A força de um livro está definitivamente em seu texto, mas quando há ilustrações elas podem potencializar a mensagem transmitida pelas palavras. Elemento importante na composição de um livro, a ilustração não só enfeita, narra ou traduz um texto, mas dialoga com ele
Nas páginas desta revista, vocês têm acesso a dois artigos em que a ilustração foi parte integrante do trabalho: Uma leitura inusitada: Harry Potter aos 4 anos; Ler para estudar, escrever e desenhar para comunicar. Nestes dois projetos, os alunos ilustraram tanto a partir da interpretação que puderam realizar dos livros, quanto do conhecimento adquirido com as leituras de textos técnicos, de enciclopédias, da observação dos animais estudados e do acesso a diferentes tipos de ilustração. Nos dois casos, as ilustrações revelaram um trabalho de análise e compreensão do conteúdo estudado e lido, colocando os alunos como ilustradores semelhantes àqueles que iniciaram a história da ilustração no país. Conhecer mais sobre as características que regem o universo da ilustração pode contribuir para dar mais consistência às propostas desse tipo feitas pelos professores aos alunos.
Um pouco de História
Os primeiros livros ilustrados no Brasil tinham na imagem uma função de ornamento em relação ao texto verbal1. Havia uma preocupação muito grande com a representação de um trecho da história, predeterminado pelo editor ou pelo autor. Seguindo a tradição européia nas ilustrações dos contos de fadas, o Brasil adotou essa forma de conferir imagem aos livros, em que o que contava era o grau de preciosismo do desenho relacionado a um trecho da obra literária. A ilustração ainda não se apresentava enquanto uma linguagem visual capaz de dialogar com o texto, assim como não havia um trabalho de interpretação por parte do ilustrador. E é justamente isso o que caracteriza atualmente o trabalho de ilustração.
No início do século 20, essa forma de ilustrar as histórias começou a mudar. Se anteriormente havia uma ordem expressa no sentido de a ilustração representar determinado momento ou frase de um texto, bem como uma determinação a cerca do espaço ocupado pela imagem (início, meio e fim da história), alguns ilustradores brasileiros começaram a apresentar mudanças nesse jeito de trabalhar. Passaram a conferir sua própria interpretação da história à imagem, colocando-se não só como desenhistas, mas também como leitores dos livros que ilustravam. Nesse movimento, a ilustração enquanto narração, representação ou tradução da história passa a estabelecer um diálogo com o texto.
Uma linguagem visual que dialoga com a verbal. Nessa perspectiva, o ilustrador passa a ser, antes de tudo, um leitor. E tanto melhor será a ilustração quanto mais puder conter a interpretação de quem a realiza, mas é necessário que também possibilite ao leitor buscar as suas interpretações. Há um espaço para a interação, que se dá em três níveis: ilustrador, texto e leitor.
O diálogo do leitor com a ilustração
Segundo o escritor Alberto Manguel, em seu livro Lendo imagens, nós só podemos ler ou ver aquilo que conhecemos, aquilo que faz um sentido para nós. Não vemos o que não conhecemos, precisamos ter informações suficientes para que comecemos um diálogo com uma imagem ou ilustração, informações estas que vêm do que já vimos, das imagens que já construímos em nossa memória. Em se tratando das ilustrações de um livro, o diálogo que estabelecemos com elas tem início na leitura que fazemos do texto ou da história em questão. Assim como o ilustrador dialoga com o livro, a imagem que ele propõe também promove uma conversa do leitor com o texto. Nesse sentido, pode-se dizer que a ilustração não tem um fim em si mesma, ela está presente para que possa haver um diálogo com o texto.
A ótica de um ilustrador
Luis Camargo2, escritor e ilustrador de livros infantis, também confere importância para esse diálogo que a ilustração estabelece com o texto, afirmando que a imagem presente em um livro não possui função quando vista isoladamente. Há, segundo Camargo, uma “relação semântica entre as duas linguagens, a visual e a verbal”. À essa relação semântica entre o texto e a ilustração, o autor atribui ainda diferenças qualitativas, já que ela pode se apresentar a partir de uma coerência do desenho com o texto, de um desvio ou de uma contradição. A relação de coerência é uma situação ideal, em que a ilustração converge para o texto, sem que isso signifique uma equivalência completa. Nas outras situações, há uma incoerência, que pode se expressar a partir de um desvio ou de uma contradição do desenho em relação ao texto.
Analisando ainda a qualidade dessa ligação que se estabelece entre as duas linguagens, a visual e a verbal, Luis Camargo faz um interessante paralelo entre a relação existente no teatro entre o texto e o cenário, a iluminação e o figurino da peça, na medida em que não se espera que todos esses elementos traduzam o texto para o espectador, mas que possam compor, a partir de uma coerência, a linguagem teatral.
1Essas informações foram coletadas no site www.sobresites.com/literaturajuvenil.com.br, a partir da entrevista com a professora Ana Lúcia
2Entre as obras de Luis Camargo, podemos destacar a coletânea poética O catavento e o ventilador (Prêmio Jabuti de Ilustração).
Ilustração de Contos de fadas
Um livro imprescindível para quem trabalha com contos de fadas acaba de sair do forno. Trata-se de Contos de Fadas – Edição comentada e ilustrada – Maria Tatar – da Jorge Zahar Editor. Cada um dos 26 contos apresentados é ilustrado por diferentes artistas, somando cerca de 300 ilustrações, muitas delas raras. Às imagens que dão vida aos personagens e cenas que encantaram gerações inteiras produzidas por ilustradores célebres dos séculos 19 e 20, somam-se versões clássicas dos contos com toda a riqueza textual. O livro nos presenteia ainda com comentários ao longo das histórias que contextualizam o conto no tempo e que auxiliam a compreender a linguagem visual, possibilitando ampliar os diferentes significados de cada texto.
Para saber mais
- Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou Isto Ou Aquilo, de Cecília Meireles; dissertação de mestrado. Luis Camargo, Unicamp, Projeto Memória de Leitura, 1998.
- Lendo imagens: Uma história de amor e ódio. Alberto Manguel, São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Tel.: (11) 3707-3501