Crianças da educação infantil aprendem um caminho para a convivência e o respeito às diferenças
Nos últimos anos, as práticas de ensino de Matemática vêm sendo objeto de estudo e reflexão de muitos professores que têm se questionado sobre a qualidade das aprendizagens adquiridas e “sobre o quê” as dificuldades apresentadas pelos alunos indicam. Dentre os vários temas tratados nas discussões relacionadas a essa questão, talvez poucos sejam tão recorrentes como o uso dos materiais concretos como estratégia para o ensino do sistema de numeração decimal.
O uso de materiais decorre da crença de que é preciso tornar concreta a numeração escrita, materializando a agrupação de dezenas e centenas para levar à compreensão do valor posicional do número. Segundo Delia Lerner1, essa questão apresenta dois grandes inconvenientes:
[…] o primeiro grande inconveniente é que se modifica o objeto de conhecimento transformando-o em algo muito diferente do que ele é; o segundo grande inconveniente é que se impede que as crianças utilizem os conhecimentos que já tenham construído nas suas relações com o sistema de numeração. […]
Sendo assim, por que tantos professores ainda utilizam materiais concretos para trabalhar com o sistema de numeração e ensinar os algoritmos? Essa pergunta foi tema de reflexão de uma das reuniões online orientadas e mediadas pelas consultoras responsáveis pelo Programa Além dos Números, Ana Flavia Castanho e Camilla Schiavo, pois um dos objetivos do percurso de formação organizado pelo Programa no ano de 2011 era o de questionar essa prática com base na análise crítica de textos de pesquisadores do tema.
Para alguns participantes, esse foi o primeiro contato com alguma fundamentação teórica que discute essa prática. Durante a reunião, as formadoras municipais relataram que os professores trabalham com diferentes materiais concretos para ensinar conteúdos matemáticos e que muitos deles não questionam o uso desses recursos e sequer conhecem as concepções que os orientam.
Para ampliar a discussão, retomaram o contexto histórico no qual essas práticas começaram a circular entre os professores: durante os anos 1960, os movimentos conhecidos como Escola Nova e Matemática Moderna tomaram a noção de estádio da teoria piagetiana e aplicaram-na ao ensino. Mais tarde os próprios autores dessas reformas reconheceram que haviam interpretado equivocadamente a teoria piagetiana (a ideia de desenvolvimento operatório, que vai do concreto ao abstrato) e que o uso do material concreto não resultava em boas aprendizagens. Pelo contrário, verificava-se um efeito de êxito local, mas não de aprendizagens, já que esses materiais não garantiam condições para que os alunos transportassem as operações feitas com seu uso a uma maior abstração.
Esse tipo de prática favorece a deformação do objeto de conhecimento, contribuindo para o desaparecimento da possibilidade que caracteriza o nosso sistema de numeração – que é posicional – transformando-o em um sistema aditivo, como o egípcio, por exemplo.
Quando o professor, ao apresentar um problema, indica também o uso de palitos, botões, barrinhas, dedos etc. como meio para sua resolução, está impedindo que os alunos escolham qual procedimento – dentre muitos possíveis – utilizar naquela situação específica. De acordo com as reflexões propostas pelo Programa Além dos Números, em muitos casos, os alunos ficam “presos” ao uso desses recursos e não avançam em relação à reflexão sobre outras formas de calcular.
Muitas vezes cai-se na ilusão de supor que uma criança reconhece as dezenas quando responde que o número 87 tem 8 dezenas ou quando realiza um exercício de decomposição. Reconhece a presença das 8 dezenas ou reconhece o número 8, que, pela posição em que se encontra, o professor chama de dezenas. Hoje sabemos que inúmeros exercícios relativos às unidades e dezenas propostos pela escola são resolvidos pelas crianças de forma mecânica, sem que elas compreendam a complexidade subjacente às decomposições.2
De acordo com os textos das autoras estudadas na reunião online, o trabalho com o material estruturado não oferece recursos, critérios, diversas estratégias que lhes permitam saber se o que fizeram está certo ou errado, se é plausível ou descabido. Sabemos que faz parte do aprendizado da matemática construir estratégias para controlar os resultados de cálculos realizados, e com o material concreto raramente isso é possível.
No que se refere aos conteúdos matemáticos, os participantes chegaram à conclusão de que não basta apenas descartar o material concreto. É preciso refletir sobre o seu uso e verificar a serviço do que ele está sendo proposto. Muitas vezes, ao observarem as estratégias utilizadas pelos alunos para resolver alguns cálculos em sala de aula, os professores notam que as crianças apresentam dificuldade para realizar outros procedimentos, sem a utilização o apoio de objetos (palitos, dedos, lápis, cubinhos etc.) para identificar quantidades.
Para isso, é preciso que o professor tenha clareza de que a transição da contagem para o cálculo passa necessariamente por um trabalho de socialização dos conhecimentos matemáticos do grupo, pela construção de um repertório de resultados de memória que apoiem a resolução de outros cálculos. É importante criar um ambiente no qual os alunos sintam-se convidados a revelar a forma pela qual construíram suas hipóteses e apresentar as estratégias que empregaram para resolver determinado cálculo.
No entanto, para que esses momentos não se tornem meros relatos de suas ideias, é preciso problematizar as questões formuladas por eles. É necessário evidenciar conteúdos que desejamos que os alunos aprendam, propondo novas aprendizagens para o grupo. Caso não se evidenciem formas diferentes, o que é natural no início desse processo, cabe ao professor apresentar outras possibilidades, ampliando o repertório dos alunos.
É importante ressaltar que não se deve “ensinar” diferentes possibilidades, nem que cada aluno deverá utilizar-se de todas as formas que lhe forem apresentadas. “Trata-se de que cada aluno encontre suas maneiras preferidas, valendo-se do grupo de colegas para ter a oportunidade de aderir às soluções propostas pelos outros.”3
Os procedimentos das crianças não são infinitos, pelo contrário, é possível prevê-los e descrevê-los. (…)
Conhecer os procedimentos é fundamental, mas o maior desafio é poder provocar a evolução dos alunos do nível de procedimentos que utilizam. Estamos convencidos da importância de oferecer aos alunos oportunidades de enfrentar os problemas com seus recursos, para buscar um caminho pessoal até a solução, mas às vezes… e aqui está o duplo desafio, é necessário que os alunos avancem em seus procedimentos e que todos cheguem a dominar os procedimentos “eficazes”, aqueles que o professor (e a comunidade) reconhecem como os que permitem dominar a situação, qualquer que seja o campo numérico, ou a dimensão com que está proposto.4
Ao final da reunião, grande parte das formadoras municipais afirmou que o debate em torno desse assunto ainda é um grande desafio. Para elas, esse é um tema que necessita de maior aprofundamento para que os coordenadores pedagógicos possam sentir-se mais seguros para discuti-lo com os professores. Sabemos que, embora seja essa a concepção do Programa Além dos Números acerca desse assunto, essa é uma discussão que não se esgota em um primeiro encontro.
Ainda há muito a observar, analisar e refletir sobre as práticas adotadas pelos professores em relação ao ensino de Matemática. Temos certeza de que algumas temáticas apresentadas nesse encontro nos ajudaram a perceber que a Matemática, embora seja uma ciência exata, possui infinitos caminhos para chegarmos à mesma resposta. Descobrir diferentes estratégias para resolver uma mesma questão, investigar o maior número de caminhos possíveis, nos maravilharmos com as possibilidades encontradas por nossos alunos, eis o grande desafio. Seguramente voltaremos a esse tema em outras reuniões do Programa para, quem sabe, compartilhar outras tantas descobertas com nossos leitores.
(Ana Flávia Castanho e Camilla Schiavo, formadoras de professores das redes municipais e formadoras do Programa Além dos Números – Avisa Lá, São Paulo–SP)
1Matemática na escola: aqui e agora. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br
2Sobre a relação entre material concreto e material estruturado. Tradução livre de trecho do Documento Curricular da Municipalidade de Buenos Aires, disponível na área de Matemática, sob o título de perguntas frequentes em: www.buenosaires.gov.ar/areas/educacion/curricula/primaria.php.
3Cálculo mental na escola primária, de Célia Parra e Irma Aiz (Org.). In: Didática da Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas: 1996. Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br
4Los niños, los maestros y los números: desarrollo curricular – Matemática 1o y 2o grado, Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1992, segunda edición 1996. (Tradução livre para fi ns didáticos feita por Priscila Monteiro e Lucas Monteiro). Disponível em:
estatico.buenosaires.gov.ar/areas/educacion/curricula/docum/areas/matemat/lnlmyln.pdf
Ficha Técnica
- Instituto Avisa Lá
Programa Além dos Números
Coordenação: Priscila Monteiro e Debora Rana
E-mail: pbm@terra.com.br e deborarana@avisala.org.br
Formadoras: Ana Flávia Castanho e Camilla Schiavo
E-mails: anacastanho@gmail.com e camillaschiavo@yahoo.com.br
Para saber mais
Livros
- Cálculo mental na escola primária, de Célia Parra e Irma Aiz (Org.). In: Didática da Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996 Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br
- Matemática na escola: aqui e agora, de Délia Lerner. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br
- Ensinar Matemática na Educação Infantil e séries inicias, de Mabel Panizza (org.) Porto Alegre: Artes Médicas, 2006. Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br