interatividade com esculturas permite que crianças com deficiência se aproximem da linguagem artística
Nasci no interior de São Paulo, em uma cidadezinha chamada Monte Mor. Na terra vermelha, que desconhecia asfalto, desenhei muitas amarelinhas. Na beira dos riachos, acompanhava minha mãe e outras mulheres que, lavando roupas, entoavam cantigas que tenho ainda frescas na memória. Ali, meu primeiro contato com o barro. Passava horas de cócoras perguntando à minha mãe o que é que ela queria que eu fizesse com o punhado de terra molhada que estava em minhas mãos. Enquanto isso, ela, com quatro agulhas de bambu, tecia uma trama linda e dizia: “Faz aquela lavadeira ali e, depois, faz você nos braços da mamãe”.
Tive uma infância singela, nadando em rios e contemplando o balé das lavadeiras. Era tão mais fácil ser feliz. Cresci assim, menina livre, arteira e artista, acreditando no dom que o Criador havia me emprestado. Sempre tentando passar uma mensagem pela arte que fosse capaz de alcançar o coração dos homens. Hoje, brinco de modelar minhas memórias. Nunca fiz curso de escultura. Sou autodidata e utilizo o barro e o bronze como elementos principais para a formação de minhas esculturas. Elas são levantadas em barro e a camada de gesso é cortada. Quando levada ao forno, a parafina é derretida e o bronze é jogado para preencher a camada de cera perdida. Estudei história da arte e pintura e até cheguei a fazer trabalhos em cerâmica, mas não me satisfiz, porque queria criar formas humanas.
A série Cenas Infantis é um conjunto de 36 peças em bronze ocado, ecologicamente correto, que descreve os divertimentos dos pequenos que vivem no interior e se entretêm livremente com cirandas, bola de gude, pipa e amarelinha. Ela foi inspirada nos tempos de infância. As esculturas interativas retomam o mundo lúdico das relações infantis e resgatam as brincadeiras esquecidas pelas crianças das metrópoles.
Inspiração na infância
Nasci no mato, sai do mato, mas o mato não saiu de mim. Sou neta de índios, filha de artesã e aprendi desde pequenina a viver da terra. Meu foco é aproximar as pessoas e resgatar o que de mais bonito temos dentro de nós. Digo sempre que meu laboratório foi minha infância e a minha vida. Sei bem de minhas recordações de quando criança. Tardes fagueiras subindo em frondosas árvores, saboreando a fruta no tempo certo na companhia do menino que, astro de seu quintal, rodava o pião em manhãs ensolaradas e vida aberta em risos. Hoje me pergunto: “Quais serão as recordações de nossas crianças daqui a alguns anos?”. Horas em frente a um computador, passeios em shopping, jogos de videogame, namoro pela internet, aulas de balé, inglês e francês? Com tantos compromissos, fica difícil sobrar um tempo para ser criança.
Tenho uma filha de 11 anos que se chama Maria Isabel. Procuro ficar bastante junto dela. Sou muito constante em sua escola. Andamos juntas de patins, cuidamos de nossos animaizinhos (temos 11 gatos, duas tartarugas e três cachorros). Estou casada há 14 anos e meu marido, José Eduardo, tem mais cinco filhos. No total, são seis! Em meu jardim, plantamos árvores e flores e acompanhamos o crescimento delas. Acho tudo isso muito importante num tempo em que as pessoas queimam etapas. Em tudo existe um processo a ser cumprido passo a passo e de nada adianta desrespeitar isso. Maria Isabel traz sempre muitas amigas para casa, pois adora brincar em meu ateliê. Parece que leva muito jeito para artista plástica e, sempre que estou criando, permito que ela dê seu toque de criança. Resgatar a minha infância seria utopia.
Toda a saudade do que tive e do que sei que minha filha não terá, hoje retratada em cada uma de minhas obras. Tudo isso é, certamente, fruto de uma mãe geradora de sonhos que, driblando as dificuldades de uma vida bastante modesta, tinha sempre em seu rosto um sorriso que me confortava a alma. Tantas vezes com quatro agulhas de bambu e alguns novelos de linha, ela se mostrava uma artesã incrível. Brotava de suas mãos uma trama que em pouco tempo se transformava num lindo vestido rodado que em breve enfeitaria meu corpo de menina.
A artista e a criança
Volta e meia percebo que o adulto, muitas vezes, subestima as crianças. É preciso humildade para aprender com elas. É necessário voltar no tempo, resgatar a pureza e a ingenuidade que só os pequeninos têm, e isso não é nada fácil para nós, adultos. Lembro-me de que, por volta de 1999, teve no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, uma exposição de Lígia Clark [1920-1988]. Eu e minha filha, naquela época com 3 aninhos, fomos ver. A pequena ficou fascinada, pois era a primeira exposição onde ela podia tocar em tudo, sentir o gosto de sabores expostos, a textura de objetos e entrar numa instalação que simulava um útero. Era permitido entrar duas pessoas por vez em um aglomerado de balões bem apertados, como uma fenda, até que se chegava ao interior do “útero”, uma forma arredondada com sons que imitavam os batimentos cardíacos e de outros órgãos. Deitei-me com Maria Isabel de braços abertos uma ao lado da outra e ficamos sentindo aquele aconchego e observando tecidos delicados que voavam pendurados no alto da instalação. Minha filha perguntou: “Mamãe, lá dentro de você é assim?”. Respondi que sim e ela, em seguida, falou: “Incrível, não me lembro de nada disso, mas gosto de estar aqui”.
Daí por diante, para qualquer exposição que a convidava, ela, de imediato, perguntava: “É a da moça do útero? Vou poder tocar, sentir o gosto das coisas? Ou é daquelas exposições chatas que a gente não pode colocar a mão em nada? Onde já se viu criança enxergar sem pôr a mão, mamãe?”. Foi assim que percebi a importância do toque nos trabalhos de arte e pensei em incluir painéis táteis1 em minhas exposições. Essa idéia foi reforçada por um menininho que não enxergava e tocou em minhas obras. Após ter apalpado várias esculturas pequeninas, que cabiam em suas mãozinhas, me perguntou se eu desenhava também. Respondi que sim e, em seguida, nova pergunta: “Posso tocar nos desenhos?”.
Foi nesse contexto que passei a me envolver com associações que fazem trabalhos de integração de crianças com deficiência. Para lidar com esse público, comecei visitando o Instituto Benjamin Constant, a APAE, onde fui extremamente bem recebida pela Glorinha, que é professora e uma das diretoras. Não tenho nenhum laço profissional com a instituição, apenas afetivo, pois ela representa mais uma parte do aprendizado do pouco que sei. Algumas peças da exposição são interativas. Minhas esculturas são feitas para serem tocadas. Elas giram, sobem e descem. O toque permite a aproximação do artista com o público. É como se eles fizessem o mesmo processo que eu fiz para a criação da obra. Acho que é por isso que as pessoas se sensibilizam tanto com o meu trabalho. Bases acrílicas giratórias permitem a movimentação das esculturas. Os painéis táteis, com desenhos em alto-relevo, possibilitam a interação da pessoa com deficiência visual.
Quando expus no Museu de Arte Contemporânea (MAC) do Ibirapuera, em São Paulo2, inaugurei o Núcleo de Inclusão Social do MAM, também em São Paulo, com cinco painéis táteis e uma escultura em bronze chamada Adivinha quem é. Desde então, sempre procuro oferecer oficinas a esse público durante minhas exposições. Imagino que, com isso, muitos entenderão que é possível dar a esses indivíduos uma opção de vida melhor.
Pequenos criadores
As oficinas, adequadas ao perfil de cada instituição agendada, são monitoradas por arte-educadores preparados para receber crianças com deficiência. Sempre seleciono os contadores de histórias pessoalmente. Primeiro leio cada história e depois as ouço de olhos fechados para imaginar como as crianças que não enxergam vão entender o enredo. Faço questão de acompanhar o máximo que posso e percebo que o que ensino é muito pouco comparado ao que aprendo com elas. Vez ou outra me perguntam o que ensino a elas. Respondo que elas é que me ensinam e que é preciso humildade para aprender. Dentro de cada um existe um artista, num ritmo e tempo diferentes, mas devendo sempre ser respeitado. Tento, por meio desses encontros, resgatar valores dentro de cada um. Não somos números e sim seres humanos. Permitir que a criança percorra com os dedos o desenho pontilhado e perceber sua alegria e gratidão por tal experiência é algo indescritível. Faço um pouco pelos pequenos e eles nunca terão noção do bem que me fazem, do quanto me ensinam a enxergar além dos frágeis olhos humanos.
O tema de cada obra é apresentando em braile. A interatividade das esculturas, sempre em formas humanas e com o cunho social a que estão ligadas, é um diferencial. Por meio do toque, as crianças podem perceber a liberdade, por exemplo, de empinar uma pipa. As com pouca capacidade auditiva também merecem atenção, assim como as incapazes de se locomover e as com deficiência mental. Aproximar a criança da arte e do artista é também estabelecer elos com a vida. É nessa troca de emoções e experiências que confesso sair revigorada de cada experiência.
(Sandra Guinle, pintora, escultora autodidata)
1Os painéis são em braile.
2Sandra expôs Cenas Infantis no MAC em fevereiro de 2005. A exposição foi recorde de público. Para mais informações sobre a agenda cultural do museu fundado em 1963, entre no site www.macvirtual.usp.br.
Ficha técnica
Contato com a artista: Sandra Guinle
E-mail: sandra_guinle@br.inter.net
Tel.: (21) 2493-6283.
Site: www.sandraguinle.com.br
www.ibmcomunidade.com/cenasinfantis
Agradedecemos a artista Sandra Guinle, que cedeu graciosamente suas obras para reprodução.