O universo científico está intrinsecamente relacionado ao lúdico. Ambos são espaços de possibilidades, investigação, autoria, autonomia, construção de conhecimento e subjetividade. É cada vez mais urgente que a escola de educação infantil assuma uma concepção de ensino que não separe o raciocínio da imaginação. É esse o objetivo do projeto homem das cavernas: uma viagem no tempo
Encarar o estudo na escola de Educação Infantil por meio de uma perspectiva lúdica do conhecimento implica não apenas fazer associações dos projetos de pesquisa com brincadeiras, como também propor situações nas quais o aprendizado seja uma aventura de conhecimento em consonância com a forma de pensar das crianças e seu pensamento sincrético que mescla fantasia e realidade.
No projeto Homem das Cavernas: Uma Viagem no Tempo, do qual tive a oportunidade de participar enquanto coordenadora, dialogando com a professora Andréa Campidelli1, pude observar com atenção seu grupo de “pesquisadores mirins”, entre 4 e 5 anos. Foi possível investigar muitas situações de aprendizagem que realmente fazem sentido na Educação Infantil, as quais pretendo aqui partilhar com o leitor.
No planejamento, a professora e eu pensamos que uma forma interessante de desenvolver o projeto seria conhecer, informar-se para produzir uma fita de vídeo que explicitasse alguns conhecimentos adquiridos sobre os povos das cavernas. Sabemos que as crianças dessa faixa etária demonstram, quase sempre, por meio do jogo simbólico, o que entendem daquilo que conhecem, sejam as relações sociais e/ou os mais diferentes aspectos culturais.
Portanto, oferecer a possibilidade de brincar de homem das cavernas, assim como ajudar a construir o roteiro do filme retratando o tempo estudado, com cenários, explicitando as relações sociais, as cenas cotidianas e produtos culturais, pareceu-nos uma ótima estratégia.
O objetivo era que as crianças se apropriassem dos conhecimentos de forma bastante participativa, elaborando as aprendizagens de forma dinâmica, observando imagens, discutindo com o grupo, alimentando suas brincadeiras a partir do estudo, precisando, sobretudo, pesquisar para aprender e obter informações que seriam utilizadas com uma finalidade muito clara.
“Vamos fazer fogo?”
Era assim que as crianças participantes do projeto, freqüentemente nos horários de pátio, convidavam umas as outras para brincar. A brincadeira consistia em selecionar gravetos pelo pátio e, como assistiram no filme Guerra do Fogo, que retrata o período pré-histórico, friccioná-los na tentativa de produzir o conhecimento que revolucionou a história da humanidade.
O interessante quando se pensa numa abordagem lúdica é que, além de alimentar o faz-de-conta com a produção de outros contextos para sua realização, existe a possibilidade de que a criança possa, na repetição e usufruto da brincadeira, entrar em contato com o que estuda formalmente, numa perspectiva informal. Integrar aspectos formais com não formais é a saída para promover espaços educativos adequados à infância.
“O filme vai ter que ser mudo!”
Quando as crianças foram decidir juntamente com a professora como seria o filme, tiveram de imediato um problema a resolver, pois não poderiam usar a fala, já que esta não era a forma de comunicação usual na época. Se a informação de que naquele tempo não se usava a fala tal como hoje conhecemos fosse oferecida apenas de forma transmissiva, corria-se o risco da não apropriação desse conhecimento.
Mas como tinham que produzir um vídeo a partir de um “problema” a resolver (filmar sem usar a linguagem), a situação de aprendizagem foi muito diferente do jeito tradicional de trabalhar os conteúdos na escola. O problema em questão colocou as crianças para pensar, refletir, se colocar no lugar dos povos primitivos. A relação que estabeleceram com o conhecimento foi mais complexa e elaborada e passou a ocupar o imaginário das crianças, que passaram a crivar os adultos de questões:
“Como será que eles se entendiam?”
“E quando queriam algo, como faziam?”
“Se precisassem contar pra alguém um acontecimento, como seria?”
“Como pediriam socorro?”
“Como os povos que vieram depois dos homens das cavernas aprenderam a falar, se antes ninguém falava?”
Enfim, começaram a ter questões para pensar acionando uma profusão de idéias inter-relacionadas, na tentativa de compreender a natureza dos fenômenos. Propusemos um jogo que consistia em ficar uma parte do dia se comunicando sem falar. Depois discutimos a experiência vivida, as dificuldades que enfrentaram.
Ao fazer o filme, puderam entender melhor outras formas de comunicação, e se conscientizaram dos benefícios desta construção cultural que é a língua que se fala. Afinal, estudar a história de um povo serve para que tenhamos a noção de processo, a compreensão de que o mundo nem sempre foi como este que conhecemos.
“Nas cavernas não tinha baldinho”
Esta fala de uma criança do grupo surgiu no momento de arrumar o espaço para a filmagem. Preocupadas em construir um cenário condizente com o período histórico estudado, as crianças se ocuparam com cada detalhe: cobriram o portão de ferro, recolheram os objetos estranhos à filmagem e tiveram, sobretudo, um cuidado especial com o próprio figurino, que obviamente não poderia ser o uniforme escolar!
Tudo isso só teve sentido porque as crianças pesquisavam muito nos livros e todo o empenho das descobertas tinha um uso social que era a produção da fita de vídeo. O conhecimento adquirido servia para confeccionarem cenários, figurinos, objetos produzidos na época, tais como machadinhas, pedras lascadas e outras curiosidades que iam descobrindo.
“Mas eles nem sabiam escrever!”
Interessante a constatação de uma criança, quando a professora pediu que registrassem seus respectivos nomes em pequenas placas de pedra mármore que serviam como suporte para pinturas rupestres feitas pelo grupo. Imediatamente uma criança lembrou que seria incoerente escreverem na pedra que comporia a exposição para os pais realizada na sala para retrarar o período estudado. “Como escrever se os homens da caverna só desenhavam?”
Esta noção de tempo histórico, proporcionada pelo conhecimento em ação da criança (a necessidade de retratar de forma mais fiel possível um momento histórico), fez com que ela redobrasse sua atenção e percebesse a incoerência histórica de escrever numa pedra que representa o período pré-histórico e, portanto, anterior ao aparecimento da escrita.
A professora, orgulhosa do conhecimento de seu aluno, propõe então que coloquem os nomes em plaquetas separadas, tal como observaram em um museu de arqueologia visitado. O conhecimento ganhou sentido para as crianças quando, além de conhecerem e apreciarem as pinturas rupestres por meio de slides, filmes e livros, puderam também vivenciar uma situação semelhante à dos povos primitivos, fazendo inclusive tintas com materiais orgânicos, tais como carvão, diferentes tipos de terras e corantes naturais.
“E os Flintstones eram das cavernas?”
Tenho percebido, pelos trabalhos que já realizei com crianças e naqueles nos quais oriento professores, que é sempre muito instigante em projetos deste tipo mesclar textos científicos, literários e filmes que dizem respeito ao assunto. O universo literário encanta as crianças justamente pela abundância de conexões subjetivas que proporciona. É uma linguagem muito próxima delas.
Neste sentido, ler histórias que falam do assunto estudado, mesmo que ficcionais, torna-se interessante, pois tem a ver com o jeito como a criança concebe o mundo. É claro que se pode aproveitar também para realizar uma “análise crítica”, identificando o que tem e o que não tem a ver com a História de fato.
Este elo entre a subjetividade do universo literário e a objetividade do conhecimento científico pode, num primeiro momento, causar espanto aos educadores por parecer que se está fugindo do campo da Ciência. Entretanto, ao dar a oportunidade do estabelecimento de uma ponte entre os conceitos espontâneos das crianças e os conceitos científicos, o educador oferece a si mesmo a chance de conhecer melhor seus alunos.
No caso do estudo do projeto em questão, as crianças puderam conversar muito com a professora a respeito do embasamento ou não na realidade de histórias e vídeos assistidos, tais como os desenhos animados Flintstones e Capitão Caverna, o que não deixou de ser uma forma de perceberem as influências culturais contemporâneas na produção da mídia.
O lúdico como motor do aprendizado
Colocar em prática uma abordagem lúdica para o conteúdo Natureza e Sociedade, que diz respeito à organização dos agrupamentos, seu modo de ser, viver e trabalhar3, nos dá a perspectiva de vislumbrar uma forma de considerar os espaços para brincar integrados e articulados com os espaços de aprendizagem. Quando isto ocorre de fato, acontece uma comunicação eficaz entre o conhecimento científico e a natureza lúdica de pensar, agir e sentir própria da criança.
As crianças estão sempre inaugurando experiências acerca do mundo e encarando tais aprendizados com muita curiosidade e dedicação. Formulam constantemente hipóteses, fruto de suas observações, explorações e contato com o ambiente que as cerca. Quando têm condições de compartilhar tais aprendizados nas brincadeiras, ocorre uma integração muito maior com o que estão aprendendo. A socialização das aprendizagens nestas situações se mostra muito eficaz e até mesmo contribui para uma maior circulação do conhecimento em diferentes momentos e situações da vida das crianças.
(Adriana Klisys, formadora no Instituto Avisa Lá e coordenadora da Caleidoscópio Brincadeira e Arte, em São Paulo)
1Professora da Escola Criarte, em São Paulo.
2Henri Wallon (1872–1962), educador francês.
3Organização dos Grupos e seu modo de ser, viver e trabalhar:
- Participação em atividades que envolvam histórias, brincadeiras, jogos e canções que digam respeito às tradições culturais de sua comunidade e de outras;
- Conhecimento de modos de ser, viver e trabalhar de alguns grupos sociais do presente e do passado;
- Identificação de alguns papéis sociais existentes em seus grupos de convívio, dentro e fora da instituição;
- Valorização do patrimônio cultural do seu grupo social e interesse por conhecer diferentes formas de expressão cultural.
(Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. MEC.)
Nem todo homem pré-histórico habitava as cavernas
É bom que se diga que muitos grupos humanos desse período da História não habitavam só cavernas. Nas regiões mais frias da terra, além de morarem em cavernas, os homens construíam cabanas de peles e ossos.
Em países tropicais há vestígios de locais habitados pelos pré-históricos em beiras de lagoas e praias, chamados de sambaquis. Mas não há dúvidas de que os homens pré-históricos se utilizavam das cavernas como abrigo, moradia ou local para os seus rituais. Essa prática pode ser comprovada em vários locais do Brasil e do mundo pelos vestígios e, principalmente, pela arte rupestre encontrada. As cavernas são excelentes locais para a preservação desse passado remoto.
Na serra da Capivara, no Piauí, há 500 sítios arqueológicos com mais de 360 painéis de pintura rupestre. Algumas com mais de 12 mil anos, outras mais “recentes” com 3,5 mil anos. Vale a pena conferir no site: www.icomos.org.br/patrimonio_brasileiro.
O Pensamento Sincrético
De acordo com Wallon2, o pensamento sincrético é o da criança no estágio denominado por ele de Personalista (3 a 6 anos), momento do desenvolvimento infantil que apresenta uma orientação centrípeta e subjetiva e uma preponderância das atividades pessoais de construção do Eu.
Nesta fase, a criança ainda não pode delimitar suficientemente a sua própria personalidade, nem apropriar-se das categorias usuais através das quais distribuímos os dados e os vários aspectos da experiência. Em função disso, seu pensamento é regido mais pelas leis afetivas do que pelas leis da lógica.
O Sincretismo é um estágio necessário para se chegar à análise e à síntese, duas operações complementares, já que a análise não é possível sem um todo bem definido, e não há síntese sem elementos dissociados e depois combinados. O sincretismo da criança não acompanha este duplo movimento de dissociação e recomposição.
Porém, isto não torna o pensamento infantil deste nível desorganizado. Pelo contrário, ele tem a sua estrutura própria e, segundo Wallon, já é operatório, apesar das suas operações não serem ainda lógicas. Em função disso é que, muitas vezes, as crianças estabelecem relações entre objetos que só têm sentido para elas e que os adultos acham engraçadas ou absurdas.
Fonte: O Sincretismo do Pensamento da Criança à Luz das Teorias Walloniana e Vygotskyana, de Regina Scarpa.
Jogo Simbólico
Os jogos simbólicos caracterizam-se pela assimilação deformante (Piaget, 1945). Deformante porque nessa situação a realidade (social, física, etc.) é assimilada por analogia, como a criança pode ou deseja. Isto é, os significados que ela atribui aos conteúdos de suas ações, quando joga, são deformações – maiores ou menores – dos significados correspondentes na vida social ou física.
Graças a isso, pode compreender as brincadeiras, afetiva ou cognitivamente, segundo os limites de seu sistema cognitivo. As fantasias ou mitos, que a criança inventa ou que escuta tantas vezes e que tanto a encantam, são igualmente expressões dessa assimilação deformante. E têm, além disso, uma função explicativa: fantasiando ou mitificando, a criança pode compreender, a seu modo, os temas presentes nessas fantasias. Isso favorece a integração da criança a um mundo social cada vez mais complexo (adaptação à escola, hábitos de higiene e alimentação, etc).
Em outras palavras, os significados das brincadeiras podem ser, por intuição, inventados pela criança. Essas construções realizadas no contexto dos jogos simbólicos e as regularidades adquiridas nos jogos de exercício serão fontes das futuras operações mentais.
Qual é a importância da assimilação deformante na construção do conhecimento na escola? De um ponto de vista funcional, a criança – assimilando o mundo como pode ou deseja, criando analogias, fazendo invenções, mitificando – torna-se produtora de linguagens, criadora de convenções. Graças a essas construções simbólicas, pode submeter-se às regras de funcionamento de sua casa ou escola.
Esta, como sabemos, costuma ensinar os conteúdos das matérias por um conjunto de signos, convenções, regras ou leis. Mais que isso, como as analogias que possibilitam os jogos simbólicos são convenções motivadas, ou seja, como nelas o representado relaciona-se com o representante, a criança pode firmar um vínculo entre objetos ou acontecimentos e suas possíveis representações.
Assim poderá, talvez, na sua escola primária, compreender e utilizar convenções, que são signos arbitrários, isto é, cuja relação representante- representado não é tão próxima como nos jogos simbólicos. De um ponto de vista estrutural, os jogos simbólicos têm, igualmente, uma importância capital para a produção do conhecimento na escola. O sentido e a necessidade de teoria (do esforço humano de explicar as coisas, de dar respostas, ainda que provisórias, às perguntas que nos faz o jogo da vida) formulam-se e ganham contexto nos jogos simbólicos. Em outras palavras, as fantasias, as mitificações, os modos deformantes de pensar ou inventar a realidade são uma espécie de prelúdio para futuras teorizações das crianças na escola primária e mesmo dos futuros cientistas.
Fonte: “Os Jogos e sua Importância na Escola”, Cap. VI, por Lino de Macedo. Em 4 Cores, Senha e Dominó, de Lino de Macedo, Ana Lúcia S. Petty, Norimar Christie Passos. Casa do Psicólogo.
Para saber mais
- A Arte Rupestre no Brasil, de Madu Gaspar. Ed. Jorge Zahar. Tel.: (21) 2108-0808
- A Escalada do Homem, de J.B. Bronowski. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677
- O Mundo Assombrado pelos Demônios: A Ciência Vista como uma Vela no Escuro, de Carl Sagan. Ed. Companhia das Letras. Tel.: (11) 3707-3501
- Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. MEC
- Pensamento e Linguagem, de Vygotsky. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677
- Revista avisa lá, edição no 12, outubro/02
- Revista Criança, edição no 35, dezembro/01. MEC
- Revista Pátio, ano 1, edição no 3, novembro/97. Ed. Artmed. Tel.: 0800-7033444
- Caleidoscópio Brincadeira e Arte Site: www.caleido.com.br. E-mail. caleido@caleido.com.br