Pequenas tarefas atribuídas às crianças durante a rotina escolar são oportunidades de aprendizagem sobre convivência, respeito e responsabilidade, além de contribuir para a construção da personalidade moral.
Os conteúdos relacionados ao eixo de trabalho Identidade e Autonomia1 constituem a base de grande parte das situações de ensino e de aprendizagem em uma abordagem construtivista. Na Educação Infantil, a inserção no espaço escolar amplia o conhecimento que as crianças pequenas constroem a respeito de si mesmas, de suas possibilidades e de seus próprios limites.
Nessa etapa da escolaridade, entendemos a socialização como um dos principais eixos do trabalho. Ao longo das séries, as crianças aprenderão a conviver em grupo e a respeitar seus pares,a respeitar e a atender os adultos que não são seus pais, a compartilhar, a emprestar, a esperar a vez, a formar novos vínculos afetivos etc. Viverão situações que contribuirão para que se adaptem à vida em comunidade.
Assim, as propostas feitas diariamente são planejadas para que elas conheçam e aprendam a conviver no espaço escolar, que, por sua vez, é organizado por regras próprias e compartilhado entre crianças e professores.
Construção da autonomia
E o que isso tem que ver com autonomia? Quase tudo, à medida que a definimos como a capacidade de tomar decisões por si, levando em conta regras, valores, reconhecendo o próprio espaço e o do outro. Por isso, são tão importantes as regras e os combinados que estabelecemos com os pequenos, pois explicitam, de certa maneira, o funcionamento da escola e as normas de conduta necessárias ao convívio social do grupo.
Ao compreendermos que o crescimento pessoal implica construção da identidade e da autonomia, nossas intervenções passam a considerar as dimensões individual e coletiva, isto é, ao mesmo tempo que respeitamos e buscamos atender as características e as necessidades de cada criança, consideramos a importância da convivência entre elas e as aprendizagens que dela decorrem.
Progressivamente, as interações acontecem de fato e os alunos passam a atuar de maneira cada vez mais autônoma. Não é à toa que o eixo Identidade e Autonomia é considerado conteúdo transversal. Sem dúvida, ele perpassa todos os demais conteúdos, como se representasse o fio da costura.
Ajudantes do dia
Desde o início do ano, as professoras de Grupo 3 (crianças de 5 e 6 anos) planejam encaminhamentos e intervenções que propiciam progressiva autonomia para os integrantes da sala. Diariamente, convidamos os pequenos a atuar como ajudantes do dia, auxiliando as professoras em tarefas que, gradativamente, vão se tornando cada vez mais complexas e que, paulatinamente, vão sendo realizadas cada vez mais sem apoio direto do adulto. Isso não quer dizer que as crianças possam fazer o que quiserem, de qualquer jeito, nem que as tarefas sejam puramente burocráticas.
Atuando junto à professora e aos colegas, o ajudante interioriza a ajuda proporcionada, incorporando, assim, às suas ações, novas dimensões que o farão mais capaz de resolver os problemas e as questões que surgem. Acreditamos que as crianças, quando atuam com alguém mais experiente, podem chegar a fazer algumas coisas que não conseguem fazer sozinhas.
Como se vê, numa perspectiva construtivista, há outras dimensões do desenvolvimento infantil que são consideradas. Trata-se da construção da personalidade moral, de atitudes e valores como justiça, respeito e solidariedade. Portanto, nós, professores, não nos ocupamos somente da formação acadêmica dos alunos, preocupamo-nos com a formação de cidadãos que possam contribuir para a construção de sociedades justas.
No Grupo 3, assim como nas séries anteriores, os ajudantes do dia são convidados a participar da organização do espaço físico antes da realização de diversas atividades que fazem parte da rotina, ou depois delas. Entretanto, nessa turma, novos desafios são propostos, pois as crianças dessa idade já são capazes de assumir novos compromissos. Ao se responsabilizarem pela organização dos materiais para as oficinas de Arte, por exemplo, elas preparam as mesas de trabalho, forrando-as com plástico ou jornal, despejam as tintas nos copos, separam pincéis e o suporte que será utilizado, distribuem aventais, e estão sempre de prontidão, caso seja preciso repor alguns dos itens. Elas estão aprendendo que tudo que lhes diz respeito também é de sua responsabilidade.
É claro que essas tarefas são compartilhadas com os demais integrantes do grupo, que, ao longo da jornada escolar, colaboram na organização de espaços e de materiais. No entanto, o protagonismo é da dupla de ajudantes, que se reveza diariamente, dando a todos a oportunidade de experimentar cumprir tarefas mais exigentes. E como essas ações contribuem para aumentar o sentimento de potência e de pertinência ao grupo!
Muito além da organização
E não para por aí. Introduzimos os pequenos dessa série em outra proposta de trabalho, em que todos se responsabilizam pela supervisão da própria sala de aula para, no segundo semestre do ano letivo, começarem a orientar outros grupos quanto à organização dos espaços de uso coletivo, como o parque, a sala de leitura, o banheiro e o bebedouro, preocupando-se, inclusive, em atuar como modelo diante dos menores (Grupo 1 – crianças de 3 e 4 anos; e Grupo 2 – crianças de 4 e 5 anos).
Dessa maneira, criamos diversas situações nas quais elas tenham de interagir, colaborar e cooperar, para que elas aprendam a se relacionar e a respeitar as pessoas. Assim, a colaboração com os companheiros, a participação e o respeito são considerados conteúdos que devem ser ensinados e priorizados. A escolha dos ajudantes do dia não é aleatória. Ela é planejada pelo professor, considerando alguns critérios, como levar em conta como um dos ajudantes que demonstra mais autonomia na realização das tarefas inerentes a esse papel pode auxiliar o outro que necessita de apoio para executá-las. O profissional também considera as relações entre as crianças ao escolher a dupla, pois, muitas vezes, é nesse momento que uma passa a olhar para a outra de maneira diferente, conhecendo suas habilidades para preparar um material ou ajudar os demais na resolução de um conflito. As que são vistas como aquelas que resolvem conflitos utilizando a força física ou não se organizam nas rodas podem construir uma imagem diferente perante os colegas com base nas ações e tarefas que realizam quando são colocadas na posição de quem ajuda na organização e no relacionamento do grupo. Consequentemente, também passam a demonstrar mais comprometimento com as atividades nas diferentes áreas do conhecimento.
Diariamente, diversas crianças consultam a tabela afixada no mural para saber quem são os ajudantes daquele dia ou para contar quantos dias faltam para assumir esse papel, uma vez que, na tabela, há a lista dos que serão ajudantes no mês. Isso nos revela o quanto estão envolvidas com esse desafio e aguardam com ansiedade o momento de assumir o posto, desempenhando cada vez melhor e com mais autonomia as funções que lhes cabem.
Sabemos o quanto os pequenos apreciam preparar os materiais de Arte, que nas séries anteriores ficavam mais a cargo dos professores. Sabemos também que tarefas relacionadas à organização da sala e, progressivamente, ao espaço escolar são esperadas por eles, especialmente pelos que assumem a posição de ajudante do dia, para que haja convívio harmonioso entre todos da sala e dos demais grupos.
Para que ficasse claro o que esperávamos das ações dos ajudantes do dia, em uma das salas de Grupo 3, foi pedido às crianças que enumerassem as tarefas. A lista foi digitada pela professora e afixada no mural da sala a pedido delas, justificando a possibilidade de consultá-la sempre que necessário.
Autonomia grupal e individual
Procuramos oferecer às crianças um ambiente sociomoral de respeito, em que as professoras consideram as ideias das crianças em diversas situações cotidianas e não somente nas propostas acadêmicas. Temos um exemplo extraído de uma das salas de Grupo 3: diante de uma situação que ocorria com certa frequência, na qual os colegas solicitavam a presença da professora para ajudar a resolver um conflito, queixando-se de uma criança que não deixava alguns colegas participar de uma brincadeira ou que falava coisas desagradáveis para eles, a educadora propôs uma roda na qual o grupo foi convidado a expressar a opinião sobre o que pensava a respeito do companheiro que não assumia suas ações, pois era recorrente ele apresentar dificuldade em assumir o que tinha dito ou feito, quando questionado pelos adultos. Leia o registro de uma roda de conversa:
Professora: Por que será que essa criança sempre diz que não foi ela quem começou ou que não é responsável por falar determinada coisa?
Criança: Eu acho que é para não ganhar a bronca.
Criança: Para não deixar de brincar com os colegas, porque ela sabe que não foi certo o que fez.
Criança: A criança sabe que está fazendo uma coisa errada e diz que não foi ela.
Professora: Como nós podemos ajudar essa criança?
Criança: Nós podemos ajudar o amigo a entender o que está acontecendo.
Criança: Nós podemos dizer que conversando a gente pode se entender e que ele não precisa ficar com medo.
Criança: Mentir é errado e não resolve o problema.
Criança: Eu sempre ajudo a resolver o problema da minha amiga porque eu já vi e sei como você conversa e resolve os problemas com a gente.
Criança: É verdade, por isso se conseguirmos resolver o problema não precisa nem chamar a professora.
Dessa maneira, propiciamos aos pequenos a possibilidade de ajudar na tomada de decisões. As regras e os combinados são feitos por eles e pelas professoras. Estamos falando de crianças morais, que enfrentam questões que fazem parte de sua vida escolar. Quando a professora proporciona essa experiência, elas evoluem a partir de ações impulsivas e autocentradas para negociações que respeitam os direitos e os sentimentos de outras pessoas.
Quando convidadas a refletir sobre os problemas da sala de aula, as crianças têm mais possibilidade de perceber a necessidade de haver regras. Ao participarem da discussão relacionada às questões que aparecem, elas percebem que as decisões também pertencem a elas. Assim, terão a oportunidade de compreender por que existem certas regras e por que fazem certas coisas de determinadas maneiras.
Os conflitos são considerados como oportunidades para ajudar os pequenos a pensarem sobre o ponto de vista de outros e a imaginarem a negociação. Nossas intervenções são: o que você poderia dizer a ele? Você pode falar com ele sozinho ou precisa de minha ajuda? Assim, eles formam as próprias opiniões e ouvem as de outros, construindo seu senso moral com base nas experiências da vida cotidiana. Em uma situação de conflito, elas têm oportunidade de perceber o ponto de vista do outro e são motivadas a descobrir como resolver um problema. A conversa torna-se cooperativa e elas se sentem confortáveis para expressar seu pensamento à professora e para os demais colegas. Dessa maneira, vão construindo repertório para resolver problemas com mais autonomia nos momentos em que estiverem envolvidas em situações de conflito com um colega, necessitando cada vez menos do apoio do adulto.
Avaliamos que a tarefa de ajudante do dia oferece várias oportunidades para interação com os colegas, porque possibilita a cooperação com o grupo. Na interação com os companheiros, os pequenos descobrem que fazem parte de um coletivo e assumem um sentimento de compromisso e obrigação com as regras construídas por eles. Quando se sentem autores das regras, aumenta a propensão a segui-las e a lembrar a outros para segui-las também. Dessa maneira, os professores podem dividir a responsabilidade com eles, por meio da rotatividade de deveres e de privilégios diários, mesmo no grupo descrito anteriormente, em que a presença do adulto é necessária na resolução de conflitos e nos intervalos das atividades da rotina.
O professor passa a focar sua intervenção auxiliando-os nessa questão e deixa a cargo dos ajudantes do dia as demais tarefas, sempre atuando como modelo para que os ajustes se façam necessários, considerando as particularidades de cada grupo e acreditando na progressiva autonomia perante as diversas situações. Assim, ser ajudante do dia é uma função que permite a todas as crianças assumirem responsabilidades, contribuindo para a formação de uma sala de aula moral, levando ao funcionamento mais harmônico das aulas e a relações mais satisfatórias entre todos os participantes do processo educacional.
(Alessandra Zanetti e Maria Eugenia Kira, professoras de Educação Infantil da Escola da Vila – Unidade Butantã e formadoras de professores no Centro de Formação da Escola da Vila, em São Paulo – SP.)
1In Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil: Formação Pessoal, Volume 2. Brasília: Ministério da educação e do Desporto e Secretaria de educação Fundamental (MEC/SEF), 1998. Disponível na íntegra no site: www.portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume2.pdf.
Tarefas dos ajudantes do dia
Arte
- Misturar as tintas.
- Preparar a cola.
- Entregar aos colegas canetas, folhas, argilas e tesouras.
- Organizar a oficina de percurso e, no fim, ajudar a guardar os materiais que não foram usados.
- Forrar as mesas com plástico.
Biblioteca
- No dia de biblioteca, no momento dos cantos, entregar os livros devolvidos pelas crianças para a bibliotecária.
Espaço escolar
- Lembrar aos amigos que eles não podem correr no corredor da Educação Infantil.
- Lembrar aos colegas que eles não podem passar do banco perto da árvore na hora do parque.
Banheiro
- Lembrar às crianças dos Grupos 1, 2 e 3 que elas não devem espiar embaixo da porta do banheiro.
- Lembrar aos colegas da Educação Infantil que eles não podem jogar papel higiênico no vaso sanitário.
- Lembrar aos amigos que eles devem pegar apenas duas folhas de papel para enxugar as mãos.
Sala de aula
- Arrumar as cadeiras da sala.
- Estender o tapete antes das rodas de história.
- Recolher os papéis do chão.
- Lembrar às crianças que elas devem pendurar os casacos e guardar os brinquedos na prateleira.
- Quando acabar a hora do desenho, elas devem guardar as caixinhas de canetinhas e de giz de cera.
Parque
- Lembrar às crianças que elas devem brincar em pequenos grupos.
- Lembrar aos amigos que eles devem organizar os brinquedos, que não podem correr para a sala de aula e nem se esconder nas plantas.
- Ao voltar do parque, lembrá-los de lavar as mãos, tirar a areia do tênis e beber água.
Resolução de conflitos
- Dar ideias para os amigos de como resolver um problema
Ficha Técnica
- Escola da Vila – Unidade Butantã
Endereço: Rua Barroso Neto, 91 – Butantã – São Paulo – SP – CEP: 05585-010 Tel.: (11) 3726-3578
Site: www.escoladavila.com.br
Diretora da Educação Infantil: Vânia Marincek
Coordenadora da Educação Infantil Butantã: Dayse Gonçalves
Professoras: Alessandra Zanetti e Maria Eugenia Kira
E-mails: alessandra@vila.com.br e tucha@vila.com.br
Para saber mais
- Aprender e ensinar na educação infantil, de Eulalia Bassedas, Teresa Huguet e Isabel Solé. São Paulo: Artmed, 1999. Tel.: 0800 703 3444. Site: www.artmed.com.br
- A ética na educação infantil: o ambiente sócio-moral na escola, de Rheta de Vries e Betty Zan. São Paulo: Artmed, 1998. Tel.: 0800 703 3444 Site: www. artmed.com.br