Integradas com o ambiente e a cultura, as crianças interagem com sons e músicas, escutando, reproduzindo e criando
O ser humano interage com os sons, os silêncios e a música em sintonia com seu modo de perceber, pensar, sentir, conhecer… enfim, em consonância com sua maneira de ser e estar no mundo. Como uma das manifestações da consciência, a realização musical – jogo de sistemas sonoros simbólicos – reafirma a condição de integração entre o ser humano e o ambiente, bem como entre a natureza e a cultura.
Por isso, é sempre bom lembrar que o fazer musical não é privilégio dos músicos1, realizando-se de maneiras e por motivos diversos, com diferentes níveis de competências, conhecimentos, possibilidades e recursos. Os sons e silêncios, no continuum tempo-espaço, revestidos de sentidos e de significados, mantêm-se à disposição de músicos e não músicos. Basta manter-se disponível para produzi-los ou escutá-los.
A produção musical da criança
Pesquisas e teorias indicam que o relacionamento com o sonoro tem início na etapa da vida intrauterina, com os sons produzidos pelo corpo da mãe e pelos estímulos do ambiente externo. E o bebê ouve e produz sons e silêncios, realizando, à sua maneira, um jogo que parece apontar para a gênese do fazer musical.
Ao se comparar as experiências de um bebê com a voz ou com um pequeno tambor, à improvisação ou interpretação de um músico – o que muda é, sem dúvida, o grau de complexidade, como apontado anteriormente. Entendemos que a construção do significado da música pelos sujeitos (a “reinvenção da música”) se dá pela interação interno-externo (“eu-meio-construção de relações sonoro-musicais”), sempre em consonância com a percepção e a consciência. Por isso, é muito importante observar e respeitar o modo como as crianças assimilam e internalizam a “ideia da música”, sintonizando o fazer musical à sua maneira de ser e estar, em dinâmica e permanente transformação. É muito importante reconhecer que as crianças são produtoras musicais.
Compreender e respeitar a produção musical infantil, no entanto, implica reconsiderar a concepção de música, entendendo-a em sua condição de sistema aberto e dinâmico. Quando nos referimos à relação da criança com sons e músicas, consideramos aspectos que dizem respeito à escuta, ao gesto, às condutas de produção (priorizando a criação) e, especialmente, à ideia de música que ela tem, ou seja, o que ela pensa a esse respeito, como lida com os conceitos envolvidos e, principalmente, que significados ela confere ao fazer musical.
A interação entre a construção pessoal e os modelos tradicionais de estruturação musicais vigentes ou dominantes no meio social em questão, que ocorre independentemente do grau de complexidade da realização musical, fortalece os modelos tradicionais ao mesmo tempo que provoca transformações. Em se tratando da produção musical das crianças, parece se estabelecer um jogo dialogal entre o fazer que emerge de suas estruturas internas e os sistemas musicais que apreendem do meio externo, acompanhados de todos os comportamentos relacionados à expressão musical (como o caráter de show e de espetáculo fortemente veiculado pela mídia nas sociedades contemporâneas).
Ao fazerem música, as crianças não apenas representam simbolicamente suas percepções, seus pensamentos e sentimentos, como também reproduzem, num faz de conta, os modelos que observam e assimilam2.
Com frequência escutamos crianças inventando canções, imitando gestos e toques de instrumentos musicais (com ou sem materiais à mão), ou explorando possibilidades e criando livremente quando em contato efetivo com instrumentos musicais. Essas atitudes não são restritas às crianças que têm aulas de música, já que atendem às necessidades de expressar e brincar que são próprias do universo infantil.
O brincar musical da criança, assim como sua forma de experienciar, de desenvolver recursos e de construir conhecimento nessa área, encaminha as experiências para níveis mais elaborados, num processo que se enriquece e assume maior significado quando o verdadeiro e efetivo fazer musical infantil está presente no espaço escolar.
Educação musical como território de produções musicais das crianças
A música convive com sistemas de transmissão e de renovação que, por um lado, apontam para a tradição oral ou para um saber intuitivo e, por outro, indicam a presença de métodos de ensino-aprendizagem, quer com o objetivo de formar músicos, quer como parte da formação geral dos indivíduos. Esses métodos, em sua maioria, ainda se apóiam em concepções que parecem não compreender o fato musical como sistema emergente e dinâmico, focando basicamente estabilidade e manutenção de determinadas características.
A música, a priori, costuma ser entendida (e transmitida) como linguagem, que “já vem pronta”, com estruturas e modelos que, a despeito de sua condição de produtos culturais, são vistos como naturais. Vale também observar o fato de que nossa educação musical ainda revela marcas do modelo europeu que se instalou no Brasil no século XIX e que dissociou a formação de intérpretes e de compositores, pela ênfase na formação dos virtuoses.
Convivemos com sistemas de ensino musical pouco afeitos às atividades de criação e que consideram a “aula de música” o momento adequado para a transmissão de conceitos, de repertórios tradicionais e de realização de atividades sequenciadas, com fins específicos. Defendo e desenvolvo um projeto de educação musical que considera a música como sistema dinâmico de interações e de relações entre sons e silêncios no espaço-tempo, e que entende a musicalização como processo de construção de vínculos com essa linguagem.
Para tanto, é preciso permitir que a experiência musical, no plano da educação, seja território para o jogo do perceber, do intuir, do sentir, do refletir, do criar, do transformar…, entendendo que não existe dissociação entre corpo e mente.
As atividades de criação – que incluem jogos de improvisação, composições, arranjos, formas de registro e grafia – fazem parte do cotidiano musical dos alunos, em cada fase, com base na tradição e na pesquisa de novas possibilidades, realizando-se em contextos de intersecção com os conteúdos trabalhados e com as demais formas de realização musical.
Analisando as produções das crianças, constatam-se as características próprias das diferentes fases do seu desenvolvimento (não só musical), revelando níveis de percepção e de consciência, expressando seu modo de ser pelo jogo simbólico de sons, silêncios, palavras, formas… Se criam canções, suas letras falam de brinquedos, da troca de dentes, dos conflitos com a família, do mundo do faz de conta.., trazendo para o cantar a maneira que elas têm de se relacionar consigo mesmas, com o outro, com a família, com a sociedade, com valores, com símbolos etc.
As criações instrumentais evidenciam o tratamento que é dado aos materiais sonoros e suas características, ao silêncio, aos elementos da linguagem musical em suas estruturações e formas. Intuição e conhecimento específico, liberdade e domínio de regras, exploração, invenção e imitação, convivem em criações que enfatizam um ou mais aspectos, dependendo da vivência e da maturidade dos alunos, ou seja, de sua experiência.
Produzindo, as crianças exercitam sua relação com o mundo e, assim, crescem, vivenciando um processo pedagógico-musical significativo. O sentido e o prazer que o fazer musical confere aos que experimentam, ousam, criam, e, principalmente, têm seus produtos musicais reconhecidos e valorizados em seu meio, sejam eles quais forem, tem importância fundamental. Quando as crianças percebem que são autoras da própria história, todo o percurso se transforma.
Não há dúvidas sobre a necessidade e a importância da produção musical (de qualidade!) que os adultos devem oferecer às crianças. É certo também que devemos garantir a elas o acesso à produção musical, em sua diversidade e riqueza. Mas é fundamental reconhecer, respeitar e valorizar o fazer musical das crianças (superando preconceitos e valores preestabelecidos), com vistas à formação de seres humanos sensíveis, criativos e reflexivos. “O humano como objetivo da educação musical”, como afirmou Koellreutter.
(Teca Alencar de Brito, pianista e educadora musical. Coordena, há 19 anos, as atividades da Teca Oficina de Música, em São Paulo-SP. É autora do livro Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical – São Paulo: Peirópolis, 2001 – e Música na educação infantil: propostas para a formação integral da criança – São Paulo: Peirópolis, 2003)
1Entendemos por fazer musical “o contato entre a realização acústica de um enunciado musical e seu receptor, seja este alguém que cante, componha, dance ou simplesmente ouça”, segundo o compositor Silvio Ferraz
2Haja vista o fascínio exercido pelo microfone, pelo palco, pela imitação dos ídolos do rádio e da televisão.
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Para saber mais
Livros
- Ideias em educação musical, de Esther Beyer (org.). Porto Alegre: Mediação, 1999. Tel.: (51) 3330-8105. Site: www.editoramediacao.com.br
- Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical, de Teca Alencar de Brito. São Paulo: Peirópolis, 2001. Tel.: (11) 3816-0699. Site: www.editorapeiropolis.com.br
- Música na educação infantil: propostas para a formação integral da criança, de Teca Alencar de Brito. São Paulo: Peirópolis, 2001. Tel.: (11) 3816-0699. Site: www.editorapeiropolis.com.br