Mexe e remexe; Arte na Creche

Educadoras de creches de São Paulo estão promovendo um interessante diálogo entre creche e museu. As educadoras vão uma vez por mês ao MAM para visitar as exposições, discutir com os monitores, entrar em contato com o trabalho de alguns artistas que lá expõem, participar de oficinas e ateliês onde podem explorar as possibilidades dos materiais, experimentar técnicas, meios, suportes e refletir sobre a produção artística.

Crianças brincando com bichos de papelão, inspirados nas esculturas de Ligia Clark

Crianças brincando com bichos de papelão, inspirados nas esculturas de Ligia Clark

A iniciativa partiu das formadoras do Crecheplan, Helô Pacheco e Denise Nalini; o intuito era criar situações alternativas e complementares aos encontros promovidos pelo projeto de formação de professores, garantindo o acesso das educadoras aos espaços públicos, aos bens culturais a que têm direito, enriquecendo e ampliando o contato delas com a arte erudita. As educadoras, seduzidas pela vontade de conhecer, participavam dos encontros assiduamente.

Fotos: Silvana Augusto

As esculturas de Lygia Clark não são só para ser observadas, bem guardadas nos museus: elas convidam à interação, sem a qual não se realiza o ato estético. Essa concepção inspirou algumas experiências na Creche Meu Abacateiro.

Em alguns desses encontros, lhes foi apresentado o trabalho de Lygia Clark, cuja exposição permaneceu no MAM de junho a agosto de 1999. A concepção de arte de Lygia, a relação com os objetos e as percepções corporais fizeram-nas pensar nas crianças da creche que poderiam ir ao museu e tocar nas obras, não apenas olhá-las de longe.

Seria possível levar essa expressão da arte às crianças? Como seria essa aproximação? De toda a produção dessa artista o que faria sentido para as crianças?

No início, uma boa conversa: as educadoras mostraram às crianças o que fizeram nas oficinas, falaram sobre o museu, suas visitas, os estudos que empreenderam e ainda curiosidades sobre a vida da artista e sua obra. O material usado, os textos e reproduções de fotos, foram cedidos pelo MAM e pelo Crecheplan.

Melhor informadas, as crianças foram ao museu acompanhadas por suas professoras e monitores do MAM. O trabalho de Lygia era mesmo bom para as crianças pequenas, que adoram mexer em tudo. Foi uma ótima oportunidade para elas conhecerem um espaço cultural diferente da creche. Daí em diante, muitas experiências foram propostas, inspiradas nos principais aspectos da obra de Lygia Clark: contato com objetos relacionais, criação de máscaras, esculturas móveis, exploração de materiais, quebra de suporte, descoberta e vivência de vários sentidos além da visão… iniciativas de educadoras que conhecem algo interessante e que têm prazer em compartilhar.

Lygia Clark, a artista que despertou a curiosidade das educadoras

Ligia Clark

Ligia Clark: “O homem encontra seu
próprio corpo através de sensações táteis realizadas em objetos exteriores a si”

Lygia Clark nasceu em 1920, em Belo Horizonte. Aos 27 anos, depois de passar por uma séria crise pessoal que a levou a rever seus valores, voltou a estudar. Foi aluna de Burle Marx em 1947 e dois anos depois foi a Paris onde estabeleceu contato com Léger. De volta ao Brasil, conviveu com Hélio Oiticica e Mário Pedrosa, artistas que tinham como desafio a expressão individual, criadora, a quebra do suporte convencional da arte (a tela) e o questionamento do papel do espectador. Lygia Clark, por sua vez, sugeria o uso de outros sentidos além do olhar.

Reconhecida por várias bienais, seu trabalho promoveu a arte fora dos museus, entrando no cotidiano, na vida das pessoas. Tratava-se de um novo conceito de arte. Ela ousou ainda mais, abrindo mão do suporte convencional para propor uma outra forma de ocupar o espaço: as superfícies bidimensionais ganharam volume e quebraram a idéia de figura e fundo. Seus tridimensionais tornaram-se acessíveis aos sujeitos, cujo toque podia transformá-los, modificando o caráter convencionalmente estático das esculturas para mostrar uma arte no gesto, na interação com o objeto.

Um dos mais conhecidos trabalhos nessa linha é “Os Bichos”, escultura móvel, construída com placas de alumínio articuladas, que lhe rendeu, em 1961, o prêmio da 6º bienal de São Paulo como melhor escultora nacional.

Lygia Clark morreu em 1988, no Rio de Janeiro, mas continua sendo citada na discussão estética por muitos dos artistas contemporâneos.

Os Bichos, de Ligia Clark

“Os Bichos”
“É o nome que dei às minhas obras desse período, pois suas características são fundamentalmente orgânicas. Além disso, a charneira da união entre
os planos me fez lembrar uma espinha dorsal.” Lygia Clark, 1960

Livros sensoriais

Crianças da creche Meu Abacateiro, inspiradas na fase sensorial do trabalho de Lygia Clark, desenvolveram trabalho cooperativo planejado por suas professoras

As crianças de 2 e de 4 anos da creche Meu Abacateiro também trabalharam sob a inspiração de Lygia Clark.

As de 4 anos produziram colagens muito interessantes, que combinavam uma grande diversidade de materiais. Essas colagens eram as páginas dos livros sensoriais que foram dados às crianças de 2 anos.

Os maiores, muito comprometidos, sentiram-se orgulhosos ao saber que seu trabalho tinha contribuído para a aprendizagem dos menores, que assim puderam explorar a riqueza das sensações apreendidas pelo tato numa roda proposta pela professora.

Aproveitar as produções das crianças, atribuindo sentidos diversos e promover intencionalmente novas parcerias, é uma boa idéia para ser adaptada! Experimente reeditar a idéia na sua creche ou escola.

Crianças da creche Meu Abacateiro trabalharam e se divertiram inspirados na obra de Ligia Clark

Porque Lygia Clark faz sentido para as crianças

O trabalho realizado nos berçários com crianças de até 2 anos de idade, na creche Meu Abacateiro, foi inspirado na trajetória de Lygia Clark e consistiu no uso de objetos definidos por ela como sensoriais. A chance dada às crianças de experimentar situações do fazer artístico de Lygia foi interessante, porque possibilitou um conhecimento, que combina com o jeito de ser de bebês e crianças pequenas: de fato, as sensações táteis colaboram para a constituição da consciência corporal das crianças do berçário, ampliando sua vivência e aprendizagem.

Para nós, as professoras da creche, a reflexão sobre o trabalho de Lygia permitiu recolocar a intenção educativa do trabalho com objetos. Descobrimos que as sensações trabalhadas com as crianças podem ir além das questões físicas e emocionais. Determinados jeitos de se relacionar com objetos podem ter outro sentido. Na creche, usamos objetos como pano translúcido, massinha, saco plástico com água, todos inspirados nas propostas de Lygia. Essas “coisas” deixaram de ser meros objetos e ganharam outro sentido nas mãos das crianças.

Ao brincar com o tecido aderente e translúcido costurado como um túnel1, as crianças experimentaram novos olhares, a interação com outras crianças e ainda exercitaram o equilíbrio.
Ao brincar com a massinha, descobriram vivências ligadas ao tato, ao movimento e ao reconhecimento das diferentes dimensões encontradas pelas formas variadas. O saco plástico com água convidou-as ao toque sensível, à escuta dos barulhos produzidos pela ação e novamente à visualização dos movimentos. Esses são apenas alguns dos objetos por nós confeccionados. Continuamos com o desafio de pensar outros, a serem oferecidos a eles, os bebês, e às crianças pequenas que
freqüentam nossa creche.
(Reflexões sobre o trabalho de Regina Cardoso Guimarães e Sônia Maria Boaventura da Silva – Creche Meu Abacateiro)

1 Túnel, 1973, trabalho realizado com alunos da Sorbonne,
Paris. “Esse trabalho consiste em um túnel de pano de 50
metros de extensão. Entrando pelo túnel, as pessoas muitas
vezes se sentem sufocadas. Então eu abro frestas no
pano… as pessoas ‘nascem’ através desses buracos.” (Lygia Clark)

Dicas do Professor

Fita de Moebius, o caminho que não tem fim

Quanto mais se recorta, mais ela cresce.
Descubra o segredo da fita de Moebius2 e apresente-a às crianças. Com uma simples fita e tesoura, elas poderão criar objetos interessantes. Proponha uma oficina e aproveite para fotografar as diversas composições.

Materiais:

  • uma fita de papel
  • tesoura (sem ponta se for oferecida à criança pequena)
  • cola
  • recorte a fita na largura desejável
  • torça uma vez o centro da fita e…
    …cole as pontas

inicie cortando a fita ao meio, seguindo uma linha reta; quanto mais estreito for seu corte, mais longo será o caminho a ser percorrido. Esse recorte não tem mais fim, você é quem vai decidir quando vai parar.

Fita de Moebus

Fita de Moebius:
• recorte a fita na largura desejável
• torça uma vez o centro da fita e…
…cole as pontas

2 A.F. Moebius, matemático e geômetra, 1790-1860.

Puro fazer, sem obra e sem objeto “De fato, esses trabalhos da Lygia – que eu, na época, chamei de ‘não-objetos’ – situam-se na fronteira da arte. Ninguém sabia disso, então, nem nós nem ela. Mas ela logo o saberá quando, cortando com uma tesoura uma fita de Moebius, inventa o que chamou de ‘Caminhando’, a obra que rompe a fronteira e faz vislumbrar ‘o singular estado de arte sem arte’. Ela aconselha qualquer pessoa a lançar mão de uma tesoura e uma fita de Moebius e viver – como ela, Lygia, viverá – a experiência de criar. Criar a obra de arte? Não: simplesmente viver o ato de criar. Noutras palavras, Lygia que, com ‘Os Bichos’, abrira a obra à participação (colaboração) do espectador, agora vai adiante: abdica de criar e transfere essa função ao espectador que, nessa altura, já deixou de sê-lo, para tornar-se autor. Mas para qual espectador? Todo autor pressupõe uma obra e um espectador dessa obra. Mas não, ‘Caminhando’ não é obra, mas puro ato de fazer.”

(Ferreira Gullar – in: Lygia Clark e a busca sem limites. Jornal da Tarde, 2 de abril de 1988)

Para saber mais:

Livros:

  • Lygia Clark. Lygia Clark e outros. Rio de Janeiro, Funarte, 1980
  • Arte Brasileira Hoje. Ferreira Gullar (org.). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973
  • Lygia Clark: obra-trajeto. Maria Alice Milliet, São Paulo, Edusp, 1992

Catálogos:

  • Exposição de Lygia Clark, MAM, 1999
  • Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo nos anos de 1953, 1955, 1957,1959 e 1961
  • Bienal de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo,
    nos anos de 1963 e 1967

Onde encontrar:

  • O MAM de São Paulo também tem biblioteca e um setor educativo bastante atuante; os arte educadores do MAM foram parceiros na descoberta do universo de Lygia Clark pelas educadoras das creches, cujos trabalhos publicamos nesta seção. Interessados em conhecer outros artistas podem agendar oficinas e visitas monitoradas, tudo gratuitamente. MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo), Parque do Ibirapuera, portão 3, Cep 04094-000, Fone: (0XX11) 549-9688
    www.mam.org.br – educativo@mam.org.br
  • O Museu de Arte Contemporânea de São Paulo possui catálogos de antigas exposições, recortes de revistas, jornais e uma boa coleção de slides das obras de Lygia Clark. A biblioteca do museu empresta todos
    esses materiais mediante requisição da instituição. O serviço é gratuito.
    MAC USP (Museu de Arte Contemporânea), Rua da Reitoria, 160, Cidade Universitária, Cep 05508-900 – São Paulo – SP, Fone: (0XX11) 818-3031
    Bibmac@edu.usp.br – www.mac.usp.br

Onde encontrar produções de Lygia:

  • Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
  • Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
  • Pinacoteca do Estado de São Paulo
  • Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP)
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