Quais e quantos conteúdos se garantem a cada ano, para cada faixa etária, na educação infantil? Existe um mínimo para cada turma? Como combinar o projeto de cada instituição com as orientações do MEC? Essas dúvidas ocorrem a muitos profissionais na hora de avaliar e projetar mais um ano de trabalho. Articular o que as crianças precisam saber aos diferentes conteúdos que podem ser disponibilizados é um desafiante exercício de planejamento, nos seus diferentes níveis. Nesta edição avisa lá entrevistou uma especialista que fez parte da equipe de elaboração do currículo e duas coordenadoras pedagógicas – de uma creche pública e de uma escola de educação infantil particular – que trazem opiniões e experiências para ajudar a esclarecer essas dúvidas
Entrevistada:
Silvia Pereira de Carvalho, da equipe de coordenação do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil e da coordenação do Crecheplan.
Revista: Como determinar os conteúdos que devem ser explorados na educação infantil?
Silvia: O ponto de partida deveria ser o projeto pedagógico criado por cada escola, conforme está previsto na LDB (Lei das Diretrizes e Bases), no capítulo 4, artigo 12. Isso significa que cada instituição deve ter objetivos comuns explicitados e compartilhados, num contexto de construção própria. Do projeto pedagógico – que no meu entender ficaria melhor se fosse chamado de educacional – deve fazer parte o currículo, a prática pedagógica, a organização administrativa e as parcerias com a família e a comunidade. A referência curricular elaborada pelo MEC – o RCNEI –, como o próprio nome diz, deve servir como fonte de orientação para que sejam elaborados, por exemplo, currículos municipais próprios. A partir dessas bases mais gerais é possível construir os projetos de cada instituição de ensino.
Quais conteúdos escolher, já que não há conteúdos obrigatórios?
Silvia: O Referencial Nacional de Educação Infantil propõe que ao planejar o trabalho se leve em consideração dois grandes âmbitos de experiência. Um ligado à construção do sujeito, que deve se preocupar com as questões de identidade, autonomia, socialização, chamado de formação pessoal e social; outro ligado à construção do objeto, os eixos de trabalho em diferentes áreas do conhecimento. O currículo tem uma proposta aberta e não estruturada. Isto é, há uma gama grande de conteúdos que podem ser oferecidos às crianças para que relacionem suas hipóteses e construam seus conhecimentos. Como os conteúdos são meios para a construção da criança, não são obrigatórios em si, devem ser escolhidos entre aqueles que melhor atendem aquelas crianças específicas.
Além disso é importante que qualquer conteúdo dê lugar à curiosidade infantil, ao jeito particular de as crianças pensarem e representarem o que conhecem, ao inusitado que surpreende muitas vezes os adultos.
Como trabalhar os conteúdos sugeridos pelo RCNEI? Tudo ao mesmo tempo?
Silvia: Penso que não. Há conteúdos ligados à formação pessoal e social que estão sempre presentes, como o desenvolvimento da autonomia, o brincar, os cuidados e etc. Os demais podem ser trabalhados com mais ou menos intensidade, levando-se em consideração o projeto pedagógico da instituição, e alguns critérios (veja texto abaixo), dentre os quais aquilo que é significativo para as crianças de diferentes idades. Por exemplo, para as crianças de 0 a 3 anos, de maneira geral, os conteúdos ligados à linguagem oral, movimento, cuidados, música e o saber fazer em artes visuais demandam um trabalho mais intenso e diário.
Nessa faixa etária, a aproximação com a escrita, a matemática e os conhecimentos sobre natureza e sociedade podem ocorrer de forma mais esporádica em situações de vida diária . Para as crianças de 4 a 6 anos acrescenta-se, além dos conteúdos citados acima, a leitura e a produção de textos escritos como atividades constantes. Com essas crianças é possível pensar em interessantes projetos investigativos sobre os conteúdos de natureza e sociedade sugeridos pelo RCNEI, assim como a introdução de jogos e situações lúdicas em que as crianças tenham que pensar acerca dos números e quantidades.
Como combinar âmbitos e eixos diferentes de trabalho?
Silvia: O fato de existir uma divisão didática em dois volumes, onde são detalhados objetivos e conteúdos tanto para um âmbito como para outro, não significa que o trabalho educativo seja concretizado de forma estanque. Por exemplo, ao se elaborar um projeto que tenha como objetivo possibilitar que as crianças desenvolvam maiores competências em relação ao movimento, tendo como conteúdos equilíbrio e coordenação por meio de brincadeiras, jogos e atividades da vida prática, etc. o professor deverá ter em mente que, além dos resultados mais imediatos ligados ao eixo escolhido, ele trabalhará inúmeras outras questões implicitamente, como a interação, a auto-estima, os processos de escolha, a cooperação, o enfrentamento de conflitos, diferentes valores e atitudes etc. O mesmo ocorre em outros eixos.
A opção no RCNEI em detalhar item por item é referência para o professor elaborar seu planejamento cotidiano. O currículo deve ajudar a dar mais intencionalidade educativa à ação do professor. Sabendo de onde está partindo, que opções elege conscientemente, o professor tem mais condições de avaliar as aprendizagens.
Com dosar os conteúdos? Quanto de cada um deve ser dado?
Silvia: Como o currículo é aberto e trabalha com objetivos e conteúdos bastante gerais e amplos não é possível predeterminar, ficando a cargo dos professores e da equipe da instituição e, evidentemente, das próprias crianças a medida do que vai ser trabalhado. Essa medida costuma ser dada, também, pelas instituições de ensino, de acordo com as concepções de ensino e de aprendizagem em que se pautam. Algumas defendem as idéias de ir do mais simples para o complexo, do concreto para o abstrato. Assim, por exemplo, determinam que as crianças “aprendam” matemática, por exemplo, ensinando o número 1 em um mês, o 2 no outro, indo aos poucos, até chegar ao 9 no final do ano, sem tocar em quantidades maiores.
O RCNEI tem uma concepção bem diferente, que não simplifica a relação da criança com os números e quantidades. Ao entrar em contato com esse universo complexo, a criança utiliza recursos próprios, e não convencionais, para entender, contar e estabelecer relações. Por isso, segundo o RCNEI, é preferível dar à criança o desafio de contar suas figurinhas para saber quantas tem, possibilitar que represente de seu jeito os pontos que ganhou em um jogo e, a partir daí, propor questões para que avance. No que diz respeito a participação em situações de leitura de diferentes gêneros feita pelos adultos, como contos, poemas, parlendas, trava-línguas etc, quanto é suficiente? Só os professores e as crianças de um grupo específico é que podem saber. Enquanto as crianças estiverem se interessando, se divertindo e avançando, o trabalho é válido.
Critérios úteis na escolha de conteúdos
- significatividade para as crianças
- diversidade de experiências que as crianças necessitam
- faixa etária
- necessidades das famílias e comunidade
- competências e possibilidades da equipe da instituição
- modalidade institucional ( integral e meio período)