Como planejar sem conhecer as crianças? Esse foi o problema encontrado pela professora Ana Carolina no seu primeiro dia de trabalho. Ela considerou a faixa etária e pensou em propostas simples, com o objetivo de conhecer as crianças reais, sujeitos da relação de ensino e de aprendizagem. Partindo desse ponto de vista aproveitou os projetos que vinha desenvolvendo.
Aqui ela nos conta o que aconteceu nas páginas de seu diário de campo; nos links, trechos do livro O diálogo entre o ensino e a aprendizagem, de Telma Weisz
O mês de julho foi intenso em termos do trabalho na creche. Aconteceram tantas coisas em tão pouco tempo! Desde a minha primeira intervenção na classe do jardim, minha maior preocupação foi pensar e realizar atividades de escrita – dentro do projeto que já vinha sendo desenvolvido pela professora da sala –, que oferecessem a possibilidade de as crianças registrarem o que haviam estudado,
sistematizando seus conhecimentos sobre o assunto. Foi com esse objetivo em mente que eu preparei as atividades para o primeiro encontro com elas: roda de conversa sobre o planetário; desenho com escrita de legenda sobre algum aspecto do planetário; roda de história.
Assim que iniciei a primeira roda, percebi uma coisa: havia me
preparado para conversar com outras crianças, que não aquelas.
Talvez eu estivesse pensando nos meus alunos do ano anterior, da
outra escola. Foi bem diferente! Difícil de manter um assunto só, sem
dispersar ou resvalar para algo muito pessoal sem uma aparente relação com o tema em questão. É claro que houve momentos interessantes, sempre puxados por relatos pessoais, assim:
Profa.: – Eu queria saber, afinal de contas, é a Lua que muda de
tamanho ou a gente é que vê diferente?
Cri. 1: – Sabe, na minha casa choveu e eu não vi a Lua!
Profa.: – Não dá para ver a Lua sempre?
Cri. 2: – Na minha casa eu vi!
Todos: – Eu também! Eu também!
Profa.: – E por que às vezes a gente vê a Lua e às vezes não consegue? Por que ela fica diferente?
Cri 3: – Ela fica pequena e grande.
Na maioria das vezes, percebi que a desorganização e as falas dissonantes reinavam…Não sei, eu me senti meio incompetente, sabe?
Será que eu havia desaprendido a fazer roda? Havia esquecido?
Estava fria ou enferrujada?
Aos poucos eu pude deixar minha expectativa de lado e olhar para
aquelas crianças. Foi curioso, eu me lembrei muito das rodas que fazia com os grupos de crianças de menor idade com os quais trabalhei, quando havia sempre um apelo para assuntos de ordem pessoal para buscar neles um gancho para a conversa. A minha avaliação dessa atividade foi a de que as crianças dessa classe precisavam ter mais oportunidades de conversar em grupo! E quanto mais elas conversassem mais saberiam aproveitar e aprender na roda!
Então eu pensei: o que um professor pode querer numa roda de conversa? O que ele quer que as crianças aprendam? As crianças devem
falar sobre o que sabem, discutir e levantar hipóteses sobre os assuntos – o professor deve ouvir e não checar conhecimento –, pois quanto mais conversarem mais poderão pensar diferente, sabendo expressar o que pensam. Isso deve ser uma parte do trabalho com a turma.
Sabendo melhor o que fazer no eixo da linguagem oral, observei
melhor a escrita. A próxima atividade era a produção de legenda para
as fotos do planetário, que elas tinham visitado recentemente com
outra professora. Antes de iniciarmos, as crianças haviam escolhido
algum aspecto que gostaram ou que lhes chamara mais a atenção.
Depois de discutido com elas o conteúdo que seria registrado,
retomei o que era uma legenda, quem é que sabia, se lembrava o que
era. Vi que muitas sabiam:
– Tem no livro.
– Serve para contar.
– É história?
– É.
– Não! Não é. É bem pouquinho.
Partimos para a escrita. Escrita e leitura. Havia o objetivo de fazer
as crianças pensarem sobre aquele tipo de texto, é claro. Bem, e o que eu pude notar? Muitas crianças daquela sala não faziam claramente a relação do texto com a escrita, ou seja, usavam letras, sabiam que necessitavam de várias letras para escrever, mas o que estavam escrevendo? Não sabiam! Na hora de ler, soletravam as letras. Desse modo:
– O que você escreveu aqui?
– (A O T F I L) A, o, tê, efe, i, ele.
– Mas o que você quis dizer com essas letras? O que elas dizem?
– …
– Em qual legenda você pensou?
– Não sei.
Não sei se houve uma consigna mal dada por mim, mas tive a
impressão de que as crianças estavam muito mais preocupadas com
quais letras usar do que com o texto como forma de comunicar algo.
É claro que, no meio delas, havia quem ditasse oralmente o texto e
lesse uma legenda para as professoras. De qualquer forma, foi um
aspecto para incluir no planejamento.
Com relação à escrita propriamente dita, notei que as crianças, em
sua maioria, estavam numa fase pré-silábica, mas poucas se arriscavam
a ler. Muitas usavam letras do próprio nome, e duas delas não admitiam escrever como sabiam, buscando um cartaz para copiar palavras como Sol e Lua.
Pensei, então: o que deveria estar em jogo naquela atividade, o que
significava escrever para aquelas crianças? Sabemos que a escrita tem
uma função, sempre serve para alguma coisa e para alguém, é uma
forma de comunicação. Não era essa a preocupação daquelas crianças
que apenas soletravam as letras. Para escrever um texto, é preciso conhecer o código alfabético mas, antes disso, conhecer a linguagem
escrita, nos seus usos e funções, saber como ela funciona na nossa vida.
Penso que deveria haver, para esta turma, formas de discutir os textos, atividades que envolvam objetivos de leitura. Ler o que algumas crianças escrevem e pedir que leiam as legendas para conversar sobre elas poderia ser bom. A escrita precisaria também circular na sala, como produto do projeto. Desde a minha primeira visita, essa foi uma questão que me chamou a atenção. Já deu para ver o que há para fazer.
Pode ser que eu esteja sendo diretiva demais, já pensando logo
em uma fórmula do que tem que fazer. Mas não é isso. Eu sei que vou
continuar observando e pensando… o fato é que preciso ficar atenta
quanto às propostas que faço às crianças e quanto ao que elas estão
fazendo, falando e pensando, para então decidir o que é que eu
tenho que fazer com esta turma.
(Ana Carolina Carvalho)
Dica de leitura
Se você não sabe, ao certo, o que sabe uma criança que parece não
saber nada, se tem dúvidas sobre quando se deve ou não corrigir um aluno e quer saber como fazer o conhecimento da criança avançar, não pode deixar de ler O diálogo entre o ensino e a aprendizagem, da coleção
Palavra de Professor, escrito por Telma Weisz em parceria com Ana
Sanchez. Reflexões de professores e crianças, interpretação das hipóteses formuladas pelas crianças no campo da linguagem escrita e outras áreas de conhecimentos, discussão dos principais problemas de aprendizagem, análise de práticas de ensino e muito mais, numa
leitura que mais parece uma conversa entre educadores.
Partindo da sala de aula tal como ela é, esse livro ajuda a
esclarecer as diferenças e relações entre dois processos: o de
ensino e o de aprendizagem, vistos sob a ótica construtivista,
fundamental para compreender os aspectos essenciais das mudanças em curso na educação. Título indispensável na estante de todos os que se interessam por educação.
(Telma Weisz, Ana Sanchez: O diálogo entre o ensino e a aprendizagem.
São Paulo: Ática, 1999. Tel.: (0XX11) 3346-3000 – Fax (0XX11) 277-4146. www.atica.com.br – e.mail: editora@atica.com.br)
Para saber mais
- O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. Telma Weisz com Ana Sanchez. Ed. Ática. Tel.: (0XX11) 3346-3000.
- Psicopedagogia da linguagem escrita. Ana Teberosky. Ed. UNICAMP e
Ed. Vozes. Tel: (0XX11) 258-6910
• Alfabetização em processo. Emilia Ferreiro. Ed. Cortez. Tel.: (0XX11) 864-0111