Lucila Silva de Almeida*
26.08.2021
A música está presente em nossas vidas desde o início da humanidade e, desde então, tem se manifestado de diversas maneiras, produzindo trilhas sonoras que embalam nosso cotidiano. Ela é um fenômeno universal, uma linguagem que todos entendem, é um traço de união entre os povos.
A música gera conhecimento e tem especial significado porque opera com força total na percepção e na cognição humana. Não à toa, para ser música, não é necessário que haja palavras; é pelos sons, ruídos e silêncios que ela se faz presente. Quem de nós nunca cantarolou um “lalalá”, num momento de alegria ou até mesmo de raiva ou, sem se lembrar da letra de alguma canção, não se deparou cantando com onomatopeias, como lindamente fazia o compositor e interprete brasileiro Adoniran Barbosa?
Uma importante forma de expressão humana, a música está presente em nossas vidas desde o nosso nascimento; seja na própria família com os acalantos, as primeiras cantigas entoadas com o intuito de ninar um bebê. Ou, ainda, nas cantigas e brincadeiras com as pessoas com as quais convivem na escola, as crianças estão expostas a um cenário musical.
Estudante de escola pública, iniciei meus estudos na escola formal em 1985 e desde o atualmente chamado ensino fundamental, como também no ensino médio, jamais presenciei uma só aula de música na escola, assim como não tive um só minuto de aula sobre esse assunto ao cursar por quatro anos uma faculdade de Pedagogia.
Minha única referência de música na escola tratava-se daquela que estava a serviço de outras aprendizagens ou acontecimentos, como apresentações em festas juninas, das quais pouco me recordo, uma vez que pouco encontrava significados nas cansativas repetições de passos.
A música, na minha infância, estava muito mais presente fora da sala de aula. Ainda hoje sinto o pulso básico das parlendas, brincadeiras cantaroladas em meio a tantos meninos e meninas:
Cai no Poço? Poço!
Quem te tira? Meu bem!
Quem é seu bem? Alguém?
Tudo que eu mandar fazer, vocês ‘fazerão”? Sim!
E se não fizer?
Forno!
Filha do meio de uma família de cinco irmãos também presenciei essas fórmulas literárias rimadas por minha mãe, tios e outros adultos que se aproximavam. Assim, como toda parlenda, essas de minha infância se prestavam para embalar, cadenciar movimentos de acalanto e também tinham o intuito de entreter e distrair os pequenos.
Minha relação com a música de quando pequena segue, também, pelos forrós e canções sertanejas escutadas no colo da família e pelas inúmeras cantigas entoadas nas mais variadas novenas ou celebrações da igreja, nas quais acompanhava meus pais.
Outra boa memória é a dos momentos de recreio, em roda, em meu início de adolescência, em que cantávamos e dançávamos a “Linda Pastora”, canção da tradição popular que hoje não permanece viva apenas em mim, como também nas crianças com as quais tive o privilégio de trabalhar. Essa era uma música que nos libertava – não tínhamos que aprender nada, estava ali pela companhia dos colegas e pelo divertimento existente.
Quando era professora de pequenos cantava o tempo inteiro, em roda para acalmar o grupo de crianças depois de uma agitação, para nos divertimos, para brincar, para iniciar algo; muitas vezes cantarolava canções conhecidas, muitas outras, inventava canções malucas e em outras tantas, fazia paródias com canções que o grupo de crianças conhecia.
A paixão pelas cantigas e a forma com que percebi que as canções cantadas conseguiam embalar um grupo de crianças ao ouvir minha voz, fizeram-me reparar nesta escuta. Uma escuta que é diferenciada de quando ouvem uma música num equipamento eletrônico ou enquanto assistem os cantores em vídeo. Ali, numa roda comum sem instrumentos ou recursos tecnológicos, ficavam praticamente hipnotizados pela voz do adulto e, mesmo que soubessem de cor as canções, não cantavam, apenas escutavam.
Durante um tempo, isto me incomodava: afinal aquela era uma “roda de música” e as crianças sabiam as canções, por que não cantavam e me ajudavam? Por que não cantavam se aquele momento era justamente para isto?
Hoje, percebo que é uma roda de música, mas não de cantoria. Diria: “é uma roda de ouvidoria”, um ouvido que se põe a escutar e que só depois, quase que só depois de tomado por este momento, é que canta. Ao me ouvir cantar as crianças colocavam em jogo uma atenção específica, uma concentração do pensamento.
Com as crianças percebi que havia um valor educativo próprio desta arte e que os acessos às diferentes experiências estéticas que ela promove, contribuem efetivamente com os processos de constituição do sujeito, consolidados não pelos seus resultados, mas pelo processo e pela potência comunicativa que a musica desenvolve.
Com os pequenos tive a certeza que a música não precisa estar a serviço das aprendizagens de outra área. Ela pode e deve estar a serviço da CULTURA!
É pela voz do adulto que, como Lia de Itamaracá (1977), cirandeira da Praia do Janga em Recife diz: “A melodia principal quem diz é a primeira voz é a primeira voz”, que a criança pequena tem iniciado sua própria narrativa. Pela voz da mãe, do pai, dos avós ou adultos mais próximos a criança começa a narrar sua história ao emprestar-se da voz do outro, que a insere nas narrativas e no contexto daquela cultura familiar.
Ao cantar para a criança, estabelecemos um vínculo emocional e através do empréstimo de nossa voz e do ritmo com que embalamos nossas canções, proporcionamos sua entrada na linguagem e, consequentemente, na cultura de um povo.
O jeito com que embalamos os bebês com nossas canções nos remete ao universo infantil e nos aproxima deste novo ser. Este ato, embora pareça simples e praticamente automático, instantâneo, vem carregado de significados afetivos, sociais e culturais. Quando cantamos às crianças, formamos vínculos afetivos e culturais.
Cantamos para os pequenos porque reconhecemos o encantamento que esse vaivém exerce. As crianças, por sua vez, tentam nos imitar e responder essa iniciativa, estabelecendo novos significados para este momento, de maneira afetiva e cognitiva.
A música é uma das formas de materialidade da representação do homem. Através da música, é possível que as crianças possam se perceber, sentir, experimentar, imitar os adultos e as crianças maiores e, porque não dizer, refletir sobre o mundo. Quem de nós, nunca se pôs a pensar sobre si mesmo e sobre o mundo, ouvindo uma canção?
Ao cantarmos para a criança pequena, despertamos a percepção, a comunicação, a concentração, a confiança, a redução do medo, o desenvolvimento da criatividade, a sensibilidade e a memória, alguns dos aspectos da vida do humano.
A música envolve o corpo e porque não dizer, a alma. Estabelece conexões que nem sempre podem ser vistas pelos olhos, mas sentidas fortemente pelas vibrações do ritmo dos corações que emanam a mais forte energia sonora.
Através da música, legitimamos a existência do outro, o filiamos à nossa própria existência, como Lajonquière (2008) diz: “Nós embalamos nossas crianças porque são nossas ou, caso não o sejam, porque bem poderiam sê-lo”. O acalentar e o filiar são duas caras de uma mesma moeda.
A música é como morada, materialidade que, pela voz do outro, auxilia a criança recém-chegada a adentrar neste mundo e encontrar sua casa e se sentir aconchegado nela.
Quando cantamos para uma criança pequena, não é a música que está em jogo em si ou porque queremos inseri-las numa educação musical; enquanto cantamos, constituímos um forte vínculo com essa criança, não só pelo colo, que geralmente permeia estes momentos, mas pelo colo simbólico, emprestado pela voz que lhe apresenta o mundo.
Cantar para as crianças pequenas, não só como um gesto de cuidado, de afeto, de amor, é uma das maneiras de narrarmos o mundo, para que a criança não só o conheça, mas se conheça, adquira características do humano, possa apreciar, dar valor e importância a essa experiência.
A música é um gesto sonoro, que liga o adulto e a criança, favorecendo a troca de afeto e segurança para esse mundo novo cheio de sons, barulhos, ritmos, melodias que foi construído por muitas mãos e assim é repassado.
Assim como meus ex-alunos, minhas duas filhas gostam muito de me ouvir entoar uma cantiga de ninar, Ana, a mais velha e que tem atualmente nove anos, sempre se aconchega e “muda o corpo” quando eu canto pra ela, certa vez ela me disse que me ouvir cantar é como se voltasse no tempo em que era mais nova.
Malu minha filha caçula, quando menor sempre fazia sons quando estava com muito sono e eu tentava lhe ninar em silencio e só parava de murmurar quando eu começava a cantar, não demorou para que eu percebesse que esse era seu jeito de me “pedir” cantigas.
Querendo saber mais sobre esses “murmúrios” descobri que há uma expressão em italiano chamada “bocca chiusa” que significa cantar com a boca fechada e que essa é uma técnica usada para “aquecimento vocal”.
O que hoje em dia faz ainda mais sentido; aos dois anos e dez meses, Malu agora além de me convocar a cantar, escolhe sua própria “playlist” pedindo suas favoritas.
Sua voz cantante aos poucos tem aparecido para “acalentar” as bonecas ou quando estamos juntas antes do sono (como no áudio abaixo em que canta sua cantiga predileta atualmente) e este tem sido seu novo jeito de se embalar neste mundo, dizem que quem canta seus males espanta; diria que uma criança cantando seus bens aproxima. Ao cantar ela tem melhorado sua fala, se acalmado e me acalmado vivendo instantes mais relaxados e harmoniosos.
Minha experiência como professora tia e mãe cantante me revelou que embora “leiga”, somos todos tomados pelo desejo de inserir nossas crianças no mundo em que vivemos e que não é preciso uma “voz de cantora profissional” para cantar para as crianças que estão próximas. O que elas pedem não é nosso conhecimento sobre as qualidades do som, tão pouco exigem que nossa voz seja afinada, muito embora não desconsidere estes saberes, o que elas nos pedem é a presença, esse contato permeado por gestos de cuidado, um colo através das cantigas, uma viva voz, recital que praticamente torna o adulto cantante alguém para imitar e que revela que quem aprendeu a ouvir, um dia sai cantando! (veja o vídeo no fim do post)
LAJONGUIÊRE, Leandro de. Acalentar e acalantos. Revista Avisa lá. São Paulo, n.36, outubro/2008. Disponível em https://avisala.org.br/index.php/assunto/jeitos-de-cuidar/acalentar-e-acalantos/
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(*) Lucila Silva de Almeida – Pedagoga com pós graduação em “Educação de Crianças de 0 a 3 anos” pelo Instituto Singularidades – SP.
É autora do livro “Interações: Crianças, brincadeiras brasileiras e escola” – Editora Blucher e co-autora do livro “Parlendas para Brincar” e “Adivinhas para Brincar” Editora Panda Books e “Práticas comentadas para Inspirar” Editora do Brasil .
Professora do Curso de Pós Graduação “Educação Infantil: Investigações e Saberes com crianças de 0 a 3 anos pelo Instituto Singularidades
Formadora de professoras da rede pública e privada desde 2002, atualmente trabalha em projetos e programas de formação de professores pelo Instituto Avisa Lá e atua como Coordenadora Pedagógica no Projeto Varre Vila, projeto de Educação Ambiental na empresa COM VOCÊ serviços de treinamento.