O que trazemos nas próximas páginas é um registro interessante e emocionado de um trabalho comprometido com a necessidade de apresentar o mundo e a cultura para as crianças pequenas. Nele se percebe como esses conhecimentos são alimentos poderosos para a inteligência e a imaginação dos pequenos.Veja o que é possível fazer com esta faixa etária nas delicadas palavras de uma professora
Escrever sobre um grupo de 2 anos é poder compartilhar um pequeno pedaço de muitas conquistas e avanços. Mas a maior fatia saboreamos nós, professores, no decorrer de cada dia.
Mesmo assim, espero conseguir descrever, pelo menos um pouco, alguns dos momentos, mostrando como, em um semestre, apresentei histórias, poesias, conhecimentos sobre a natureza, música e dança para crianças tão pequenas. O texto a seguir faz parte do relatório que enviei aos pais do grupo de 2 a 3 anos, da escola Logos, no segundo semestre de 2000.
Todo dia é dia de história
As rodas de leitura na biblioteca, que acontecem desde o início do ano, estão cada vez mais interessantes. No primeiro semestre eu exercia o papel de tradutora simultânea. Quando Laura, nossa bibliotecária, não entendia o que uma criança dizia, ia logo pedindo para apertar a tecla SAP, que no caso era eu.
Mas hoje não precisamos tanto desse recurso: contamos com um grupo mais falante dentro e fora da sala de aula. Agora, em nossas rodas de conversa de quinta-feira, dia em que vamos à biblioteca, conversarmos sobre o nosso roteiro: falamos um pouco sobre o livro que levamos para casa na semana anterior e pensamos nos livros que vamos solicitar à Laura.
Na biblioteca as crianças já falam com mais desenvoltura e selecionam melhor os livros que procuram nas prateleiras. Quase sempre pedem nossa opinião, mas às vezes estão tão decididas que não há quem consiga fazê-las mudar de idéia.Aceitam as indicações da Laura na roda de leitura, mas depois elas próprias procuram o que desejam. Lembro-me de que Guilherme, um dia pediu um livro de príncipe, mas Laura não conseguia encontrar nada que lhe agradasse.
Então ele disse:
– Você tem o da espada que sai da terra?
Bingo! Descobrimos: tratava-se de A espada era lei, livro que não sairia de suas mãos por um bom período.
Estão cada vez mais apaixonados pelos livros e por suas histórias. Uma das primeiras coisas que fazem quando chegam à biblioteca, é apresentar o livro que levaram para casa aos colegas.
Nos grupos maiores, essa atividade funciona como uma roda de indicação de leitura e, em nosso grupo, as crianças recontam as histórias lidas em casa. Aos poucos o grupo vai se apropriando da linguagem desse portador textual:
– Era uma vez uma Pocahontas, era uma vez um pai de uma Pocahontas – dizia Carolina ao folhear um livro.
– Era uma vez e acabou a história! – disse apressado João Campos.
Como estão mais afiados no reconto, acabam transportando essa novidade para a sala de aula: quando termino a leitura de uma história, uma das crianças já diz,“agora é minha vez”, e começa a contar. Ficam um bom tempo se deliciando com as histórias. Nunca se contentam com uma só: esperam as que selecionei e depois fazem seus pedidos, chegando a ouvir às vezes mais de três histórias.
Um outro avanço é o cuidado com os livros. Desde o primeiro semestre, sempre que uma criança rasgava algum, consertávamos em roda. Aos poucos o grupo foi tomando maior cuidado ao folheá-los e hoje, quando encontram uma das páginas rasgadas, vão logo perguntando quem foi e procurando durex para consertar. E quando, por acidente, uma delas rasga um dos livros, ela própria fala:
– E agora! Vamo colá, Lucila!
Poesia é para brincar
Nossa rotina já estava estruturada, e o grupo foi pedindo mais: experimentar ingredientes de uma nova receita, identificar seu nome no cartão de chamada, contar os dias para a festa de algum colega, ajudar a marcar a rotina do dia etc. Além dessas atividades permanentes, desenvolvemos seqüências de atividades que possibilitaram a ampliação do universo cultural do grupo e maior autonomia das crianças. Um exemplo foi o trabalho com as poesias.
Na verdade, essa seqüência teve início já no finalzinho do primeiro semestre, quando começamos a compartilhar os livros de poesias utilizados pelo grupo 2 e 3 da manhã.
Meu interesse, e creio que o de toda professora que trabalha e aprende cada vez mais com as crianças menores, era simplesmente possibilitar o contato com um outro texto além das histórias. Pretendia demonstrar-lhes meu próprio fascínio pela poesia, para que tivessem prazer em ouvir, conhecer e usufruir desse gênero.
Selecionei poesias de Vinicius de Moraes, José Paulo Paes, Sérgio Caparelli, Almir Correa e Paulo Leminski. Comecei lendo as poesias do livro Poemas para Brincar, de José Paulo Paes.
No segundo semestre levei para a roda o livro Poemas Malandrinhos, de Almir Correa, e li para o grupo a poesia que hoje é uma de suas prediletas, a que conta o que acontece com uma sandalinha cor – de – rosa que pisou no cocô.
A primeira leitura foi coberta de risos, pois esse é um dos assuntos de grande interesse para os pequenos. Aos poucos ia acrescentando novos cartazes ao nosso varal de poesias, e, quando os levava à roda, o grupo já ia se antecipando e recitando a seu modo cada poesia.
Mais interessante do que saber de cor, ou um número enorme de poemas,
era a possibilidade de brincar com as palavras, de dançar ao som do tic-tac do relógio do poema, ou de muitas vezes imitar a professora engrossando a voz ou colocando a mão na cintura.
Fomos gravando alguns momentos de nossos recitais, e ouvíamos em outras situações de roda. As crianças faziam um esforço para recitar todo o poema, ou narrar algo que a poesia ou o nome do autor evocava.
A leitura de poesias pelo professor é muito importante: as crianças atuam como ouvintes, numa escuta que nunca é passiva, pois enquanto escutam dialogam internamente com quem lê, além de perceberem como funcionam os textos convencionais.
Natureza a gente vê de perto
Temos curtido bastante a companhia das duas mais novas integrantes da sala: nossas tartarugas macho e fêmea. Afinal, não conseguimos chegar a um veredicto sobre o nome delas. O máximo que conseguimos, no dia em que chegamos da loja de bichos, foi um “nome” provisório. Quando perguntei como poderíamos chamá-las, Maria respondeu:
– Tartaruga, vem aqui.
Eu tinha uma enorme preocupação em abordar o assunto fazendo perguntas que levassem o grupo a pensar, pois não tinha respostas prontas para elas.
Isso possibilitou às crianças a descoberta de fontes de informações. Na sala tínhamos livros e recursos visuais separados numa caixa em que guardávamos todos os materiais sobre as tartarugas.
Durante um período, nossas rodas sobre o assunto perderam a vivacidade. Fui percebendo que, com crianças pequenas, o professor planeja perguntas mas acaba ele mesmo tendo que respondê-las. Mas o exercício de perguntar, aguardar possíveis respostas e depois informar é importante, porque funciona como um referencial para os pequenos.
Tínhamos um aquário para as tartarugas, do qual nos aproximávamos apenas na hora de alimentá-las. Descobri que ele poderia ter outros usos, como fonte direta de pesquisa. Então comecei a carregá-lo para as rodas de conversa, ou a rodeá-lo com as crianças, quando queria conversar sobre as tartarugas.
Envolvi as crianças na lavagem do aquário e na troca de água. Em outros momentos, propunha comparações entre os hábitos das nossas tartarugas e os da Bolota, a tartaruga terrestre do grupo 3. Fomos descobrindo algumas características comuns e outras bem distintas, como observou Leonardo:
– Essa tartaruga é marrom e essa é verde.
O contato com as tartarugas – proporcionado por meio de atividades que envolveram observações, troca de idéias entre as crianças, atividades de cuidado com nossa ajuda – possibilitou a elas aprenderem algumas noções básicas necessárias à segurança desses animais, como não bater no vidro, não colocar danoninho do lanche lá dentro nem apertá-las quando estivéssemos com elas nas mãos, coisas que aconteceram algumas vezes. Além de lavar as mãos depois do contato com elas.
Música e dança desde cedo
A seqüência de atividades a partir das produções musicais de Capiba, compositor pernambucano considerado o eterno mestre do frevo, partiu de um desejo meu de resgatar raízes e compartilhar com um grupo de crianças de 2 e 3 anos, fascinado por música, essa importante produção da cultura nordestina.
Com certeza, se Capiba ainda estivesse vivo, se sentiria muito honrado em ver crianças tão pequenas encantadas com sua história ou a dançar ao som de seus frevos. Lembro-me ainda da primeira vez que apresentei uma de suas músicas; Guilherme assim que viu a foto do autor comentou, entre gargalhadas:
– Que engraçado! Parece um velhinho, igual o vovô.
Após ouvir a canção, propus ao grupo um pequeno baile em que nos divertimos muito. As rodas seguintes foram se tornando sinônimo de dança:
– Vamo dançá, vamo dançá! – propunha Carol assim que o som era ligado.
Sempre que trazia algo novo sobre Capiba, o grupo relembrava algo que eu tinha dito sobre ele numa roda anterior:
– O Capiba morreu bem velhinho? – Maria perguntava.
– O Capiba mora lá longe, em Pernambuco – dizia Léo.
Às vezes, propositadamente, ligava o som e não dizia nada. Então, João Campos me perguntava:
– Essa é do Capiba, não é Lu ?
– É do Capiba! – afirmava João Pedro, conhecedor do assunto.
Aos poucos, fomos alargando as possibilidades, e passamos a falar sobre o lugar em que Capiba nasceu, das danças que as pessoas costumam dançar lá, das pessoas que cantavam suas músicas. Como fazíamos bailes freqüentes, começamos a pensar em algo que pudesse permear essas brincadeiras. Então, começamos a confeccionar roupas para brincar.
Primeiro a roupa de Maracatu, ou Macalatu, como dizia Clara. Com a colaboração de Flávio e Helena, pais de Maria, as crianças puderam se deliciar com uma sessão de slides sobre o Maracatu, ao som do CD Espetáculos Populares de Pernambuco.
Puderam também vivenciar uma roda de cantigas com Izabel, avó do João Pedro e Tereza, mãe de Guilherme. É uma delícia ouvi-los num pequeno pot-pourri de canções, vê-los falar de Capiba como se fala de um amigo íntimo, ou falando de produções culturais com a mesma naturalidade com que falam dos desenhos que assistem diariamente na televisão.
Acredito que, à medida que possibilitamos conhecimentos relativos à cultura, as crianças vão tendo oportunidade de construir e reconstruir noções que favorecem mudanças no seu modo de compreender o mundo, e podem fazê-lo de uma maneira prazerosa.
Espero ter conseguido relatar um pouco do que vivenciei junto a esse grupo no decorrer de um semestre. Muitas coisas deixei passar desapercebidas no corre-corre dos dias, outras infelizmente só meus olhos puderam captar e as levarei para sempre na memória. Lembranças de um grupo maravilhoso, que cresceu e me ensinou muito, principalmente a olhar para uma mesma coisa como se fosse sempre a primeira vez.
(Lucila Silva de Almeida)