Alimentação aprende-se na escola?

A partir da constatação, em uma atividade sobre pesos e medidas, do alto índice de obesidade infantil em uma turma de 2º ano, uma série de ações e aprendizagens foi desencadeada para provocar mudança de hábitos e comportamentos nas crianças e suas famílias


Elaine Cristina Benteo¹

Educar e ensinar a partir da realidade dos próprios alunos. Esse era o desafio proposto pelo projeto político-pedagógico da escola ao longo de 2015. Uma verdadeira missão.

Durante a realização de uma das atividades de Matemática, para desenvolver o conteúdo de grandezas e medidas, ou o que chamam de “medida de massa”, verificamos o peso de cada um dos alunos. A ideia era que conhecessem a medida padrão (kg), aproveitando para ensinar como se calcula o peso de massa. Durante a realização de uma das atividades de Matemática, para desenvolver o conteúdo de grandezas e medidas, ou o que chamam de “medida de massa”, verificamos o peso de cada um dos alunos. A ideia era que conhecessem a medida padrão (kg), aproveitando para ensinar como se calcula o peso de massa.


1 Professora do 2o ano do Ensino Fundamental, com 23 anos de experiência no Ciclo de Alfabetização, categoria em que foi ganhadora, com este projeto, do Prêmio Professores do Brasil (MEC, 2015).

Assim, foi constatado que um número expressivo dessas crianças estava acima do peso considerado ideal para sua idade, o que desencadeou a necessidade de desenvolver o projeto que intitulamos “A agricultura familiar no combate à obesidade infantil”.

Maus hábitos alimentares e uma infância sedentária são fatores que contribuem para o aumento da obesidade infantil. Essa problemática, por sua vez, quase sempre está associada à falta de atividades físicas no dia a dia, visto que o divertimento da criança fica ainda limitado aos jogos virtuais e/ou eletrônicos. Isso pode ser comprovado quando seu peso está acima do normal para sua idade e altura.

Observando então essa realidade em meu grupo de alunos do 2º ano do Ensino Fundamental, iniciei o projeto contemplando uma série de ações com o objetivo de mudar esse quadro e conscientizar as crianças e seus familiares sobre os males causados por uma alimentação inadequada e pela ausência de atividades físicas, que são essenciais para uma melhor qualidade de vida.

Fazendo parcerias

A primeira iniciativa foi fazer parceria com a Secretaria da Saúde, que disponibilizou uma equipe de enfermeiras para atuar na escola e fazer a medição do peso e o cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) dos alunos. Esse trabalho sinalizou que muitos estavam acima do peso ou na faixa de obesidade infantil, fator muito preocupante para sua idade.

Gráfico da pesagem dos alunos

Comprovado o problema, convidei os pais a participar de uma reunião para lhes apresentar os dados coletados e propor a revisão de hábitos alimentares e um convite para iniciar essa mudança. Ideia aceita por todos os presentes, pois ficaram assustados com as informações apresentadas. Até o momento não havia preocupação sobre esse assunto, mas ficaram interessados em saber as consequências da obesidade infantil.

Com as crianças, iniciei o trabalho por meio de questionamentos a respeito do tema, como: O que significa obesidade? Por que isso acontece? O que cada um está acostumado a comer?

As crianças tinham suas ideias e opiniões…
– É quando a gente está muito gordo, e fica gordo porque come muito.
– Lá na minha casa nós come arroz, feijão e carne. Eu não gosto de salada e nem de fruta.
Eu gosto de doce.

Foram questões que levaram a muitos aprendizados, como classes dos alimentos, suas origens e funções. Durante a realização de algumas atividades, pude perceber que havia crianças, por exemplo, que acreditavam que o leite vinha diretamente da caixinha, e o ovo, do supermercado. Portanto, iniciei alguns questionamentos com as crianças, apresentei a elas uma sequência de slides intitulada “Origem dos alimentos”, idealizada por uma professora, e perguntei se sabiam me informar de onde vinha o leite, ou seja, quem o produzia. Deparei-me com a seguinte resposta:

– O leite vem do mercado, professora!
– Mas quem produz esse leite?
– O mercado. É só ir lá e pegar a caixinha!
Imediatamente outra criança respondeu:
– Não é nada. É lá no sítio que tira o leite da vaca e depois leva no mercado!

Ao final da apresentação, uma das crianças que não conheciam a origem desse alimento disse:

– Nossa, professora, que legal! O leite que a gente bebe vem lá da vaca!
– Eu não falei pra você que era da vaca e não lá do mercado?
– Eu já sabia, porque vi meu vô tirar o leite da vaca e depois eu bebi.

Depois dessa descoberta, construímos com as crianças um cartaz, classificando os alimentos de acordo com sua origem: animal, vegetal e mineral. Foi uma atividade muito interessante, pois levou-as a refletir sobre cada um dos alimentos que deveriam classificar.

Em seguida, convidei especialistas das áreas da Saúde e Agricultura – engenheiro agrônomo, técnico agrícola, pediatra e nutricionista –, que fizeram palestras para pais e filhos. Inicialmente, pensamos em convidar a pediatra para a palestra “Obesidade infantil” e a nutricionista para falar de “Alimentação saudável”; depois, foi surgindo a necessidade de convidar os profissionais de Agronomia, um para acompanhar as crianças e familiares na pesquisa de campo e outro para apresentar a palestra e o curso prático de “Olericultura”².

Isso tudo contribuiu para maiores informações e esclarecimentos de dúvida, tais como: orientações técnicas e curso prático de preparo e cultivo de hortaliças e como aproveitar os espaços disponíveis para esse cultivo. A nutricionista apresentou orientações a respeito de como introduzir uma alimentação correta para as crianças, incluindo os alimentos a ser evitados, e propôs acompanhamento nutricional aos pais com crianças acima do peso. A pediatra falou sobre a importância de uma alimentação saudável, especialmente na infância, e sobre as doenças e riscos acarretados pela obesidade. Sugeriu também acompanhamento pediátrico para as crianças diagnosticadas acima do peso.

Hortas com famílias

A partir daí, eles perceberam a necessidade de mudar a alimentação e, para isso, a solução seria retomar o hábito de cultivar legumes e hortaliças em casa. Para maior estímulo, pais e alunos foram desafiados por mim a aplicar o que aprenderam com o curso prático e a palestra de orientação sobre como preparar e cultivar, em seus quintais, canteiros de hortaliças livres de agrotóxico e, assim, incentivar toda a família a melhorar seus hábitos alimentares. Ampliando a parceria com a comunidade, profissionais da Agricultura também foram chamados para auxiliar as famílias no plantio de hortaliças.

Para demonstrar que essa atividade pode ser realizada facilmente e ainda tornar-se uma fonte de renda familiar, convidamos os pais para, juntamente com os filhos, realizar algumas visitas técnicas, na forma de uma pesquisa de campo, a algumas propriedades rurais que desenvolvessem a agricultura familiar como sua única fonte de renda. As visitas aconteceram dentro e fora do período de aula. Fomos também ao Viveiro Municipal para que as crianças observassem e conhecessem a origem de alguns dos alimentos que compõem a merenda escolar.


2 Cultivo de legumes e hortaliças desde a preparação da terra.

Comer faz bem; brincar e mexer-se também!

Paralelamente a essa mobilização, os alunos foram estimulados a ampliar o tempo e a diversidade das atividades físicas, que contribuíram para o melhor desenvolvimento da coordenação motora e para o bem-estar físico e mental. O trabalho com o corpo, além de favorecer o desenvolvimento motor e intelectual, também influencia na formação da personalidade, já que, dessa forma, as crianças podem expressar seus desejos, desenvolver suas necessidades e ir em busca da superação de suas dificuldades.

A melhor maneira de iniciar o processo de desenvolvimento motor é por meio do ato de brincar, visto que, quando brincam, as crianças expressam sentimentos e necessidades e constroem seu mundo.

“A coordenação motora é a capacidade que temos de coordenar os movimentos decorrentes da interação entre o cérebro e as unidades motoras dos músculos e articulações. É a capacidade de usar de forma eficiente e precisa os pequenos músculos, produzindo assim movimentos delicados e específicos.

A coordenação motora grossa ou ampla é aquela que permite à criança dominar o corpo no espaço, ou seja, pular, caminhar, correr, dançar. As atividades motoras devem estar presentes no cotidiano das crianças.

As brincadeiras e jogos infantis exercem um papel muito além da simples diversão, possibilitam aprendizagem de diversas habilidades e são meios que contribuem e enriquecem o desenvolvimento intelectual da criança.”³

Crianças mudam seus hábitos alimentares

Eu aprendi que nunca podemos comer doce na semana inteira, porque dá diabete, e também aprendi que nós, crianças, os adultos e idosos sempre temos que manter a nossa alimentação saudável e também aprendi a plantar (até fiz uma horta lá em casa) e também aprendi que temos que cuidar da natureza, porque é dela que vêm para o mercado as frutas. (Gabriel Vinícius Pinheiro Marcelino, 2º ano A).

Eu aprendi a comer frutas e legumes e muito mais. Eu também fiz atividades lá em casa, uma horta e aprendi a cuidar da nossa natureza e da horta. (Uemilly Aparecida de Souza, 2º ano A).

Eu aprendi que comer verdura é melhor que o doce. Eu como doce sábado, antes comia todo dia. Agora não mais duas pratadas de arroz, feijão e dois bifes. Quando era ovo, que era quase todo dia, comia dois ou três. Agora não: uma colher de arroz e de feijão, um ovo, um bife e saladas. Agora sou mais saudável. (Letícia Gabrielle de Oliveira, 2º ano A).


3FONSECA, Vítor da. Psicomotricidade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Criança saudável, criança feliz!

De acordo com dados apresentados pelo IBGE, atualmente uma em cada três crianças no Brasil pesa mais do que deveria. Os quilos extras podem causar inúmeras complicações para a saúde de quem se enquadra nesse diagnóstico, pois, mesmo em tenra idade, problemas como diabetes, hipertensão, colesterol alto, depressão, baixa autoestima, entre outros, passam a ser comuns. Estudos e comparações feitas entre crianças obesas e não obesas demonstram que estas não apresentam, ou são menos propensas, a desenvolver problemas de caráter psiquiátrico, enquanto aquelas, como consequência de seu estilo de vida, ficam mais suscetíveis a eles, por exemplo. Além do mais, a obesidade infantil tende a se estender também para a idade adulta, pois crianças que chegam à adolescência e continuam obesas podem se manter assim pelo resto da vida.

Hoje em dia, ao contrário de alguns anos atrás, a sociedade está vivenciando aumento da criminalidade descontrolado, responsável por gerar atos de violência cada dia mais assustadores, que vêm despertando uma grande preocupação nos pais. Sendo assim, alguns desses pais buscam solucionar esse problema por meio do cuidado excessivo. Muitas crianças ficam dentro de casa com atividades que não as estimulam fisicamente, tais como correr, jogar bola, brincar de pique etc., e passam horas paradas em frente a uma TV ou outro tipo de equipamento eletrônico.

Para preencherem o tempo livre de maneira ainda mais “satisfatória”, quase sempre elas possuem um pacote de biscoito, de doces ou um sanduíche acompanhado de refrigerantes – alimentos pouco nutritivos, porém ricos em calorias. Esse é um fator muito preocupante que também leva ao desenvolvimento da obesidade infantil.

Fonte: www.ebc.com.br/infantil/para-pais/2014/03/obesidade-entre-as-criancas-atinge-indices-de-epidemia-no-brasil

Uma dessas ações foi a construção e pintura de jogos como a amarelinha no pátio da escola. Para essa atividade, tivemos a contribuição dos professores das disciplinas de Arte e Educação Física, Maria Aparecida Florentino e Tiago de Sousa, que orientaram e coordenaram os alunos a desenhar algumas amarelinhas com formas diferenciadas, com o objetivo de levá-los a conhecer as regras do jogo e, depois, a colocá-las em prática por meio da brincadeira. Com isso, estimulamos e incentivamos as demais crianças que, dessa forma, passaram a se exercitar mais durante os intervalos, resgatando a prática das brincadeiras infantis, como amarelinha, balança caixão, pular corda, pega-pega, três mocinhas da Europa, passa anel, despertando o prazer aliado ao bem-estar.

Bons desdobramentos

Durante as atividades propostas pelo projeto, alunos e pais registraram em fotos e vídeos os conhecimentos adquiridos, colocando em prática e demonstrando o passo a passo de como preparar e cultivar canteiros de hortaliças. Esses registros foram apresentados aos demais alunos em uma reunião, para que pudessem servir de conhecimento, valorização e incentivo para que outros pais adotassem a prática também.

Dessa forma, aprenderam a levar uma vida mais saudável, retomando o consumo de alimentos produzidos em casa e livres de agrotóxico. Pude perceber que, durante essas atividades, houve uma ótima aproximação das famílias com a escola e também a demonstração de um grande interesse em acompanhar todas as atividades, não só as propostas e realizadas pela escola, como também as executadas em casa na companhia dos filhos.

Algumas mudanças de hábito alimentar também foram percebidas, como a introdução de frutas no lanche de alguns alunos. E quando questionados pela professora sobre o porquê de terem substituído o biscoito por frutas, a resposta foi: Para garantir nossa saúde, esse é nosso lanche saudável.

Para mim, essa foi uma experiência única e gratificante que me oportunizou grandes aprendizagens. A mais importante foi que, com pequenas ações, podemos proporcionar a nossas crianças uma aprendizagem mais prazerosa e contagiante, especialmente por contar com o  envolvimento da comunidade e da família, representadas pelos pais que participaram ativamente com os filhos de todas as atividades propostas.

Filme-documentário

Muito além do peso, filme-documentário dirigido por Estela Renner, produzido pela Maria Farinha Filmes e com o patrocínio do Instituto Alana, mostra a obesidade infantil como a maior epidemia infantil da História. Lançado em 2012, no mês de novembro, num cenário de amplo debate sobre a obesidade infantil, alerta para suas consequências, para a qualidade da alimentação de nossas crianças e para os efeitos da publicidade do mercado de alimentos dirigida a elas.

Está disponível no Youtube: www.youtube.com/watch?v=enhke4ayC7U
Posted in Revista Avisa lá #68.