Rosa Iavelberg1 é arte-educadora e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e também coordena o setor educativo do Centro Universitário Maria Antônia. Sua longa e importante trajetória na arte-educação faz dela uma referência nacional. Nesta entrevista ela retoma o sentido da arte na educação infantil e as novas demandas para a formação do professor
avisa lá: Que experiências em artes visuais são fundamentais na educação infantil?
Rosa: Em Educação Infantil, o mais importante, o básico, é a criança ter espaço para viver a arte na escola. Ter oportunidade de fazer, criar, explorar materiais, poder se expressar. Ter garantido um momento, dentro das atividades que a escola programa, em que pode escolher, a partir de uma gama de ofertas, o que vai trabalhar e o que quer fazer. Pode parecer muito simples, mas é complexo e é a base de tudo.
No plano da criação e do trabalho do artista adulto há uma intenção, um método que organiza a sua ação e que resulta na criação de um produto. No caso da criança, a escola é que vai organizar o espaço dessa ação e auxiliar para que ela ocorra da maneira mais informada para a criança, próxima às práticas sociais.
O que a escola e o professor devem prover para que a criança expresse seu poder criativo?
Podemos perguntar como aproximar essa criança, que é tão pequena, de uma atividade que para ela é um potencial. Isso se faz com uma intervenção adequada, que não bloqueie sua criação. Embora a situação tenha uma direção – você faz propostas –, o básico é não tirar dela a oportunidade de fazer algo com uma marca pessoal. Um trabalho que limita a ação da criança em arte é ruim. Melhor é aquele que abre possibilidades para ela se expressar, criar, se manifestar para aprender.
Você faz uma proposta orientada, mas com graus de abertura. A partir daí, a criança vai descobrindo esquemas para desenhar, pintar, modelar e conhecer arte. Ela pode sempre criar em arte.O perigo é o automatismo, o desconhecimento do professor sobre os processos de criação, o que pode gerar propostas limitadoras.
Virou moda apresentar obras de artistas para as crianças, propondo releituras. Como você vê isso?
Como um desvio muito grande dos novos paradigmas. A arte que se ensina na escola não pode estar distante de práticas sociais. Não basta você saber que é da articulação do fazer e do conhecer que nasce a criação. Isso ainda é muito pouco e pode gerar propostas mecânicas. É preciso saber como esse processo se dá na prática, tanto do artista que faz como da criança que aprende. A imagem do outro (obra), principalmente a do adulto, pode ser ponto de partida como fonte de geração de imagens. Mas não pode ser a única fonte de geração.
A prática de observação e recriação que parte de uma obra foi escolarizada no mau sentido, não é essa a prática artística. O professor pegou um procedimento e generalizou, esquematizou aquilo como a única possibilidade de criação. Como conseqüência, a criança logo capta que fazer arte é isso: partir sempre de uma imagem dada, porque a escola é uma referência forte. O problema disso é não reconhecer como é o processo de criação da criança, porque existe uma diferença do processo de criação do adulto para o da criança.
Picasso fez releitura de Velásquez. A diferença entre a proposta do professor e a ação de Picasso é que, no caso do artista, ele é o epicentro da ação. Na releitura proposta para as crianças a ação está esquematizada, organizada e ordenada pelo professor, embora elas respondam a seu modo à consigna dada.
Trata-se, então, de uma proposta ruim?
Quando o professor propõe um trabalho a partir de uma imagem, a releitura de Velásquez, por exemplo, a princípio não se trata de uma proposta ruim, pode ser uma boa tarefa. A criança pode aprender sobre Velásquez, sobre cores, esquemas de desenhar figuras humanas, pode estar em jogo muita aprendizagem, O objetivo é propor um conjunto de conteúdos e acompanhar as aprendizagens, para verificar o que as crianças aprenderam. Não se pode perder isso de vista.
Mas quando isso é feito, precisa convergir para as criações infantis, para que os alunos possam enriquecer seus saberes quando se propõem a fazer trabalhos em arte, quando almejam uma ação, quando decidem o que querem fazer. Podem, por exemplo, escolher por si mesmos uma imagem de onde partir.
É necessário que esse processo de aquisição de linguagem por intermédio das informações da cultura seja conhecido, mas que se conheça também como a criança trabalha, opera, sente, o que deseja, como resolve as próprias demandas. Isso tem que fazer sentido dentro daquilo que ela está fazendo, vivendo, ou seja, dentro do caminho que está percorrendo.
Qual é o papel da intervenção na criação infantil?
O que se observa em muitos casos é que não existe um bloqueio artístico gerado pela escola, como se acreditou na escola renovada. O que havia era um desconhecimento pedagógico das práticas de intervenção, principalmente no ensino fundamental. As crianças eram abandonadas à própria sorte, por isso não aprendiam e não se desenvolviam em arte. Avançamos muito. Várias propostas colocadas pelo professor não são apenas prazerosas, mas também trabalhosas e criam obstáculos que implicam aprendizagens importantes para a vida.
Há que se pensar que a sala de aula é uma microcomunidade de crianças que pensam e produzem arte. O professor deve colocá-las num contexto que dê acesso às fontes de informação, seja indo a espaços expositivos e ateliês, seja levando a obra do artista ou reproduções para a escola. Esse tipo de iniciativa é muito importante para a criança, porque ela começa imediatamente a estabelecer uma relação com o que faz e a produção do mundo adulto. E isso tem que estar a serviço da criação de suas próprias imagens.
É importante documentar os percursos individuais, organizar uma seqüência, datar a produção, retomar de tempos em tempos, rever antigas produções com as crianças, ver também o que o grupo produz para que ela possa progressivamente se perceber como sujeito de uma ação, sujeito que tem desejo, faz escolhas, tem o trabalho lido por outros, tem liberdade.
O que um professor precisa saber para trabalhar com a arte? Precisa ser um especialista da área?
O fato de o professor não produzir arte é problemático. Ele precisa ter uma cultura em história da arte, e também experiência pessoal em arte. É fundamental, ainda, conhecer como a criança aprende e se desenvolve nas atividades artísticas, ou seja, conhecer a gênese do desenvolvimento, dessas transformações que ocorrem tanto na produção como na compreensão das imagens, já que a produção de imagens não é desvinculada do mundo imagético.
As imagens que a criança produz não vêm do nada. Aqui no Brasil Mário de Andrade documentou desenhos infantis desde 1914. Eles estão no IEB (USP), e pode-se ver e analisar essa produção.Você constata que a cultura, a visualidade de uma época,marca a produção artística da infância. Já se podia fazer uma pequena história da arte na infância brasileira, documentando essas produções. O professor precisaria conhecer constâncias desta gênese tanto na produção como na leitura das imagens, a relação entre leitura e produção.
Que tipo de experiência estética é realmente transformadora na formação do professor?
Viver a arte. A prática de oficina associada ao estudo sobre arte e aprendizagem em arte. A experiência transformadora é aquela que vai associar a vivência cultural à ação criadora. E para o professor é interessante que o saber conceitual esteja articulado a uma experiência prática. Por isso propomos agora o que temos chamado de viver arte. O professor, em sua formação, precisa ter uma vivência em arte; mas não é a vivência cultural apenas, é preciso que essa vivência tenha como objetivo sua criação didática. Aprender para saber planejar e orientar uma aula de história da arte, uma oficina de criação, uma visita a uma exposição, para que as coisas fiquem realmente interligadas.
Eu concordo com Perrenoud2 quando diz o professor não precisa ser uma pessoa erudita. Mas requer-se dele uma certa cultura nas áreas de conhecimento, associada aos saberes da transposição didática. Essa associação é o fato mais importante.
Na hora em que o professor cria seus próprios trabalhos percebe imediatamente o que está em jogo na criação e isso opera uma transformação fundamental em suas aulas. É o que o sujeito internaliza da ação, incorporada nele na forma de um sujeito que sabe do que está falando, o que está fazendo, o que está ensinando, porque pôde ter essa experiência significativa na sua ação.
Então ele passa a perceber qual é o lugar da criação em arte. Não é um lugar qualquer, não se dá de uma forma qualquer. Existe ordem, variedade, acaso e projeto.
Por que a vivência de criação é o ponto mais importante da formação do professor?
O professor precisa ter uma vivência de criação em arte para saber o que é desenhar, pintar etc. Se a criança fala que não sabe desenhar e você também não sabe, fica difícil lidar com essa questão. Na realidade ela quer que você ensine e explicita isso a seu modo. Temos que saber ensinar, e não só dar o material e deixar fazer. Ensinar é orientar momentos práticos de atividade, tendo em conta que a questão técnica, de como funcionam os materiais, articula-se às questões da própria linguagem.
Ao fazer um objeto de barro, por exemplo, a criança pode querer colar pedaços de sua peça com palito. Isso não funciona, quando secar vai se separar e pode quebrar. Se o professor não sabe o que acontece com esse material, não consegue orientar, Isso pode deixar a criança frustrada com o resultado final. São coisas importantes. A técnica é apresentada pelo professor e recriada pela criança. O professor precisa dominar esses saberes para poder ensinar. Ele deve incentivar a experimentação e a investigação do aluno,mas tem um campo que é da informação, da adequação, um saber construído por quem fez arte. Ao produzir, o professor encontra questões que as crianças também se colocam: o que fazer, com que material, como usá-lo adequadamente, que cor escolher, quanto trabalho uma idéia pode dar. Será inevitável que, tendo vivido isso, ele não reproduza obras mecânicas com as crianças. Isso vai dar um sentido mais profundo para o seu trabalho.
1Professora da Faculdade de Educação da USP, coordenadora do serviço educativo do Centro Cultural Maria Antônia
2 Philippe Perrenoud é suíço, sociólogo, professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade de Genebra, autor de vários títulos importantes na área de formação de professores.
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