Sei não, só sei que foi assim

“Conte um causo pra gente e leve outro de brinde”, anunciava o garoto de 10 anos, em meio ao troca-troca de histórias que encantavam as crianças pelo humor, pelo suspense ou assombro. Esse repente de criatividade aconteceu durante uma deliciosa experiência que usou os “causos” e outras narrativas da tradição popular para trabalhar as linguagens oral e escrita

Ao iniciar o trabalho com crianças de 9 a 10 anos, percebi a dificuldade que tinham com relação à língua escrita: alguns ainda não escreviam convencionalmente e outros apresentavam muitos problemas de ortografia e de entendimento de texto. Mas o mais grave de todos os problemas era o fato de que não liam e não gostavam de ler. Um bom trabalho de linguagem seria importante para aquela turma. Pensei num texto que pudesse ajudar as crianças a reconhecer as diferenças entre a linguagem oral e a linguagem escrita, dando a oportunidade de apreciar as narrativas contadas e lidas. Um repertório de causos pareceu-me bastante apropriado para esses propósitos. Trata-se de narrativas populares, de temática inusitada, com um toque de fantástico, que pertencem à tradição oral, narradas em primeira pessoa e que contam algo que o narrador quer fazer passar por verdade. Lendo e pesquisando causos, ouvindo outros trazidos pelos funcionários e seus familiares, lendo e comparando com outros contos de tradição oral, de temática semelhante aos causos, as crianças teriam  condições de gravar uma fita para guardar o repertório aprendido no projeto. A fita seria doada a uma outra instituição educativa, para que outras crianças também tivessem acesso aos causos. O destino desse produto – o uso real dessa fita – foi o motivador do trabalho para essa turma: todos se envolveram com o projeto, desde o início.
Batizei o projeto de “Sei não, só sei que foi assim…”, graças à inspiração
do personagem Chicó, amigo de João Grilo na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Chicó contava uma história da qual tinha ouvido falar, ou que havia acontecido com ele, muito exagerada mas sempre verdadeira, segundo sua fantasia. Quando interrogado sobre a veracidade dos fatos, respondia:
– Sei não, só sei que foi assim…!

Foto de Silvana Augusto sobre obra de José Domingos dos Santos

Assombração de cachorro
Padeiro: (…) assombração de cachorro eu nunca ouvi falar.
Chicó: Mas existe. Eu mesmo já encontrei uma.
Padeiro: Quando? Onde?
Chicó: Na passagem do riacho de Cosme Pinto.
Padeiro: Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de assombração de cachorro.
Chicó: Se o lugar é assombrado, não sei. O que eu sei é que eu ia atravessando o sangrador do açude e me caiu do bolso n’água uma prata de dez tostões. Eu ia com meu cachorro e já estava dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem está cochichando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro, mas quando fui verificar só encontrei dois cruzados.
Padeiro: Oi! E essas almas de lá têm dinheiro trocado?
Chicó: Não sei, só sei que foi assim.
(Auto da Compadecida, Ariano Suassuna)
Ilustração: Foto de Silvana Augusto sobre obra de José Domingos dos Santos

A atividade inicial: “assuntando” as crianças
Com essa idéia na cabeça, comecei a investigar meu grupo. Sempre fico em dúvida sobre o que as crianças já sabem. Nesse caso, não foi  diferente. Eu queria conhecê-las. Para que me contassem tudo o que sabiam sobre os causos, seria melhor que eu contasse um causo e ouvisse o que as crianças tinham a comentar. Então contei que, quando eu era pequena, minha avó costumava falar do “homem do saco”, quando não queria que fizéssemos alguma travessura ou simplesmente quando queria que atendêssemos aos seus pedidos. As crianças disseram:
– Ah! Eu também conheço!
– Minha mãe também fala!
– Minha avó não inventou essa história – disse a eles – ela deve ter escutado de alguém. Eu encontrei uma história parecida no livro de um autor que se chama Câmara Cascudo. Essa história se chama A Menina dos Brincos de Ouro, e é assim… Contei a história. Eles ficaram vidrados! Depois quis saber se as crianças conheciam histórias desse tipo. Um menino conhecia Papa-figo, história de um homem que pega o fígado das pessoas e faz remédio. Outra criança disse que uma vez seu irmão lhe contou que estava andando no mato com um amigo e de repente apareceu um homem com olhos brilhantes, de luz verde.
– Isso aconteceu de verdade? – perguntei a ele.
– Aconteceu.
– Esse tipo de história é contado para assustar as pessoas, não é de verdade. Seu irmão queria te assustar – retrucou outra criança, colocando muito bem uma característica importante desse tipo de narrativa.
Como já conheciam algo sobre esse tipo de narrativa, eu precisaria pensar num projeto que ampliasse o repertório de causos do grupo, que apresentasse outros textos da tradição oral para que pudessem comparar, promovendo uma reflexão sobre as especificidades da linguagem oral e da escrita.

A criação de desafios: atribuir responsabilidade e desenvolver autonomia

As rodas de causos aconteciam todos os dias. Eu contava os meus, Selma contava os que seu avô lhe contara. Suely, a professora da turma, lia e pesquisava causos novos. As crianças ficavam alvoroçadas, e mesmo aquelas que não tinham nenhum causo para contar acabavam inventando um. Os irmãos Diego e Paulo mostraram-se bons contadores, capazes também de inventar histórias. Percebendo o grande interesse do grupo, investi para que todos trabalhassem com mais autonomia. A escola já os faz esperar demais, acostumando-os a seguir instruções. Acreditamos que a professora não precisa ficar conduzindo o tempo todo e que muitas coisas podem ser feitas sem que ela participe diretamente. O papel do educador é o de orientar as crianças, mas também deixá-las realizar tarefas sozinhas, sem tanto controle. As crianças precisam movimentar-se, sair da sala, realizar tarefas, entrar em contato com outras crianças. Delegar tarefas para o grupo é um grande desafio que ajuda a desenvolver responsabilidade, a amadurecer e a perceber que é bom crescer, conhecer e sentir-se valorizado. Felizmente o produto final escolhido pelo nosso projeto dá essa possibilidade às crianças. Por isso foi fácil compartilhar com elas o planejamento do trabalho. Elas se reuniram em seus grupos e fizeram as anotações necessárias para os planos de atuação. Foi muito produtivo!
Suely disse que, daquele dia em diante, as crianças se tornariam as repórteres do projeto, e todos fizeram sua parte.
Ed Carlos, auxiliado por Suely, escreveu cartas para as crianças da Escola Logos, que estudavam o mesmo assunto. Contou o que já sabiam e enviou dois causos, eleitos pelo grupo, que haviam sido mandados pelas famílias. Dias depois trouxeram a resposta das crianças da escola com seus causos fantásticos para ler na roda.
Jéssica, Edinalva, Marília e Taís foram as pesquisadoras responsáveis por trazer novos causos, gravados ou escritos. Elas visitaram as salas do CJ e da creche, falaram sobre o projeto para os colegas, professores e funcionários. Recolhiam tudo e levavam para a sala. Até marcaram um dia para que uma pessoa viesse contar pessoalmente. Márcio, Cláudia, Roger e Rubens compunham a equipe de digitação: organizaram os causos das famílias e dos funcionários, criando um acervo da turma. Lucas, Roberto, Paulo, Ed Carlos e Diego ficaram responsáveis pela sonoplastia. Com os professores de música do CJ, eles pesquisaram instrumentos musicais, sons e CDs que usaram na sonoplastia das histórias. Tiveram a idéia de marcar o texto com S1, S2, S3, S4, S5, para saberem o exato momento em que deveriam colocar esses sons. Carlinhos, Douglas e Alírio, que adoram desenhar, se encarregaram de construir um painel com notícias sobre o projeto, desenhos de algumas histórias e algumas fotos da turma, para informar o CJ e a creche sobre o que o módulo II estava fazendo,  convidando-os a participar. Escreveram no alto: Conte um causo pra gente e ganhe outro de brinde! Se alguém conhece um bom causo, procure o pessoal do módulo II.

Os causos no cinema
Levei o filme A Marvada Carne, de André Klotzel, em vídeo. Uma história muito simples e bastante divertida.1
Nem é preciso dizer o quanto gostaram e aproveitaram. Com tudo o que conheciam puderam identificar muitos causos ao assistir ao filme.
– Isso é um causo! Isso é um causo! – avisavam entusiasmados.

José Domingos dos Santos Foto: Silvana Augusto

José Domingos dos Santos
Foto: Silvana Augusto

O episódio favorito foi o de Nhô Quim, que compra uma galinha e espera pelo diabo, à meia-noite, para poder revendê-la por um valor mais alto. Só que, em vez do diabo, aparece uma moça (Regina Casé) que tenta comprar a galinha por um preço menor. De repente, começa a sair um rabo de diabo debaixo da blusa dela, seu rosto se transforma, sua voz se modifica,… AH! As crianças caíram na gargalhada! É claro que depois que o filme terminou precisei voltar a fita duas vezes nesse pedaço. Pedi que Sueli redigisse o causo com as crianças e afixasse-o na parede da sala para que a turma da manhã pudesse ler também. Sugeri ainda que os dois períodos trocassem os causos que as famílias contavam, o que seria um bom motivo para que fossem registrados.
Num outro dia, leram do livro de Cornélio Pires no qual aparecia um dos causos do filme. As crianças ficaram atentas à leitura e sabiam o que as palavras significavam, mesmo sendo de difícil compreensão.

1 Como introduzir o trabalho com filmes?
Os filmes também são importantes fontes de informações. Nesse projeto,
Selma e eu exploramos esse recurso. Conseguimos levantar algumas orientações didáticas para trabalhar com filmes:
• Assistir ao filme antes das crianças, com antecedência, para que se possa reconhecer suas partes, fazer comentários durante a exibição, antes ou depois;
• Informar as crianças sobre o que vão assistir, contextualizando o filme, alimentando uma leitura prévia;
• Observar a reação das crianças durante a exibição, para saber se estão acompanhando a história, se têm dúvidas que precisam ser respondidas na hora ou podem ser comentadas depois;
• Acompanhar aqueles que precisam de mais explicações ou que se distraem e tiram a atenção dos colegas, ficando mais próximo deles, ajudando–os a se concentrar, prestar atenção, acompanhar o enredo.

A leitura de textos considerados difíceis
Num dia, li para o grupo “A Moça e a Vela”, de Câmara Cascudo. Eu já tinha percebido que aquelas crianças se interessavam por terror, suspense, assombração, por isso escolhi esse texto, que tem um toque de assombração. Dei uma cópia a cada um e pedi que anotassem a bibliografia, ou seja, a fonte de onde foi retirado o texto que tinham em mãos2. Selma, a coordenadora que acompanhava o trabalho, sentou-se perto de Ana, uma criança que ainda não sabia ler, para apoiá-la. Pedi que grifassem as palavras que não entendiam. Depois da leitura discutimos as palavras que podiam ser compreendidas através do contexto da própria história. Relemos e, ao final, todos já estavam encantados com aquela leitura. – É verdade ou mentira que a história aconteceu? – perguntou Edinalva – Credo! Eu, hein! Nem todas as palavras podiam ser compreendidas pelo contexto. Termos como anelado, amuado, dentre outros, eram absolutamente estranhos para o grupo. Mas essa dificuldade não deveria impossibilitar o acesso aos textos para essas crianças. Pensando nisso, resolvi introduzi-las no uso do dicionário. No dia seguinte, levei Boi Leição, um texto engraçado, um pouco longo, que tem um certo suspense até revelar como a trama será resolvida. Listamos as palavras desconhecidas na lousa, e propus uma pesquisa no dicionário. Nem todas as crianças sabiam usá-lo, por isso uma delas teve que explicar:
– Primeiro a gente olha pra primeira letra, se elas forem iguais, então a gente vê a segunda…
Fiz algumas propostas para ajudá-los a conhecer mais aquele portador de texto. Pedi que lessem as palavras que se encontravam em negrito, no cabeçalho de cada página. Ninguém soube responder para que elas serviam. Pedi então que as procurassem nas colunas e observassem suas posições na página. Depois, propus que observassem outras palavras como aquelas, que aparecem nas extremidades das outras páginas. E puderam assim perceber a regularidade. Os meninos pareciam estar descobrindo a América! Afoitos, queriam contar pontos para o grupo que tinha descoberto primeiro. Com toda aquela empolgação, propus outro desafio. Eu destacava uma palavra na lousa e perguntava a que página ela pertencia. A sala veio abaixo! Tivemos que bolar um placar na lousa para marcar os pontos que faziam. Depois, dei a cada grupo um volume do  dicionário e pedi para que procurassem as palavras escritas na lousa. As crianças também conversaram sobre os verbos que apareciam conjugados no texto e no infinitivo no dicionário. Entendendo as palavras do texto, puderam compreender melhor seus significados. Selma, a coordenadora que nos acompanhava, distribuiu pastas para que todas as crianças pudessem guardar seus textos e ler sozinhas quando quisessem.

2 Nessa idade já é possível falar em bibliografia com as crianças?
É importante preparar as crianças para que sejam capazes de pesquisar. Pesquisar com o grupo a bibliografia usada no projeto, por exemplo, é um bom jeito de saber mais sobre o assunto, como fizemos com a turma do CJ Dom Bosco.
– Para que serve a bibliografia? – perguntei.
– Para sabermos de que livro a história foi tirada – respondeu uma criança.
– Se alguém quiser comprar ou emprestar o livro, saber como ele chama – disse o outro.
– A gente pode saber quem foi que escreveu – completou.
– Pra conseguir o livro daqui a algum tempo.
– Quem escreveu esse conto? Câmara Cascudo ou Lindolfo Gomes? – perguntei.
– Câmara Cascudo – responderam muitos.
– Ele escutou a história de Lindolfo – retrucou uma menina.
– Escutou não, leu do livro de Lindolfo Gomes porque, olhe aqui, está escrito volume II, página 13 – apontando para a bibliografia no rodapé – o conto veio de S. João del Rey – e todos concordaram.

Diferenças entre contar e ler histórias
Contar história é igual a ler história? Você já pensou nisso? Foi o que eu propus que as crianças pensassem. Algumas defenderam a opinião de que ler é mais fácil porque o texto está lá, não dá para esquecer os detalhes da história. Outras achavam que contar com as próprias palavras é melhor, pois ler é muito difícil. Para alimentar ainda mais a discussão, dividi a turma em quatro grupos: dois iriam ler para o grupo a história “A Moça e a Vela” e os outros dois deveriam contá–la. Dei um tempo para que os grupos se organizassem, estudassem, ensaiassem. Selma coordenou a leitura dando dicas sobre a entonação do narrador, trabalhando com o jeito dos personagens, discutindo como eram e como viviam. Passando pelos grupos, fui orientando-os para que pudessem guardar na memória os pontos principais do conto, na seqüência correta. Formei equipes que se ajudavam, pois há na turma muitas crianças que lêem “dando soquinhos”:3
– Mi–nha fi–lha, di–zi–a a mãe du–ma… – o que prejudica a compreensão do texto. Pedi então que, em duplas, lessem uns para os outros.
Passando pelas duplas pude discutir momentos de pausa, entonação e uso de pontuação durante a leitura. As crianças estavam ansiosas e nervosas para a gravação. Alguns até corados! Mas se saíram bem. Deram risada dos próprios erros, às vezes sorriam uns para os outros devido à exposição diante do grupo. Eles puderam dar dicas para os amigos melhorarem. É claro que um ou outro riu, provocou, deixando o colega nervoso, mas tudo dentro dos conformes. Resultado da nossa polêmica:
– É difícil contar, a gente tem que ficar prestando atenção no que vai falar pra não ficar faltando nada! – comentou um garoto.
– Às vezes as idéias somem da cabeça – disse o outro, concordando com o amigo.
– A gente fica falando toda hora aí , aí, aí… – disse uma menina mostrando o quanto esteve atenta ao seu trabalho diante do desafio.
– A gente não pode pular pedaços da história – completou o outro.
Decidiram então gravar a fita lendo e não contando.

3 O que fazer com as crianças que não acompanham o resto da turma?
Era a única menina do grupo que ainda não sabia ler nem escrever, embora já estivesse na 3ª série. Desconfiávamos de que essa era a causa de sua timidez e dificuldade para se comunicar com as demais crianças da sala. Outro menino da turma também escrevia muito mal. Como queríamos nos responsabilizar pela alfabetização de todas as crianças, porque entendemos que é o direito mínimo e fundamental de todos os cidadãos, combinamos algumas medidas que exigiam esforços de todos:
• Ler bastante para as crianças, todos os dias, diferentes textos, para que
elas se familiarizem com a língua escrita antes mesmo de conhecer as
letras;
• Planejar propostas mais pontuais, que possam ajudar as crianças a
avançar na escrita e na leitura. Deve haver um momento de atendê–las
individualmente, todos os dias, durante quinze minutos, pelo menos.
• Além do atendimento específico, propor que as crianças trabalhem em
duplas ou pequenos grupos, para que umas possam aprender com as
outras, auxiliando-se mutuamente, dispondo das diferentes competências
que possuem;
• Avaliar as produções das crianças para que não se corra o risco de
encontrar crianças que não lêem e não escrevem convencionalmente sem que ninguém saiba, como foi o caso.

Os vários jeitos de contar histórias
Num outro dia ouvimos trechos de um CD do Chico dos Bonecos –  Histórias Gudórias de Gurrunfórias de Maracutórias, Xiringabutórias – Gravadora Palavra Cantada, e um trecho de uma história de um CD da Folha de São Paulo da Coleção Histórias de todos os tempos.
Propus que ouvissem com atenção, para perceber como fazem os contadores de histórias: precisam ser claros, ter boa dicção, falar ou ler devagar, colocar a emoção na voz. Por fim, compararam as duas gravações e perceberam que Chico dos Bonecos é mais expressivo. Disseram que ele tem um jeito engraçado para contar as histórias e que conseguem entender todas as palavras que ele diz. Sugeri então que relêssemos o conto “A Moça e a Vela”, de Câmara Cascudo, com a intenção de trabalharmos a interpretação dos contadores. Fizemos um aquecimento de voz, usado por atores de teatro e cantores. As crianças ficaram muito concentradas, sentindo–se muito importantes!

Desenho de Carlos Galvan (9 anos)

Desenho de Carlos Galvan (9 anos)

Em seguida nos detivemos sobre a leitura de diferentes momentos do texto – o de suspense, o de graça etc. – e as várias formas de expressão e o jeito de cada personagem. As crianças trabalharam, bastante envolvidas. Poucas liam com fluência, talvez umas três. Outras tinham problemas de compreensão, ou de inibição, pois sabiam que suas leituras não eram boas. Mas nada disso as excluía do trabalho. Para elas foi importante ler a mesma frase várias vezes, de várias maneiras: isso as encorajou a ler em público, auxiliou na compreensão e na busca da entonação adequada à leitura. Na leitura em voz alta, todos estavam se expondo e dando o melhor de si. Pude observar que, enquanto algumas crianças estavam lendo, outras, envolvidas e comprometidas, ensaiavam o mesmo trecho para se saírem bem na sua vez. Procurei ficar bem perto, com as mãos nos ombros daquelas que tinham maior dificuldade para ler ou que se mostravam inseguras. Ed Carlos, um dos garotos que não gostavam de ler, passou a apreciar e participar das rodas de leitura. Marília, sua companheira, disse que gostou muito da leitura do texto de Cornélio Pires e até me pediu para ler novamente. Michel queria saber onde eu encontrava esses livros, pois ele queria comprar os Contos de Assombração. Grandes conquistas!

O interesse em ouvir outras gerações
O pai de Selma conhecia muitos causos e podia contar alguns para aumentar nosso repertório. As crianças quiseram convidá-lo para uma roda de causos no CJ. Tínhamos que fazer o convite: escrevi na lousa o que elas iam dizendo. Às vezes ficava sem sentido, sem concordância, sem algumas informações importantes. Fui auxiliando na organização das idéias e corrigindo o texto com elas. No dia combinado o sr. Roberto, pai de Selma, compareceu ao CJ para contar causos às crianças. Foi o maior sucesso! Ele chegou com uma lista para poder lembrar de tudo o que tinha de contar. As crianças se sentaram no chão, próximas ao contador, para acompanhar de perto o que ele dizia. Ele contou muitas histórias que haviam acontecido consigo e com seus parentes. Falou sobre muitas coisas do passado. Causos engraçados e tristes. As crianças também fizeram perguntas:
– O senhor já contou causos em outros CJs?
– Com quem o senhor aprendeu a contar causos?
– Quantos filhos o senhor tem?
Depois de tanta conversa, hora do lanche. Teve doce e suco. Educadamente, as crianças deixaram o sr. Roberto se servir primeiro. No final, presentearam-no com um marcador de livros confeccionado por uma das crianças. As informações do sr. Roberto ajudaram as crianças a concluir o produto final deste projeto, a fita com as narrativas escolhidas pelo grupo. Ela foi doada à instituição Laramara, que atende cegos.

Vocês conhecem causos?
Elaine Ponce, professora grupo 6 (crianças de 6 anos) da escola Logos, já desenvolvia, naquela ocasião, um interessante projeto sobre causos que ajudou a resgatar as narrativas das famílias. O repertório das crianças foi bastante alimentado pela leitura do livro Alexandre e Outros Heróis de Graciliano Ramos, que traz, na voz de Alexandre, o personagem principal e narrador, alguns causos de deixar qualquer um cabreiro, como esse que foi contado por uma das crianças da turma:

O olho torto de Alexandre
“Todo mundo estava olhando estranho para o Alexandre. O pai dele perguntou: – O que aconteceu com seu olho?
Ele botou a mão no olho e percebeu que estava faltando um olho e foi correndo olhar no espelho. Falou:
– Eu vou procurar meu olho.
Ele pegou um cavalo e foi procurar seu olho. Quando estava desistindo, olhou para o espinheiro e o olho dele estava lá. Ele pegou o olho, limpou na blusa e pôs de volta no lugar. Só que ele via metade das árvores, quando ele baixava a vista, via ocoração, tripas, ossos. Quando ele levantava a vista, via o cérebro, miolos e o pensamento. Ele percebeu que tinha posto o olho ao contrário. Então ele tirou o olho e pôs no lugar certo. Daí Alexandre foi para casa. O pai dele falou:
– Alexandre! Você achou seu olho!
– É, achei.
Ele foi correndo para o banheiro, olhar-se no espelho. Aí ele percebeu que tinha posto o olho meio torto e viu que estava enxergando melhor pelo olho torto do que pelo outro olho.”

Outros causos:

“Meu bisavô trabalhava como engenheiro agrônomo e foi replantar o jardim do Cemitério da Consolação. Tinham acabado os materiais, e disse ao capataz: – Pegue todos os empregados e vá buscar mais material no viveiro da prefeitura. Eles demoraram muito. Estava chegando a noite. Então, meu bisavô resolveu debruçar-se no muro para ver se os empregados estavam chegando. Ele resolveu fumar um cigarro de palha. Quando passavam dois homens conversando na rua, meu bisavô, que era alto, forte e tinha cabelos brancos, deu uma pigarra. Os homens olharam para cima e ficaram com tanto medo que estão correndo até hoje.”
(Contado por Selma, a diretora do CJ)

“Conheci uma família que morava na Bahia. Todos os dias a mãe preparava a marmita para a filha levar para o pai no trabalho. No meio do caminho a menina comia o frango e deixava os ossos para o pai e sempre inventava uma desculpa. Um dia, ele ficou furioso e foi para casa, e deu uma surra na mulher. Ela ficou de joelhos e disse:
– Marido! Eu juro que não fui eu nem minha mãe, foi a nossa filha. Quando a menina ouviu a confissão da mãe, ela sentiu tanto medo que saiu voando e relinchando como um cavalo. E até hoje ninguém sabe do paradeiro. Só se ouviu dizer que ela está viva e voando pelos ares.”
(Contado por Branca, a cozinheira do CJ)

Um enfoque na produção escrita
No CJ vimos como o projeto “Sei não, só sei que foi assim” contribuiu para que as crianças desenvolvessem o gosto e o hábito da leitura. Enquanto isso, na escola Logos, a professora Elaine priorizou o trabalho com a linguagem escrita. Ela propôs que as crianças pesquisassem causos com suas famílias e escrevessem essas narrativas a fim de ler na roda para os amigos. As crianças ouviam a leitura atentamente e comentavam,  ajudando o companheiro a reescrever seu causo, que, junto com outros, iria compor a coletânea de narrativas do grupo 6 a ser disponibilizada para quem quisesse apreciar. Depois enviaram seus causos para as crianças
do CJ.

Primeiro texto escrito por Antenor. Ao lado os comentários das crianças

Primeiro texto escrito por Antenor. Ao lado os comentários das crianças

– Que casa era? – perguntou Gabriel – Onde?
– Como ele sabia que era o vento? – questionou Luiza, intrigada.
– O trem passava bem na frente? – duvidou Gabriel.
– É, na frente – respondeu Antenor, o relator do causo.
– Não existe trem que passa na frente – insistiu Gabriel.
– Tinha trilho – explicou Antenor.
– As pessoas desconfiavam desse trem? – quis saber a professora.
– Sim, que tinha Zumbi lá dentro – esclareceu Antenor.
– E era um Zumbi que balançava a cadeira? – perguntou Luiza, para confirmar.
– Este é o mistério! – explicou Antenor, defendendo seu causo.

Conto escrito por Antenor

Texto reescrito

(Edi Fonseca,  formadora do Crecheplan e contadora de histórias)

O PROJETO:
Eixo de trabalho predominante:
linguagem oral e escrita

Objetivos:
1. compartilhado com as crianças: gravar uma fita de contos populares e causos para doar às crianças da Instituição Laramara;
2. didático: trabalhar com a leitura e a oralidade, ajudando as crianças a estabelecerem relações entre causos e outros contos da tradição oral.
Tempo previsto: 4 meses
Turma: 9 a 10 anos
O que a professora quer que as crianças aprendam:
1. Sobre os textos e os procedimentos de trabalho:
– ler e atribuir sentido aos causos;
– distinguir e reconhecer causos de outras narrativas;
– distinguir o código da linguagem oral e da escrita;
– contar causos;
– registrar causos oralmente;
– registrar causos por escrito;
– planejar e executar tarefas em grupo;
– pesquisar;
– divulgar e envolver outras pessoas no trabalho, socializando alguns conhecimentos.
2. Atitudes e valores:
– valorizar o trabalho em grupo;
– valorizar os saberes dos mais velhos e de outras pessoas da comunidade;
– gostar de ler e ouvir histórias.
Orientações didáticas do projeto:
1. Ler e estudar causos, durante todo o projeto, para alimentar as crianças, ampliando dessa forma o repertório do grupo.
2. Promover momentos em que as crianças vão contar causos, para que possam se envolver com o texto oral, reconhecer e usar características desse tipo de narrativa.
3. Quando for o momento de apresentar os contos tradicionais, é importante garantir que todas as crianças tenham o livro ou uma cópia dos textos, para que possam ensaiar estratégias que auxiliem a compreensão da leitura.
4. Promover o uso de dicionário para que ampliem o vocabulário e compreendam melhor os significados do texto.
5. Combinar com as crianças, durante todo o projeto, momentos de contar histórias para que elas possam treinar diferentes entonações, usando as marcas do texto, compreendendo a importância do preparo para ler em voz alta.
6. Propor questões que façam as crianças pensarem sobre o texto específico, dando a elas mais elementos para compreender e distinguir a linguagem oral e a linguagem escrita.
7. Garantir, sempre que possível, o trabalho em grupos, para que as crianças possam ser parceiras de fato, colocando em jogo os saberes individuais.
8. Promover espaço e clima favoráveis para os momentos de gravação, permitindo que as crianças contem e leiam histórias em voz alta, garantindo a atenção dos ouvintes.
9. Incluir a participação das crianças a cada retomada do planejamento do projeto.
Atividades:
I.Atividade inicial: Contar um causo para as crianças e observar se elas percebem as características principais desse texto, se conhecem histórias desse tipo, contadas pelos pais, amigos ou parentes, trazidas de outras regiões. Pedir que contem alguns causos e/ou escrevam um causo conhecido ou inventado.
II. Seqüência prevista de atividades:
1. Listar com as crianças os materiais necessários e as etapas de trabalho, para que participem do planejamento e fiquem atentas ao desenvolvimento do projeto para alcançar o objetivo compartilhado (a fita de contos da tradição popular).
2. Leitura de um texto. Cada criança receberá seu texto com referência bibliográfica. Elas deverão grifar as palavras desconhecidas, tentar compreendê-las no contexto da história e conferir no dicionário. Essa prática ajuda as crianças a desenvolverem estratégias de leitura.
3. Leitura de um texto. Dividir a turma em quatro grupos; dois grupos vão ler com o propósito de contar oralmente. Os outros dois vão fazer uma leitura em voz alta para o grupo. Gravar as apresentações para que as crianças possam, em seguida, discutir, apreciar, compreender outros significados dos textos, percebendo assim a diferença entre ler e contar.
4. Assistir ao filme Marvada Carne, para reconhecer nele alguns causos, suas características e seus contextos.
5. Dividir a turma em quatro grupos para as seguintes tarefas:
– pesquisa de causos com funcionários do CJ e com as famílias. Saber como esses causos surgiram;
– seleção das histórias que serão gravadas e planejamento da divisão de papéis e efeitos sonoros;
– confecção de mural com cartazes e informações sobre o projeto;
– digitação dos causos recebidos por meio da pesquisa, para a construção de um acervo.
6. Fazer uma conversa de roda e registrar aspectos que se repetem nos causos, ou seja, levantamento de regularidades, para que as crianças tenham referências para identificar um causo e possam recorrer a eles para contar suas histórias.
7. Trocar informações com outro grupo de crianças e/ou adolescentes que estejam trabalhando com causos, para que possam compartilhar conhecimentos e aprender com outras pessoas.
8. Convidar algumas pessoas da comunidade para contar causos no CJ, para que as crianças possam ampliar o repertório e aprender os diferentes jeitos de contar histórias.
9. Selecionar os causos ou contos para propor a primeira gravação a um pequeno grupo (duas ou três crianças). Na audição da fita será dada ao grupo a oportunidade para analisar o desempenho, decidindo mudanças para melhorar e ainda escolher o efeito sonoro mais adequado para  enriquecer a narrativa.
10. Combinar com as crianças um momento de treinar os recontos com diferentes entonações, para que possam trabalhar com a pontuação, compreendendo a importância das marcas do texto e ajudando no preparo da leitura em voz alta.
11. Promover uma “Tarde dos Causos”, para que todos os parceiros que participaram, de perto ou à distância, possam trocar causos. Essa atividade coloca em jogo tudo o que as crianças sabem sobre o que foi estudado.
12. Gravar a fita.

Ficha Técnica:
O projeto Sei não, só sei que foi assim, de Edi Fonseca, foi realizado no Centro de Juventude Dom Bosco, no Brooklin, de agosto a novembro de 1999, e dele participaram a coordenadora pedagógica Selma Protti, a professora Suely Iolanda Viduluc, 30 crianças entre 9 e 10 anos e a formadora Denise Nalini. Apoio: Instituto Pão de Açúcar .

Para saber mais:
LIVROS:
• Contos tradicionais do Brasil. Câmara Cascudo. Ediouro, Rio de Janeiro, 1998, tel.: (0XX21) 560-6122.
• Casos de Minas. Olavo Romano. Paz e Terra, tel.: (0XX11) 276-5566.
• Alexandre e outros heróis. Graciliano Ramos. São Paulo, Record, 1996, tel.: (0XX11) 220-6766.
• As Estrambólicas Aventuras do Joaquim Dentinho. Cornélio Pires, Prefeitura Municipal de Tietê, 1985.
• Contos de Assombração, co-produção latino-americana. Ed. Ática, tel.: (0XX11) 3346-3000.

FILME:
• A Marvada Carne. André Klotzel

Dica de leitura:
“Se você tem alguma dúvida sobre a cultura brasileira, pergunte à Câmara Cascudo”, já nos aconselhava o poeta Carlos Drummond de Andrade nos fins da década de 60. E se o famoso folclorista não está mais por aqui para atender aos nossos chamados e dúvidas (ele faleceu no ano de 1986, aos 88 anos), seus textos podem fornecer respostas precisas e consistentes sobre nossa cultura, nossos hábitos e folclore. Grande estudioso do Brasil, Câmara Cascudo tinha enorme compromisso com as tradições populares, o que fica explícito em suas obras.
Dentre elas, podemos destacar Dicionário do Folclore Popular, Contos Tradicionais do Brasil, Vaqueiros e cantadores, entre outras. Cascudo dedicou grande parte de seus estudos às lendas brasileiras, que  constituem importante expressão de nossa cultura popular, e escreveu seu Lendas Brasileiras. Tornou-se assim um bom contador de causos. Aliás, lendo esse livro, temos mesmo a impressão de estarmos ao redor de uma fogueira, escutando as histórias de nossa terra, seduzidos pelas crenças de nosso povo e de nossa origem. As lendas agrupadas nesse volume fazem parte de nossa tradição oral, daí a sua relação com os “causos”; podemos mesmo reconhecer várias delas naquelas histórias que nos foram contadas pelos mais velhos, persistindo em suas memórias e tradições. Recentemente a Ediouro reeditou essas Lendas Brasileiras, que se encontram no livro divididas por regiões: Norte, Nordeste, Este, Sul e Centro. Dentre as lendas, podemos encontrar as
mais famosas, tais como “A lenda da Iara” (Norte), “O Negrinho do Pastoreio (Sul) e “Chico Rei” (Centro), bem como algumas menos  conhecidas, como “A Cidade Encantada de Jericoacoara” e “As Mangas de Jasmim e Itamaracá” (ambas do Nordeste) e, ainda, “O Sonho de Paraguassu”(Este), entre outras. Todas elas tratam de nossas origens, remetendo-nos à terra, ao que nos constitui e é universal, como fazem mesmo os bons causos da riquíssima tradição oral. Além das histórias, trata-se aqui de uma edição bem cuidada e bonita, ilustrada pelo famoso artista Poty, também conhecido por ilustra obras de grandes escritores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Jorge Amado. A leitura dessas obras é um convite. Então venha: vamos nos sentar aqui, em volta dessa fogueira, escutando mato, vento, histórias de Câmara Cascudo.
(Ana Carolina Carvalho)
Cascudo, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. Tel.: (0XX21) 560-6122 – Fax (0XX21) 280-2438 e-mail: livros@ediouro.com.br.

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