A constituição de si mesmo e dos objetos

A permanência dos objetos – construção fundamental das crianças em seu primeiro ano de vida – pode estar na origem da arte e da ciência
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Fotos: Pedro Caetano

Olhar, segurar, sugar, são algumas das ações dos recém-nascidos sobre os objetos a sua volta. Estes objetos são assimilados ao eu do bebê, como prolongamento de suas ações, sem que ele tenha ainda consciência nem da realidade, nem de si próprio. Mas os esquemas, como de preensão, por exemplo, vão se diferenciando e organizando em função das experiências que a criança realiza com os outros seres ou objetos que compõem parte da realidade em que ela vive. Em torno de um ano de idade, com a possibilidade de se deslocar — seja engatinhando ou andando – meninos e meninas assimilam os objetos ao próprio eu e, ao mesmo tempo, acomodam-se a leis causais que favorecem sua localização no espaço e no tempo. Crianças muito jovens adoram brincar de esconde-esconde! A cada vez descobrem novas relações entre as coisas do mundo e elas próprias.

Uma de nossas primeiras conquistas, talvez a mais importante de todas, é a noção de permanência dos objetos. A partir daí, e ao longo da vida, se estabelece uma dupla constituição: de si mesmo e do universo. Em outras palavras, conhecemos o mundo na mesma medida que conhecemos a nós mesmos. E assim é em Arte e Ciência, em que o homem expressa suas concepções e busca dar sentido aos fenômenos existenciais, naturais e sociais. Tenho procurado aprender um pouco mais sobre esta dupla construção com uma criança que hoje tem um e três meses, e aqui compartilho com vocês minhas reflexões.

Bem-vinda ao mundo
Minha netinha, Eva, veio ao mundo em uma tarde amena de verão, de uma mãe que esperou muito, lutou para que o parto fosse natural. Depois de horas em trabalho de parto, entretanto, uma cesariana liberou-as do que poderia se tornar um sofrimento. O momento em que viu a filha pela primeira vez, meu filho o sentiu como um grande impacto no peito. De uma emoção imensa. Eu a vi uma hora depois do nascimento, pelo vidro do berçário. Estava atenta, presente e com grandes olhos abertos nos olhava impondo respeito. Um olhar antigo, que expressava sabedoria, e que nos causou admiração intensa e amor sem limites. Então a consciência aguda de como a vida se manifesta tomou conta de mim, e me maravilhou. Senti compaixão pela menininha recém-chegada e por todas nós. Pois o nascimento implica ruptura com a situação idílica no útero materno, uma simbiose entre mãe e filha em que o bebê está garantido. Lançado ao mundo, o recém-nascido precisa contar com os próprios recursos, principalmente o de sucção, neste primeiro momento. Nunca está sozinho, ao contrário, conta sempre com a dedicação amorosa da mãe e de outros adultos, mas já luta pela própria sobrevivência. A vida é uma dádiva, mas cada um de nós irá vivê-la e realizá-la.

Nestes primeiros momentos de nossos filhos, e a partir daí pela vida afora, creio que nós mulheres vivemos uma dualidade entre natureza e cultura. De um lado, mamíferas, de outro lado, mães. Como mamíferas, prevalece o instinto, jorra o leite, o afeto nos indica como proceder. Como mães, somos bombardeadas com o que os outros esperam de nós. Em primeiro lugar, somos influenciadas pelas nossas próprias mães. Em segundo lugar, pela expectativa social de como é ser mãe. Livros, revistas, roupinhas, brinquedos, uma infinidade de objetos encontráveis nas lojas nos ajudam a cuidar de nossa cria. Estes objetos facilitam muitas coisas – carrinhos, fraldas, chupetas, mas também impõem um padrão socialmente consagrado. Um padrão do mundo das coisas prontas, já existentes. Mas com o bebê não é assim, nada está pronto. A começar pela obtenção de alimento. Eu creio que o modo como mamamos está na origem do nosso modo de aprender e de gerar conhecimentos. Mamar vem de uma necessidade básica, que é a fome. Sem responder a ela o bebê não sobrevive.

Aprender com a experiência
No início, há uma fome sem consciência da necessidade, sem que a criança possa prever a possibilidade de vir a estar saciada. Se a gente se lembrasse de como é, talvez fosse uma situação de tudo ou nada, vazio ou cheio, seco ou molhado, sensações sem nuance. Pelo menos é assim que me parece, 56 anos depois dessas primeiras experiências. Entretanto nosso lado mamífero nos dá uma garantia maravilhosa: possibilidades de interação entre mãe e bebê. A mãe o acolhe e fornece o leite, o bebê aprende a interagir com o seio. E o instinto de sucção fornece a base para os primeiros procedimentos próprios da criança. Tudo ali terá que ser criado, nada independe da própria experiência.

As interações entre mãe e filho têm uma dinâmica própria, na qual somos gerados. Nem mesmo o pai pode contribuir para esta profunda intimidade. Se pudéssemos compreender esta dinâmica, talvez a observação nos possibilitasse vislumbrar uma gênese: necessidade, instinto, afeto ou mobilização estética, procedimentos em ações transformadoras, coordenação e tomada de consciência das ações realizadas, construção de conhecimentos. Colocando neste esquema o ato de mamar: fome, sucção, modo próprio de se relacionar com a mãe, procedimentos (que são sempre individuais) de sugar, respirar, engolir, sensação de estar saciada (para uma menininha), aprender a mamar sem sobressalto. Tendo a oportunidade de arrotar para abrir espaço na barriga e no pulmão!

É evidente que não se pode dizer tomada de consciência, tratando-se de uma pessoa com um mês de vida. Mas também não se pode determinar um começo e um fim da consciência. Tornar–nos conscientes, aprender com a experiência talvez seja a principal função da vida humana, desde o nascimento. À medida que Eva vai aprendendo com sua própria experiência, vou tentando aprender com ela.

Abertura para o conhecimento
Nossos primeiros contatos foram mediados por olhar, segurar, adormecer. Eu olhava para ela, ela para mim, o que será que víamos? Vejo em minha netinha, desde seus primeiros dias, uma sabedoria milenar, como se ela fosse um pequeno Buda. Como se a vida fosse do fim ao começo e ela contivesse toda aprendizagem possível, ou infinitas possibilidades de aprendizagem. Uma abertura para o conhecimento que me impõe respeito. E, ao mesmo tempo, ao olhar para Eva eu sentia compaixão imensa, pela sua desproteção, dependência de um adulto. É engraçado, sem aflição nenhuma da parte dela, parece que tranquilamente ela nos indicava o que precisava de nós. Segurar, que vem do instinto de preensão, é sempre um ato tocante. Aquela pessoa tão pequenininha segurando nosso dedo nos dá uma confiança irrestrita. Nela, em nós, na humanidade. Quando a seguro forte nos braços não lembro mais como foi difícil aprender a segurar. Por tentativas e erros, por coordenações sucessivas e simultâneas, por acomodações aos objetos e assimilações do objeto aos seus próprios esquemas.

Aos oito meses de idade Eva já tinha se encantado com os movimentos de uma bola. Mas não conseguia segurá-la! Dei para ela três bolinhas de pingue-pongue, que ela gostou de segurar. Só que as bolinhas escapam, rolam, e quando caem no chão pulam alto, fazem um barulhinho. Da mesinha no alto da cadeira onde ela come, uma das bolinhas pingou no chão, saiu pela janela, foi pingando escada abaixo até o barulhinho bom se acabar. Eva ficou intrigada, prestando uma atenção enorme. O que será que ela pensou? Eu acho que são questões, movidas pela curiosidade, muito mais relativas ao como é isso do que a o que é isso. Penso que é por procedimento que a gente conhece as coisas.

Em um ano, esta possibilidade de segurar coisas teve nela um desenvolvimento espetacular. Sentar, engatinhar, andar. Eva é uma quase cientista em suas evoluções. Pois experimenta, cai, levanta, recomeça, elimina o que não dá certo, aprimora rapidamente o que funciona bem. Ficar em pé, que ato épico, emocionante. E mover-se por conta própria pela casa toda, liberado para ela o chão a partir do qual tudo é possível. Eva ganhou de presente uma ovelhinha de balanço, como um cavalinho, mas é uma ovelha. De madeira, com o dorso e a cabeça revestidos de lã natural de carneiro. As orelhas são dois pauzinhos laterais. Eva segura firme neles, fica em pé em um dos lados da base em arco, passa uma perna por cima do selim, senta-se na ovelhinha, impulsiona o corpo para frente e para trás balançando-se no brinquedo. Não contente com isto, abaixa-se, segura firme nas orelhas, ajoelha-se sobre o selim, coloca um pé na frente, outro logo atrás, estica as pernas, e põe-se a balançar como se estivesse surfando. Sorte que a ovelha está sobre um tapete bem fofo. A gente o cerca de almofadas também, porque Eva cai do brinquedo muitas vezes, mas não se intimida com isto. Depois encosta o rosto na lã macia, faz carinho na companheira. De saber segurar para ser capaz de brincar, a gente vê que a pessoa vai ganhando asas. Libertação.

Criação de procedimentos

Adormecer e acordar são os momentos da vida mais impressionantes para mim. Pois implicam confiança não apenas em si mesma – como aquela adquirida nas experiências com a ovelhinha, confiança no outro também. Quem adormece, abandona-se ao desconhecido. Adormecer é um ato de entrega. Então, quando Eva deita em meu ombro, me abraça e fica enrolando meus cabelos até adormecer, fico comovida demais. E depois acordar no meio da noite, e me aceitar sem susto, na ausência dos pais. Somente uma vez assustouse, quando pouco antes de completar um ano ela acordou lá pela meia-noite. Tínhamos ficado juntas brincando a tarde toda. Mas quando ela sentiu que a mãezinha não estava lá à noite, ficou com medo. Abracei e aconcheguei a netinha como pude e telefonei aos pais que já estavam pertinho, chegando. Maravilha o telefone celular, porque naquele momento vi com clareza que nada, a não ser a presença da mãe, poderia “calafetar o porão”, isto é, assegurá-la.

Naquela mesma noite sonhei que estávamos em alto mar. Era noite bastante escura e eu nadava segurando Eva pela mão; chegávamos a uma passagem do mar entre as pedras. Em uma delas, grande e redonda à nossa direita, tentamos a travessia. Íamos rodeando a pedra onde eu apoiava tateando com a mão direita e levando Eva pela mão esquerda. Boiávamos na água do mar, sem enxergar. Chegamos do lado de lá, que era mar também, eu satisfeita por ter realizado a passagem, mas Eva furiosa! Brava mesmo, me olhando para dizer: como você faz uma coisa dessas comigo? Fiquei com vergonha, acordei. Pois é exatamente nesta época da vida do bebê que se dá a descoberta da permanência real do objeto. Imaginem, ou rememorem caras leitoras, caros leitores, um mundo onde as pessoas, e também os objetos, só existem para nós quando estão presentes, tocáveis. Em que, quando a mãe se ausenta é como se ela não existisse mais, perda total. É esta passagem que aparece no sonho – da ausência à pura presença – aquela que a meu ver exige de nós a maior coragem. E esta passagem consolida-se por procedimentos, como aquele que testa a permanência do objeto. Esconde-se um brinquedo, ou mamadeira, embaixo de uma almofada, à vista do bebê. Quando o bebê se desloca para o lugar da almofada engatinhando ou andando, levanta a almofada e recupera o objeto, isto significa que a imagem deste objeto foi interiorizada e que por suas próprias ações a criança pode reavê-lo. Antes disto o objeto terá desaparecido.

Será que as pessoas que determinam fornecem a licença maternidade têm noção do alto custo emocional, para a mãe e para a criança, em uma separação prematura, anterior à consolidação do objeto interno? Que as mães não se afastem muito tempo de seus jovens filhos isto sim traria uma maior amplitude humana para o mundo do trabalho. Pois para o bebê, quando a mãe passa a existir como imagem mental ou memória, como pessoa interiorizada, valorizada pelos afetos, uma base estética se estabele para vir a dar imensos frutos, como arte e ciência. E o que seria da Arte e da Ciência sem procedimentos de criação, com sua origem no objeto interno, ou na vida interior? Ter a possibilide de representá-las nos dá segurança e indepependência para poder amá-las: pessoas, paisagens, brincadeiras. E brincar, acredito, é a essência da criação. Olhem, mulheres de meia-idade como eu acho que é bom sempre regar nosso objeto interno. Pois é esse lugar que nos dá alguma segurança, que nos permite dançar, cantar, escrever, pintar, pesquisar, aprender com a experiência, deixando que filhos e netos – fontes de aprendizado permanentes para seus pais, mães avôs – vivam a própria vida sem ter que se preocupar conosco. Ah! Sim, mais um problema para nós educadoras: objeto interno não se ensina, só se aprende.

(Monique Deheinzelin, educadora e artista plástica, publicou A Fome com a vontade de comer, uma proposta curricular de educação infantil – Vozes, 1994, 12ª edição -, entre outros livros)

Ficha técnica

Monique Deheinzelin – E-mail: moniqued@uol.com.br

Para saber mais

Livros

  • A construção do real na criança, de Jean Piaget. Ed. Ática. Tel.: 0800-115-152.
  • O brincar e a realidade, de Donald W. Winnicott. Ed. Imago. Tel.: (21) 2242-0627.
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