Compreender as falas das crianças é tarefa fundamental dos profissionais da educação infantil
Neste artigo, são apresentadas análises de conversas entre crianças de 4 a 6 anos1, todas elas apoiadas nas teorias do psicólogo e filósofo francês Henri Wallon (1879-1962) e do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934) sobre o pensamento sincrético e suas manifestações, já que é precisamente entre 3 e 7 anos que esse pensamento se evidencia em crianças. Esse tema foi escolhido pelo interesse que as falas dos pequenos podem despertar em quem os observa ou os acompanha. Antes, porém, uma rápida explicação.
Sincretismo é uma qualidade do pensamento infantil, que imprime à linguagem características únicas, bem próximas da estrutura poética. Por essa razão, parece legítimo refletir sobre como os adultos atuam diante dessas manifestações. Tive a oportunidade de observar diferentes rodas de conversas, de participar de algumas delas e de elaborar outras tantas durante os três anos de faculdade. Esses momentos foram possíveis por conta dos estágios de observação, pela possibilidade de acompanhar a elaboração dessas aulas pelas professoras dos cursos e, mais recentemente, pela minha atuação como professora de Educação Infantil.
Com isso, pude observar maneiras e procedimentos distintos de educadores ao conduzirem as conversas propostas à roda, estimuladas pelos mais variados acontecimentos cotidianos tão característicos dessa etapa da educação: o desenvolvimento de projetos, interesses compartilhados entre as crianças ou novidades, temperados pela individualidade de cada participante. Sentia certo incômodo ao ver desperdiçadas ou descartadas falas infantis interessantes apenas por parecerem fora de contexto ou por suscitarem dúvidas quanto à sua veracidade. E ao tomar conhecimento acerca das características do pensamento sincrético, minha inquietação aumentou.
Tipos de pensamento
É importante prestar atenção aos enunciados e às conversas das crianças para que possam perceber a coerência e a beleza de suas manifestações orais. Um exemplo2:
Professora – Ma, o que você está fazendo?
Mariana – Um Pinóquio.
Professora – E como é isso?
Carlos – Não é Pinóquio, Mariana. Eu já falei. É um binóculo.
Marcela (rindo) – Pinóquio é do desenho.
Jonas – Ontem o Pinóquio veio buscar meu dente.
Nesse caso, é possível notar como “binóculo” e “Pinóquio” se misturam pela semelhança sonora. Perceber isso nos faz pensar na importância da qualidade da escuta e da mediação do adulto nessas situações. Não raras vezes o falar de uma criança pequena pode desconcertar o professor, principalmente se ele, ao se relacionar com ela, esperar que seu pensamento seja organizado e objetivo. Isso é exigir algo que a criança não pode dar por não ter ainda a estrutura e a lógica do adulto.
Segundo Wallon, podemos identificar quatro características referentes ao pensamento sincrético: fabulação, tautologia, elisão e contradição. Fabulação refere-se à invenção de histórias e conceitos: No meu prédio pegou muito fogo e queimou gente. Queimou eu e o meu irmão. Tautologia é a repetição de palavras com vistas a uma definição: O Sol é uma bola que (…) muito Sol nele e fica calor, porque o Sol fica no alto.
A elisão pode ser percebida em conversas nas quais parece não haver muito sentido, dão a impressão de estarem incompletas ou pela ausência de respostas às perguntas formuladas. Observamos isso no seguinte diálogo:
– Do que você está brincando?
– Eu não estou gritando.
– Mas eu perguntei do que você está brincando.
– Ué, de gritar e cantar e ser alto.
E contradição, muito comum no pensamento infantil, é uma ideia usada para definir ou explicar algo que não se conserva, sendo rapidamente substituída por outra, contraditória, na expressão oral. Podemos constatá-la na seguinte fala:
– Nikollas, me empresta qualquer caneta, mas eu quero azul.
Livre para fabular
Transcrevemos a seguir a conversa entre Mariana (5 anos e 6 meses), Marcela (5 anos e 7 meses), Jonas (4 anos e 11 meses) e Amanda (5 anos) durante uma atividade diversificada:
Mariana – Eu vou contar tudo de novo que ninguém escutou. Pra Gabi agora. Ô Gabi, vem escutar o que aconteceu comigo lá na praia.
Professora – O quê?
Mariana – Deixa eu te contar o que aconteceu lá na praia.
Professora – Hã?
Mariana – Sabe, eu tava brincando com a Sofia lá na praia, pertinho lá do fundo. Eu tava brincando.
Aí, eu saí do mar pra pegar pipoca com o meu irmão. Aí, o mar cobriu a Sofia, que a Sofia se afogou. Aí, eu e o meu irmão acabamos de comer tudo a pipoca, a gente pulou lá no fundo do mar e o jacaré queria comer eu, meu irmão e a Sofia. Aí, eu salvei a Sofia. A Sofia foi no hospital, eu acordei e a gente fez as pazes e viveram felizes para sempre. Foi assim.
Professora – Nossa, que aventura!
Mariana se dirige ao colega que está sentado numa cadeira próxima e diz – Ó, posso te contar um a coisa: É lá na praia.
Jonas – O quê?
Mariana – Sabe, Jonas, é assim: eu tava lá na praia brincando com a minha amiga. Aí, o meu irmão estava brincando com um amigo dele e eu com a minha amiga. Aí, o mar, ele cobriu o amigo do Gui e a Sofia. Aí, a gente pulou no fundo do mar, a gente tava brincando pertinho do fundo. Aí, a gente comeu uma pipoquinha, eu e o meu irmão. Aí, a gente pulou no fundo do mar pra salvar o amigo do Gui. Aí, o Gui fez as pazes com o amigo e eu fiz as pazes com a minha amiga. Aí, foi assim. Aí, nunca mais aconteceu isso.
Amanda (que se aproxima para ouvir a conversa) – Você nunca mais viu seus amigos?
Mariana – Claro, ó, deixa eu te contar que eu acho que você não entendeu. É assim, o Guilherme tava brincando com o amigo dele e eu tava brincando com a Sofia. Aí, a gente saiu para comprar uma pipoquinha. Aí, quando a gente voltamos cadê o amigo do Gui e a Sofia? Eles estavam afogados lá no fundo do mar. Aí, a gente foi corajosos e a gente pulamos no fundo do mar e a gente salvou nosso amigo. Aí, a Sofia falou assim. Aí ela foi no médico e já sarou o amigo do Gui e a minha amiga. Aí, viveu muito bem. Aí, tirei foto da Sofia, o Guilherme tirou foto do amigo e eu tirei foto da Sofia e eu ficava vendo, aí a Sofia um dia, ela vai vim aqui outro dia eu vim na… outro dia o Guilherme ia dormir na casa do amigo e na Sofia foi muito divertido essa história, muito divertido isso. Olha, eu nunca acreditei, a minha mãe nunca ia acreditou que eu ia, eu e o Gui salvar um amigo. O Gui ia salvar um amigo e eu ia salvar uma amiga, você acha? Então foi assim. E aí, viveram felizes para sempre.
Amanda – Só que vocês, vocês nunca mais se viram?
Mariana – Não, a gente se viu. Todo dia, a Sofia me via, todo dia. Todo dia a gente ia brincar, só que no rasinho.
Jonas – Até agora que você cresceu?
Mariana – Não agora a gente não se vê mais porque eu mudei de escola, né? A gente se vê hoje no meu aniversário a gente se vê todo dia. O Gui vê o amigo e eu vejo…
Amanda – É todo dia o seu aniversário?
Mariana – Às vezes.
Marcela entra na conversa – Todo dia?
Mariana – Não, não. Deixa eu terminar. Aí eu convido a minha amiga, o Gui convida o amigo, a gente canta parabéns, termina o parabéns. Aí, demora muito, mais muito, para fazer aniversário de novo. Dá um sorriso, vocês três. Ficou legal, muito legal (referindo-se à foto imaginária que tirou).
De acordo com os estudos feitos por Wallon, a fala de Mariana revela forte carga afetiva. Ao recontar a história, sempre com muita propriedade, a menina faz pequenas alterações, mas preserva a essência do que deseja contar aos demais, a saber: sua grande aventura, da qual participam o irmão gêmeo, referência forte em diversas situações do cotidiano, uma amiga de sua antiga escola e, mais tarde, um novo amigo de seu irmão. A fabulação é marcante. Ao longo das variações da história, a garotinha relata que sua amiga e o amigo de seu irmão se afogam, mas depois tudo fica bem, fim característico de muitas histórias.
É possível observar que a sequência dos fatos torna-se cada vez mais elaborada. Isso nos faz pensar que a relação de Mariana com a leitura de histórias e sua estrutura narrativa acaba impregnando sua expressão oral. Ela tem gosto e interesse por ouvir, por ler e por escrever histórias, claramente perceptíveis em alguns momentos de seu dia, como na roda de histórias e nos inícios de aula em que ela nos conta sobre leituras que fez. Igualmente prova de seu interesse são os livrinhos que ela mesma constrói e ilustra. Características da elisão e da contradição também podem ser constatadas em sua fala: Não agora a gente não se vê mais porque eu mudei de escola, né? A gente se vê hoje no meu aniversário a gente se vê todo dia.
Em determinado momento, a menina menciona que ela – ou sua mãe – nunca acreditaria que seria capaz de viver o que está contando. Por um lado, isso ilustra o quanto, no pensamento sincrético, realidade e fantasia podem se misturar. Por outro, Mariana segue afirmando a veracidade da aventura, fabulando ao mesmo tempo em que fala, e conseguindo responder sem vacilar às perguntas dos colegas. Esses são ouvintes atentos, que escutam e conversam com mais qualidade até que o adulto, que, por ter responsabilidades com todo o grupo, perde a oportunidade de se envolver na conversa. Aliás, Mariana parece conseguir fabular e se colocar da maneira que faz justamente por ter um público que a ouve com atenção. Por encontrar espaço é que ela tem liberdade de construir um percurso no qual pode atuar sem restrições, apesar dos desafios das respostas aos colegas. O ambiente não tem a intenção de desmenti-la ou provar que a sua narrativa nunca aconteceu, nem por parte dos adultos, nem por parte das crianças.
É importante ressaltar aqui a função fundamental das intervenções que faz o professor. Quaisquer que sejam elas, certamente, provocarão efeitos, quer seja no sentido de estimular a capacidade de expressão da criança, quer seja reprimindo manifestações de fantasia, entendendo-as como mentiras. O adulto deve levar em consideração esse momento do pensamento infantil, de maneira que não sejam desprezadas falas e manifestações relevantes para o narrador de uma história e até mesmo para o grupo. Um espaço acolhedor e democrático, e que respeite a dinâmica do pensamento infantil, é fundamental para que os pequenos se sintam seguros e estimulados para o desafio de se comunicar, um dos principais objetivos de uma Educação Infantil de qualidade.
Formação de conceitos
Durante as observações, havia um grupo que se dedicava a estudar o espaço sideral. Em um determinado momento as crianças ficaram sabendo que o Sol é uma estrela, e o impacto da descoberta foi grande. Transcrevemos a seguir a fala de Fábio (5 anos e 4 meses):
Fábio – Quando o Sol bate numa estrela, pode cair, fazer ficar queimado, mas sempre nasce outra.
Professora – Como nasce a estrela?
Fábio – Eu sei. Quando o Sol. O espaço não é escuro? O Sol vai para outro espaço. Tem um morro que ele sempre vai. Na minha casa eu sempre vejo igual num livro de mágica.
Como é característico das crianças pequenas, Fábio revela descontinuidades em seu pensamento. Essa maneira de pensar aos pares é verificada quando duas palavras se ligam – por coerência de significado, pela carga afetiva ou por sonoridade. Os pequenos encontram a relação satisfatória e a tomam por verdade. Isso não significa, porém, que a hipótese não possa ser reformulada ao longo da conversa. Há análises em que eles se contradizem e não veem nisso nenhum problema. Assim, podemos perceber na fala do garoto esse instrumento intelectual de que dispõe nessa fase: os pares. São exemplos da estrutura binária do pensamento as associações estabelecidas por Fábio, como Sol e estrela.
O menino tenta se apropriar do conteúdo estudado, o que se verifica quando ele responde à questão. Com isso, podemos perceber também a qualidade afetiva da descoberta empregada. No momento em que a conversa foi registrada, além de estudar o espaço sideral em livros e em outras fontes com teor científico, as crianças eram ao mesmo tempo apresentadas a histórias fictícias e literárias
com o mesmo tema. Ao tentar responder à questão, Fábio mescla ideias das diferentes fontes consultadas.
Acompanhemos agora a elaboração de conceitos durante o faz-de-conta na brincadeira de Mariana (5 anos e 6 meses) e Júlia (5 anos e 8 meses):
Mariana – Coloca em mim o vestido da princesa? Ai, que bonita. Ainda bem que eu não tenho mais babá, porque eu sou fogo, mesmo. Cris, olha meu bebê doentinho, tá tão magrinho.
Júlia – Vai ao médico.
Mariana – Tem injeção?
Júlia – Não.
Mariana – Cris, ela não sabe que é de mentira? Agora vou colocar uma fantasia.
Professora – Você vai trocar a fantasia?
Mariana – Não, vou colocar uma mesmo, de verdade. Ai, que difícil colocar. É que é para gente magrinha.
Mariana coloca uma fantasia de super-heroína. Sai para brincar, volta e reclama – Cris, o Carlos me derreteu.
Professora – Uau, como ele conseguiu derreter você?
Mariana – Ah, fazendo, é só de faz-de-conta, calma. (Depois de alguns instantes) Botei meu filhinho num bercinho, vou cobrir com um paninho para ninguém roubar o meu bebê.
Uma criança desavisada pega o paninho.
Mariana – Ai meu Deus, quem roubou um paninho de nenê, que tristeza. Agora meu bebê vai ficar roxinho.
Nesse momento, Mariana apresenta novas e interessantes informações. Sua fala revela discernimento entre o que é faz-de-conta e o que é realidade. Atendo-se ao comentário sobre a dificuldade de vestir a fantasia, podemos considerar que a garota ouviu alguém dizer que roupas de tamanho menor são feitas para gente magra em algum dos muitos ambientes nos quais convive e rapidamente incorporou essa informação ao seu próprio discurso. Iguais considerações podem ser feitas a partir de seus comentários dramáticos sobre o roubo do paninho de seu nenê e o fato de que ele ficará roxinho.
Mesmo que Mariana ainda não tenha se apropriado dos significados de muitas palavras ou expressões, ela já é capaz de utilizá-las com propriedade. Ela consegue fazer coincidir o contexto social da brincadeira com a vida real, vivendo um processo dialético que permite que já se expresse e se comunique no meio social, mesmo que ainda tenha um longo caminho pela frente no que diz respeito à formação de conceitos, que, vale ressaltar, é similar à brincadeira infantil. Na brincadeira, as crianças sempre agem como se fossem mais velhas do que são, fazendo coisas que ainda não podem fazer, como dirigir um carro, cuidar de um bebê, trabalhar num escritório etc. Por isso, quando brincam, os pequenos imitam o mundo adulto e se projetam nessas atividades de gente grande, exercitando papéis sociais que impulsionam seu desenvolvimento.
Conhecimento básico
As observações e as análises feitas a partir das falas das crianças revelaram que, nessa faixa etária, o pensamento é marcado por particularidades e possui uma qualidade que não podem ser ignoradas pelos professores de Educação Infantil. Da mesma forma, proporcionar momentos em que as crianças conversem e responder às suas perguntas de forma interessada e desafiadora deveriam ser procedimentos comuns na escola. Isso quer dizer que um bom educador precisa ter o desenvolvimento infantil e suas características entre seus conhecimentos básicos. Saber as fases de desenvolvimento dos pequenos, segundo a perspectiva de vários autores, é importante para preparar o profisional para refletir sobre o que é realmente Educação, ajudando a planejar boas intervenções e fazer com que as interações entre crianças, bem como delas com adultos, consistam em momentos de aprendizagem.
As instituições de educação podem ser ambientes privilegiados para a observação dos fenômenos ligados ao pensamento sincrético, pois é o lugar onde as crianças são estimuladas a narrar acontecimentos, a interagir com os demais, a formular hipóteses e criar vínculos afetivos. Por isso, compreendê-las e fazer com que elas se expressem, mesmo fabulando e se contradizendo, significa instigar a criatividade e o questionamento. Não se pode esquecer que, aos 5 anos, as crianças passam por inúmeras transformações, fazem descobertas importantes acerca de si mesmas e começam a desenvolver novas habilidades. O sincretismo de seu pensamento nos revela características fundamentais sobre essa fase. Ignorá-las ou não considerá-las impedirá o professor de conhecer essas crianças como sujeitos singulares.
O pensamento sincrético não é um acidente, nem um momento que se deve esperar passar. Ele é legítimo e tem sua duração. Mas cabe aos educadores fazer com que as crianças sejam capazes, ao longo de sua formação, de conceituar, definir, comparar. A caminhada é longa, exige investimento, credibilidade, argumentação, respeito, companheirismo e sensibilidade. Sem o gosto pela pesquisa, sem o interesse genuíno pela busca de sentidos e de significado na fala das crianças fica difícil ser um bom educador.
(Cristiane Abrahão, pedagoga pelo Instituto Superior de Educação Vera Cruz, em São Paulo – SP)
1A coleta de dados foi feita a partir das gravações de áudio referentes às situações observadas enquanto as crianças estavam envolvidas em diversas situações da rotina escolar – como rodas de conversa e momento de atividade diversificada – em que elas podiam escolher o canto do qual desejavam participar (pintura, massinha, livros e jogos). A turma contava com 23 crianças e duas professoras e as observações foram feitas em uma escola particular de Educação Infantil da zona oeste da cidade de São Paulo durante o primeiro semestre de 2008
2Os nomes grafados aqui são fictícios a fim de preservar a identidade de seus autores.
Ficha técnica
Cristiane Abrahão – E-mail: crisa0112@yahoo.com.br
Para saber mais
Livros
- As origens do caráter na criança, de Henri Wallon. Ed. Nova Alexandria. Tel.: (11) 5571-5637.
- Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil, de Izabel Galvão. Ed. Vozes. Tel.: (24) 2246-5552.
- Pensamento e linguagem, de Lev Semenovich Vygotsky. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677.