidez e que em sua produção e pós-produção contêm o elemento imprevisível?

O que pode acontecer com este trabalho? Ele vai se transformar? Ele já terminou de ser feito?

O elemento imprevisível sempre desafia as crianças, tanto no brincar, como no fazer artístico. Para onde vai esta brincadeira, onde ela vai dar? E meu desenho, o que vai aparecer no papel? Essa é a essência que o estudo sobre Stela Barbieri vem nos permitindo trabalhar com nossos alunos desde 2004. Esse elemento acompanha não apenas as propostas, mas também o processo de criação que a artista vem trilhando nesses 12 anos de arte.

É preciso não se iludir em relação a deixar ou não os alunos produzirem com foco para a invenção. Do que falo? Do espaço para o elemento imprevisível, cerne do estudo sobre a arte dessa artista.

Stela Barbieri

É artista plástica e consultora nas áreas de Educação e Arte. É conselheira da Fundação Calouste Gulbenkian desde 2012. Foi curadora educacional da Bienal de Artes de São Paulo (2009-2014) e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake (2002-2013). É assessora de artes plásticas na Escola Vera Cruz há 25 anos e autora de livros infantis, entre eles O bicho Manjaléu, Como surgiram os vaga-lumes e O gênio do poço encantado. É também contadora de histórias. Dirige o Bináh Espaço de Artes, um ateliê vivo, com aulas, palestras e formações.

“Faço obras para todas as pessoas e também obviamente para as crianças, talvez este seja o público mais exigente, pois elas se põem em jogo com a obra sem fazer economia de percepção e levando em consideração todos os elementos que fazem a obra acontecer, inclusive mostrando aspectos do meu trabalho que eu mesma não tinha notado. Realizar este trabalho com Valéria, as professoras e as crianças é sempre um desafio prazeroso, pois por mais que eu me prepare para recebê-las, elas sempre fazem perguntas que me movimentam a pensar meus procedimentos e materialidade de outros modos”

www.stelabarbieri.com.br/edu/assessoria.htm
Educativo 30a bienal: Stela Barbieri fala sobre os educadores – 2012

Há momentos em que oferecemos atividades com menos foco na possibilidade de invenção do aluno. É o que acontece na proposta de um desenho de observação de uma paisagem determinada, usando planos, profundidade e sobreposição,
em que o professor encaminha maior orientação dos procedimentos a ser desenvolvidos para chegar a um resultado. Não que essas atividades não sejam válidas. Pelo contrário, são exercícios que alimentam a capacidade do aluno de desenvolver
com mais conhecimento e foco na produção mais inventiva, quando assim a proposta o desafiar. Na própria sequência sobre Stela, encaminhamos os dois tipos de atividade: com menor e com maior autonomia.

Proposta com foco mais delimitado para a invenção

Na atividade de pintar com Geleca³ – um dos materiais usados pela artista no começo de sua carreira –, a professora Cristiane propôs que, um a um, os alunos colocassem essa massa, da cor que escolhessem, no topo de um painel branco de madeira, esticando-a de cima a baixo. A Geleca foi descendo lentamente e as cores se misturando. Cristiane, então, propôs que eles acompanhassem as transformações do material no decorrer dos dias e fotografassem o processo.

É uma atividade relacionada à transparência, à resistência do material e à arte inacabada, que possui determinados procedimentos a ser investigados.

Também com um foco mais delimitado para a invenção foi a atividade de monotipia que Cristiane ensinou para o 1º ano, seguindo o procedimento criado pela artista. Os alunos experimentaram essa proposta artística, que lhes causou certo estranhamento e lhes propiciou uma conexão com a pesquisa de Stela.

Mesmo que em ambos os casos o foco de invenção esteja mais delimitado, por conta dos procedimentos de produção a ser seguidos, a invenção e a experimentação estão presentes, possibilitando grande envolvimento dos alunos com as duas propostas.

Então, tanto na pintura com Geleca como na monotipia, a professora tem uma intencionalidade de propor um foco mais delimitado para a invenção. Podemos pensar que, em ambas as atividades, quem dá a ideia dos procedimentos de produção é o adulto. No primeiro exemplo, é a professora e, no segundo, é a própria artista.


2 Brinquedo em forma de massa gelatinosa, com o qual é possível produzir bolhas, esticar, grudar e fazer diversas brincadeiras.

Proposta com maior foco para invenção

Nesse estudo sobre a artista Stela, há atividades que garantem maior espaço para que os alunos exercitem a invenção. E, neste caso, a professora não sabe exatamente quais procedimentos serão seguidos e os levarão a produzir uma imagem inesperada. Este é o elemento imprevisível de que falo.

A professora Cristiane Caldeira relata abaixo uma atividade que possibilitou a produção de um trabalho na modalidade instalação com maior foco para invenção:

“Fui visitar, em 2015, com meus alunos do 1º ano, a exposição Lugares para criar espaços, de Stela, no Sesc Belenzinho, e aproveitei para lhes mostrar o catálogo da exibição. Ao expor as fotos, fui fazendo perguntas ao grupo e conversando com eles sobre suas hipóteses:

– Os materiais que ela usou foram feitos por ela?
– Foi, ela que costurou o pano e pregou todos os cabos.
– E esse tablado, quem fez?
– Foi ela.
– Essa é uma das obras da Stela. Ela planejou tudo, mas precisou da ajuda de outros profissionais para fazê-la. Precisou de um marceneiro, uma costureira, um engenheiro. Essa obra é uma instalação. Alguém já viu uma instalação?
– Eu já. É um trabalho que a gente entra e mexe.
– Então, eu trouxe alguns materiais para vocês também criarem uma instalação.

Nesse momento, os alunos exploraram os materiais (sisal, lã, linha, barbante, fio de náilon, argolas de prata, triângulos e quadrados de plástico vazados, bolinhas de madeira com furinho no meio e miçangas) à vontade, sentindo cheiros, texturas, espessuras, tamanhos, olhando por dentro dos espaços vazados, colocando nos dedos e relatando as cores. Alguns materiais já eram conhecidos, mas outros não.

Expliquei que agora era a vez deles de pensar no trabalho a ser feito. Separei as crianças em trios e duplas e expliquei que, após a finalização, colocaríamos na exposição do final do semestre. Foi muito gostoso vê-las conversando sobre como poderiam utilizar o que foi oferecido e planejar como montariam a instalação. Conversamos sobre o espaço a ser colocado, e elas falaram em pendurar todas as tiras com os materiais num bambolê no teto – assim, todo mundo poderia passar e mexer. Diversificaram as escolhas dos materiais, trocaram informações de como colocar as peças sem deixar cair, tiveram o cuidado de encaixar uma de cada vez no sisal ou linha para depois me entregarem e eu ajudei a dar os nós no grande bambolê e a pendurar no lugar planejado.”

Essa foi uma proposta em que a professora não previa qual seria a solução e os procedimentos a ser usados pelos alunos ao criarem a instalação.

Atividades assim apostam na maior capacidade de invenção dos alunos, que nos surpreendem positivamente e tomam para si o desafio sempre com muita significação. Nós, educadores de Arte, temos de nos permitir trabalhar com o elemento imprevisível.

O primeiro encontro

Ainda me lembro da primeira vez em que levamos as crianças para conhecer Stela, para que pudessem conversar com ela. As crianças contaram sobre o que haviam aprendido sobre sua arte, sobre o que tinham descoberto ao produzirem trabalhos que dialogavam com os dela. E então ela contou mais sobre o que eles não haviam tido tempo de conhecer a respeito de seu processo de criação e respondeu a perguntas previamente planejadas e espontâneas também.

Na época, seu ateliê ficava em sua casa, num anexo cheio de maquetes e alguns trabalhos em vidro com líquidos.

“Cuidado, crianças! Esses trabalhos são muito delicados. Por favor, não encostem em nada!” Saíamos assim, alertando-as, pois todas estavam eufóricas e curiosas para ver de perto alguns dos trabalhos que haviam visto apenas em fotos.

Em seu jardim, Stela improvisou uma mesa e foi revezando as crianças para que realizassem uma produção de monotipia. Nesse momento, seu lado educadora falou mais alto. Claro, as crianças não podiam visitá-la sem que ela propusesse uma experiência de produção artística!

Desde aquela primeira visita, selamos o compromisso de incluir na sequência didática a entrevista ao vivo com a artista – momento sempre tão esperado pelas crianças. Conhecer o artista que estão estudando, poder lhe fazer perguntas sobre sua arte, sua vida, ouvi-lo falar, abraçá-lo, aproximar-se efetivamente dele é mais um elemento de significação para o aprendizado da Arte.

Reflexões de uma formadora em Arte

Nesses anos todos, cada visita foi única, não apenas porque os alunos mudam de ano a ano, mas também porque a arte de Stela muda de ano a ano. Temos a sorte de acompanhar uma artista extremamente fértil, que possibilita que a cada ano possamos variar algumas atividades, modificando a sequência, tornando-a viva, não apenas pela demanda dos novos alunos que a professora recebe, mas inclusive e especialmente pela arte de Stela, que está em pleno processo e, por consequência, em constante transformação. Esse é um dos privilégios de a escola manter, em seu currículo de Arte, artistas contemporâneos em plena atividade.

Mas não basta a arte de Stela mudar; nada irá acontecer se a professora não acompanhar essas mudanças. É preciso investigar, buscar informações, conhecer o que ela está focando em seu trabalho recente, é preciso estudar, pensar, criar, rever a sequência a cada ano. Que atividades se mantêm e dão conta de ensinar aos alunos a arte passada da artista, para tornar compreensível a arte presente?

Para iniciar lá atrás esse estudo, criei a primeira sequência, mas a cada ano ela vem sendo reformulada pela professora, que se apropria de suas questões e sabe que o planejamento da sequência está completamente aberto a transformações, dependendo das poéticas que a artista se coloca à medida que o tempo passa.

O desafio de aprender Arte Contemporânea obviamente acompanha o desafio de ensiná-la. Impossível engessar uma sequência em permanente transformação. Mesmo porque não se deve engessar sequência nenhuma. Toda a vez que vamos repetir uma sequência, esta deve ser repensada, reformulada. Porém, o que estou afirmando é que, ao se trabalhar com o artista em constante criação, inevitavelmente a sequência será modificada; do contrário, ignora-se o aspecto fundamental desse tipo de estudo da Arte, que é a transformação.

Além de artista, Stela também é educadora e escritora de livros infantis. Lê-los para as crianças aproxima a artista ainda mais delas. E, de presente, sempre em cada encontro ela conta às crianças uma história. Ficam todas encantadas com sua narrativa.

A cada visita, uma novidade

Nas primeiras visitas, Stela mostrava slides de seus trabalhos; depois, aos poucos, com as mudanças tecnológicas – sim, porque em 12 anos os recursos audiovisuais tiveram grandes avanços –, passou a mostrar as fotos em CD, pendrive e, finalmente, diretamente de seu site. Não  se pode negar que essas transformações mudaram também o teor das visitas. Mais recursos audiovisuais, mais estratégias para apresentar e apreciar seu processo de criação. Por sua vez, as crianças, a cada ano, também foram acompanhando esses recursos: do papel fotográfico para o CD, para o pen drive e, hoje, para o site da classe, onde Stela pode acompanhar o percurso de aprendizagem dos alunos sobre sua arte.
Privilégios da tecnologia e da contemporaneidade! É preciso arriscar-se a usá-los!

Em alguns dos anos, tivemos a sorte de coincidir a visita com a exposição da artista. Nessas situações, tudo pôde se encaixar perfeitamente: o que os alunos já sabiam sobre ela, as questões que traziam e que queriam descobrir, as experiências de suas próprias produções relacionadas às dela, e sua arte sendo apreciada no original, em pleno contexto significativo de sua função.

A professora Cristiane Garcia, que há sete anos estuda a artista Stela Barbieri com seus alunos de 1o ano, relata que “trabalhar uma sequência didática que oportuniza às crianças o contato com uma artista que está viva faz com que o trabalho se torne muito mais interessante, atrativo e muito mais rico, além de agregar, a cada ano, informações fundamentais para que a sequência possa ser modificada. Falar sobre a artista é como falar de poesia, de amor, dedicação, transformação e empenho […] É falar de alguém que enxerga além […], que vê arte onde muitos não veem. Seu trabalho é excepcional e fazer com que nossos alunos possam experimentar um pouco do que Stela propõe é um grande aprendizado, não apenas para eles, mas também para nós, professores”.

Das sequências de atividades com as crianças

Objetivos de aprendizagem:
♦ Conhecer uma artista em plena produção, entrando em contato com ela.
♦ Aproximar-se de alguns procedimentos de produção utilizados pela artista: materiais usados, modo de fazer e ocupação do espaço.
♦ Apreciar as produções da artista e as próprias produções.
♦ Relacionar as próprias produções com as da artista.
♦ Saber algumas informações sobre a vida e obra da artista: nome, onde vive, como se tornou artista, exposições feitas, o que já fez de arte, o que está fazendo agora.
♦ Identificar nas obras da artista e na própria produção a utilização de materiais que não foram feitos para fazer arte.
♦ Reconhecer o elemento transparência nos trabalhos da artista e os materiais que ela usa para produzi-lo.
♦ Perceber a efemeridade nos trabalhos da artista.
♦ Produzir utilizando diferentes maneiras de ocupar o espaço: no chão, na parede, pendurado, criando um novo ambiente (instalação).

Algumas atividades da sequência:
Duração: um semestre
Obs.: As atividades de produção foram permeadas com apreciações da produção da artista e das crianças, considerando os objetivos listados. As atividades não estão colocadas na ordem de sequência didática.
♦ Investigação sobre a artista Stela.
♦ Montagem coletiva do trabalho planejado com garrafas PET.
♦ Produção de monotipias de calcografia (gravura em metal) com materiais recolhidos no parque da escola.
♦ Produção de monotipias com procedimento inventado pela artista Stela.
♦ Planejamento e instalação coletiva sobre transparência com garrafa PET.
♦ Tingimento de tecidos com anilina e criação de instalação com eles.
♦ Produção de “cortinas” de papel contact.
♦ Levantamento de perguntas para fazer à artista Stela.
♦ Entrevista com a artista Stela.
♦ Produção de um mural coletivo com o material Geleca.
♦ Invenção de uma instalação coletiva a partir do que foi apreciado e aprendido com os trabalhos da artista.
♦ Tingimento de pano com café e montagem de instalação com borra de café e luva.

E para as crianças, o que fica?

Um estudo como esse modifica o olhar das crianças sobre as possibilidades de utilização de diferentes materiais e procedimentos para fazer trabalhos de Arte, ou seja, constrói conceito sobre o que vem a ser Arte Contemporânea.

Isso é observado pelas professoras, principalmente nas aulas de oficina de percurso, em que a proposta é dar às crianças a possibilidade de escolher o que e como produzir. Nesse tipo de aula, é possível notar como as experiências que o fazer artístico da sequência sobre Stela oportunizam maior amplitude para investigar mais combinações e possibilidades no uso de materiais e procedimentos de produção não convencionais, como faz a artista.

Hoje, as crianças já começam a pensar que qualquer material pode virar arte. Como observou uma delas, ao desdobrar e combinar dois clipes, criando uma nova imagem sobre a mesa: “Olha, Cristiane, dá pra gente mexer nos clipes e fazer uma arte!”. Com certeza, esse olhar mais sensível foi provocado pelas experiências artísticas que ela estava vivenciando ao estudar o processo criador de Stela.

A professora também pôde observar que a proposta artística experimentada na exposição Só no nós – que, para o olhar infantil, ignora o limite entre a arte e o brincar – influenciou algumas brincadeiras na hora do parque, como recolher folhas, colocá-las em recipientes transparentes com água e mexer para ver as folhas se misturarem.

Esse estudo sempre chega à casa das crianças, pois elas fazem questão de mostrar o site da artista para os pais e contar o que já sabem sobre ela.

Posted in Revista Avisa lá #68.