Inclusão na escola e democratização do acesso à cultura letrada é, sem dúvida, uma das prioridades da educação em nosso país. No município de embu, são paulo, um esforço coletivo de professores e formadores garante a aprendizagem de todas as crianças, incluindo-as na cultura escrita
O título deste artigo, inspirado na produção cinematográfica de mesmo nome, reflete o espírito do projeto educacional desenvolvido pelo município de Embu. No filme, uma jovem novata no ofício de lecionar, ao ter que substituir o professor titular numa escola de precárias condições, segue as orientações que recebeu de seu antecessor: “Quando eu voltar quero encontrar todos os alunos, não quero nenhum a menos”. O desafio lançado ajuda-a a perceber que é preciso empenhar-se para que os alunos não desistam de estudar, abandonando a escola.
O Projeto Letras e Livros, do município do Embu, em São Paulo, revela uma preocupação semelhante à da professora do filme. A Secretaria de Educação e seus profissionais empenham-se com competência e perseverança para não “perder” nenhuma criança para a evasão e para o fracasso. Pelo profissionalismo e sensibilidade, o projeto é um dos vencedores do Prêmio Além das Letras, e o município é um dos integrantes da rede do mesmo nome de formadores em alfabetização.
Cuidando da inclusão
O Projeto Letras e Livros1 abrange todas as escolas municipais de Ensino Fundamental de Embu e investe fortemente na formação dos professores para acabar com o alto índice (20%) de crianças com dificuldades de leitura e escrita. São crianças de 2ª, 3ª e 4ª séries indicadas pelos professores como não alfabetizadas. O objetivo principal do projeto é “nenhum a menos”, ou seja, que todos os alunos, ao concluírem a 4ª série, sejam leitores competentes.
O artigo 24 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394/96 aponta “obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino e seus regimentos”. Assim que a nova gestão assumiu, foram estabelecidos princípios norteadores para a Educação no município: democracia do acesso e condições de permanência do aluno na escola, democracia da gestão, qualidade do ensino e valorização do profissional da Educação. Diante do alto número de crianças com dificuldade em leitura e escrita, buscou-se uma proposta que respeitasse a realidade de cada um dos alunos, despertando neles o interesse pela literatura.
A Secretaria Municipal de Educação encontrou alternativas àquelas que normalmente eram utilizadas nas redes públicas, tais como reforço e classes de aceleração. Diante da urgência de iniciar o trabalho com as crianças, optou-se por uma formação/ supervisão, isto é, discussão e orientação da prática dos professores, trazendo subsídios teóricos em função das necessidades identificadas. Articulando prática e teoria, o projeto exigiu sensibilidade do educador, amplo repertório literário e observação individual dos alunos, para conseguir a tão almejada inclusão de todos os estudantes.
Como objetivos específicos, o projeto visa a: superar a distorção idade/série nas séries iniciais do Ensino Fundamental; recuperar a auto-estima do aluno por meio da aquisição da leitura e da escrita; propiciar aos alunos o contato com literatura infanto-juvenil de boa qualidade; promover a reflexão dos professores em relação ao processo de alfabetização; realizar uma formação com os professores para um trabalho contínuo de avaliação, identificação e superação dos problemas de aprendizagem dos alunos; registrar e divulgar a experiência para que ela seja conhecida por outros municípios.
Atendimento individualizado
O Projeto Letras e Livros quer que os alunos se tornem leitores competentes. Por este motivo, o material básico são livros de literatura infantojuvenil de boa qualidade e também conjuntos de letras móveis, que permitem maior reflexão da criança sobre a escrita. O ajuste do livro aos interesses individuais de cada criança é fundamental para o sucesso do trabalho. Para a aluna Bianca, que se recusa a falar, Os Cisnes Selvagens ou A Princesa Silenciosa podem ser um bom começo. Para Luís, que é santista, Uma História de Futebol ou Decisão de Campeonato. Assim os meninos vão aprendendo a ler e percebendo que a literatura tem algo vital a lhes dizer. A competência aumenta quanto maior é o prazer. O mesmo se faz com a escrita. As crianças escrevem nomes de pessoas e coisas queridas, cartas e bilhetes (que são entregues aos destinatários), diários e histórias em que são protagonistas.
O trabalho suplementar para os alunos com dificuldades é feito por professores da rede em horário específico, com remuneração própria. As crianças recebem esse atendimento individualizado em seu período normal de aula, e em alguns casos nos Horário de Trabalho Pedagógico Individual (HTPI). Dá-se ênfase à leitura de textos literários e à escrita personalizada – ajustada aos interesses e possibilidades de cada criança. São muitos os resultados positivos e as ações formativas deste projeto. Por uma questão de espaço, vamos destacar o acompanhamento longitudinal da aluna Paula, com reflexões de duas professoras, durante dois anos.
Conhecendo a aluna Paula2
Reflexões da professora Cleide Goes, em 2002 Na primeira entrevista, em maio de 2002, descobri que Paula tem 12 anos e mora com sete pessoas em uma casa de um quarto e cozinha. Seu sonho, ainda irrealizado, é uma festa de aniversário em que ganhe roupas de presente. Gosta de macarronada com carne moída e doces. Freqüenta a igreja Deus é Amor e disse que queria aprender a ler. Ela se mostrou bastante inquieta. Na segunda entrevista, pude saber um pouco mais sobre sua família, a mãe Tereza e o pai Inácio. Nesta oportunidade escrevi os nomes de seus pais com letras móveis e ela copiou corretamente. Escrevemos outros nomes de membros da família: Cileide, Tatiane. No terceiro encontro partimos do nome dela e sugeri que formasse palavras com as letras móveis disponíveis. Com o P sugeriu Pepe e pato.
Quando pedi que ela me desse as letras do seu nome, descobri que ela só conhecia as vogais. Só me deu o A e o U. Embaralhei as letras do nome e ela não conseguiu reordenar. Em outra oportunidade, apresentei as figuras de uma história em quadrinhos, representando quatro momentos do dia: manhã, meio-dia, tarde e noite. Ela ordenou corretamente, sem ajuda. Depois desenhou bem, com muitos detalhes, sem rever as figuras. Usando as mesmas imagens (galo cantando, etc.) escrevi as frases que ela ditava, a partir das figuras. Ela ditou:
“O sol está nascendo e o galo está cantando” (1ª).
“O galo canta feliz no terreiro” (2ª).
“Quando o dia acaba e a noite chega, todos vão dormir, a flor, a lua e o galo” (3ª).
Escrevi as três frases em tiras, com letras maiúsculas de imprensa, e embaralhei-as. Paula reordenou-as corretamente e colocou-as, sozinha, na seqüência. Na sexta entrevista ela disse que era seu aniversário. Escreveu seu nome com letras móveis e também no caderno, com letra cursiva, e propôs fazer também meu nome. Ela julgou que fosse com K (o que pode ser considerado um erro inteligente) e conseguiu compô-lo, com a minha ajuda. Eu pedia as letras, e ela encontrou o E e o I, mas não o C, o L e o D. Verifiquei, porém, que se as letras estivessem em ordem alfabética, ela as teria encontrado.
Passamos toda a sessão conversando. Consegui autorização para ela tomar banho na escola, já que era uma necessidade específica. Ela deseja muito freqüentar a biblioteca, e eu a desafiei então a aprender a ler bem. Ela ditou: “Aprendi a ler sobre o galo que canta e sobre o meu aniversário, e esta semana vou fazer 13 anos”.
Os avanços e os desafios
No início de setembro, discuti novamente o seu caso com a supervisora, porque ela continuava sem dominar inteiramente o alfabeto, embora tivesse aprendido de cor a recitá-lo. Manifestava interesse no livro Dia e Noite, da coleção Gato e Rato, relendo-o com atenção. Este livro é considerado por nós como tendo nível 2 de dificuldade, pois apresenta muitas imagens e pouco texto. A supervisora, relendo os registros, encontrou vários pontos animadores: bom vínculo já formado, graças às propostas variadas, interessantes e pessoais, e a sensibilidade para ouvi-la; ausência de qualquer possibilidade de deficiência mental, o que ficou claramente demonstrado na quarta entrevista, não só pela reordenação da seqüência, como pelo texto ditado; interesse em aprender, manifestado de várias formas: verbal, pela aceitação de todas as propostas sem resistência, pela iniciativa de memorizar o livro.
O ponto mais delicado era a questão da higiene, que poderia gerar fortes sentimentos de inferioridade e a resistência à situação de intimidade, que supõe aproximação física. Esta questão não pareceu resolvida ainda, sendo urgente identificar o motivo para eliminá-lo. Por que ela não se sente à vontade para tomar banho na escola? Falta toalha, sabonete, roupa branca? Ou ela se sente mal por ser a única, etc.? Como resolver estas questões aparentemente simples?
Sugestões da Supervisão
Em relação à situação de leitura, dada a sua urgência, foi proposto conseguir um repertório de vinte e poucas palavras significativas e trabalhá-las todas as sessões. Além dos cinco nomes de pessoas próximas (Paula, Inácio, Tereza, Cleide, Tatiane), poderíamos propor mais duas séries de dez: a primeira relativa a objetos cotidianos (lápis, caneta, caderno, giz, livro, borracha, régua, papel, giz vermelho) e a outra com dez nomes de partes do corpo (cotovelo, barriga, perna, pé, braço, mão, orelha, cabeça, nariz, boca).
Em primeiro lugar, deveríamos usá-las de modo diagnóstico, para acompanhar a sua evolução, ditando-as todo mês e anotando a sua escrita espontânea antes de completá-las com a aluna (a palavra sugerida é “completar”, em vez de “corrigir”, sempre que possível). Muitas atividades foram indicadas visando auxiliar Paula nas suas dificuldades, algumas um pouco infantis para a idade. Para compensar Paula, que já tinha na época 13 anos, seria necessário ler para ela histórias de amor e aventura com heroínas da sua idade.
Valeria a pena também pensar na possibilidade de recompensar leitura com leitura, isto é, premiar a vitória no bingo, ou em outros desafios, com revistinhas que seriam só dela. Outra ação importante seria encorajar ao máximo o “palpite” quando a aluna diz não saber, e depois perguntar por que escolheu uma palavra e não outra. Com isto, consegue-se entender como está funcionando a sua inteligência diante da tarefa cognitiva que é a leitura.
O pedido de desembaralhar as palavras ou consertar erros deliberadamente cometidos vai, mais tarde, obrigá-la a olhar analiticamente para a estrutura interna da palavra. Isto permitirá também verificar se o aluno não ousa e não sabe, ou se sabe mas não ousa. Situações psicologicamente muito diferentes. A segunda, confirma uma insegurança extrema, que deve ser habilmente trabalhada. Um dos melhores recursos para lidar com a insegurança é a previsibilidade da situação. Por isso, muitas vezes o virtuosismo da professora, que traz um repertório variado de atividades, sendo uma poderosa estratégia para atrair os resistentes e desinteressados, pode ser contraproducente com os inseguros. Com estes, variar as propostas dentro de um número inicialmente limitado de palavras fortemente significativas pode ser essencial para que ousem se arriscar.
O jogo previsibilidade/surpresa é uma dialética sutil. Embora opostos, são ambos indispensáveis, porém em doses muito diferenciadas, de acordo com as circunstâncias. A previsibilidade reassegura e tranqüiliza; a surpresa estimula e anima. Do que necessita neste momento Paula?
Paula no ano seguinte (Reflexões da professora Alexandra Contocani, em 2003)
A proposta para o bimestre foi atender individualmente as crianças com mais dificuldades na leitura e escrita, dentro do horário escolar e nos HTPIs. Foram cerca de 12 atendimentos, em que pude acompanhar de perto as crianças que necessitavam de ajuda particular. Vejamos um exemplo dos registros que eu realizava para poder refletir a respeito do processo de ensino-aprendizagem proporcionado por estes encontros, que tiveram continuidade posterior, realizados por outra professora.
1º encontro com Paula: 02/04/03, 45 min.
Fui para uma das escolas da rede municipal de Embu para atender a aluna Paula. Antes de atendê-la visitei as três salas do projeto, que estavam muito aconchegantes. Conversei um pouco com os professores, especialmente com a Cirlene, que já está trabalhando com ela havia algum tempo. Retirei a Paula da sala de aula, que fica no terceiro andar, e durante o percurso até a sala do projeto, no térreo, pude me apresentar e perguntar se ela gostaria de ler comigo. Na sala, propus que sentássemos lado a lado no tapete com almofadas.
Mostrei-lhe cinco livros com diferentes níveis de dificuldades: O Reizinho Mandão, A Bolsa Amarela, Pandolfo Bereba, Contos Tradicionais do Brasil e Contos de Andersen, com tradução de Monteiro Lobato, e pedi que escolhesse um para lermos juntas. Paula pegou Contos Tradicionais do Brasil, folheou e disse: “Este não, as letras são muito pequenas”. Manuseou então A Bolsa Amarela e disse: “Quero este!”.
Contei a ela que eu adorava aquele livro e que o havia lido muitas vezes quando menina. Pedi que tentasse ler o título. Primeiro ela disse que não sabia. Encorajei-a e perguntei: “O que é que tem na capa?”. Ela então leu apontando para as palavras: “A Bolsa… Amarela”.
Iniciei a leitura e quando cheguei no momento em que uma das personagens começa a escrever cartas a outra, aproveitei para perguntar a Paula se ela queria escrever uma carta para alguém. Ela respondeu que sim. Falei que ela podia ditar que eu escreveria. Ditou-me a seguinte carta:
“Paula e Luiz Carlos
Gosto de você. Não sei se você gosta de mim, mas eu gosto de você.
No Eclipse do Sol
Minha boca beija a tua
Passei pelo sol
Não me queimei
Passei pela água
Não me molhei
Mas por você
Me apaixoneiPaula ama Luiz Carlos. Eu sei que você gosta de mim, mas por isso eu vou continuar gostando de você. Nunca vou te esquecer, anda sempre sorrindo.
Mande sua resposta se vai namorar comigo. Não rasgue esta carta. Eu sei que você gosta de mim, mas não tem coragem de falar.”
Depois leu toda a carta acompanhando as palavras com o dedo. Ficou em dúvida quando apareceu pela primeira vez a palavra “gosto”. Nesse momento eu ajudei-a e ela seguiu lendo com segurança. Parabenizei-a pela leitura. Combinamos que na próxima sessão passaríamos a carta para um papel mais bonito e faríamos um envelope, para que ela pudesse entregá-la. Perguntei se já queria voltar para a sala. Respondeu que não e foi logo pegando Contos de Andersen e dizendo:
“Lê esse aqui para mim”.
Expliquei que naquele livro havia muitas histórias e que eu leria os títulos de todas para que escolhesse uma. Quando terminei, perguntou-me que história era aquela, apontando com o dedo entre O Isqueiro Mágico e O Patinho Feio. Li O Patinho Feio e ela disse: “Não, não quero essa”.
Depois, apontando com o dedo, leu: “O Isqueiro…Mágico” e disse com convicção: “Quero esta aqui”. Contei a ela que nunca havia lido aquela história e que iríamos conhecê-la juntas.
A história fala de um soldado que com ajuda de uma feiticeira consegue muito dinheiro e um isqueiro que realiza todos os seus desejos. Comecei a ler e, percebendo que as palavras “avental”, “cachorro”, “moedas de cobre”, “moedas de prata” e “moedas de ouro” eram recorrentes no texto, fui deixando um tempo de silêncio quando elas apareciam e Paula foi completando as frases sem dificuldade, de modo que pode participar ativamente da leitura de um livro de nível 5.
Tivemos que parar a leitura antes de terminar a história, pois já era quase meio-dia. Marcamos o livro onde paramos e combinamos que terminaríamos na sessão seguinte. Fui embora muito contente com nosso primeiro encontro.
2º encontro: 04/04/03, 60 min.
Lemos juntas o relato que escrevi da sessão anterior. Paula pareceu atenta e entusiasmada com a leitura. Participou da mesma forma que no livro que lemos na quarta-feira, completando as palavras quando eu parava a frase no meio. Quando chegamos na carta, perguntei se ela não estava cansada e se queria fazer outra coisa. Ela disse que não e quis ler o relato até o final. Quando acabamos, perguntei se ela gostaria de terminar a leitura de O Isqueiro Mágico ou se preferia escrever a carta para o Luiz Carlos na máquina de escrever. Escolheu a segunda opção, dizendo inicialmente que não ia conseguir escrever e pedindo para que eu o fizesse. Eu disse a ela que a ajudaria, mas confiava que iria conseguir. Começou então a escrever com apoio da carta manuscrita com letra de forma maiúscula. Conforme ela ia escrevendo (copiando) cada palavra, pedia que ela lesse. Conseguiu ler e escrever quase tudo com pouca ajuda. Percebi que Paula, em alguns momentos, pensava que uma letra representava uma sílaba e que ainda não conhecia as letras Q e Y, e não sabia que de vez em quando usamos SS para escrever algumas palavras. Na hora de escrever, não estava muito atenta aos espaços entre as palavras, por isso, na próxima sessão contaria a ela que o espaço existe para separar palavras, e que não as escrevemos “grudadas”.
No final da sessão perguntei a Paula se eu podia mostrar para a professora Cilene o relato que lemos juntas. Ela disse que sim. Deixei o relato e o livro, que não conseguimos terminar de ler, por falta de tempo, para que a professora Anna Andréia entregasse para a Cilene. Hoje a sessão foi muito boa, pena que o tempo passou muito depressa!
3º encontro: 09/04/03, 1 h 15 min.
Hoje eu e a Paula trabalhamos juntas mais uma vez. Ela me contou que terminou de ler O Isqueiro Mágico com a Cilene e que gostou da história. Terminou de escrever a carta para o Luiz Carlos e fez um envelope vermelho onde quis escrever com a letra dela a seguinte frase: “Nós com nós é nós porque sem nós não é nós”. Sugeri que usássemos primeiro as letras móveis para compor a frase. Separei todas as letras que seriam usadas e ela compôs a frase com a minha ajuda.
Quis escrever também Paula e Luiz Carlos, o que conseguiu com mais facilidade e sem precisar que eu lhe fornecesse as letras. Pediu que eu lesse o relato do nosso 2º encontro. Fizemos mais uma vez uma leitura cooperativa, na qual ela ia completando algumas palavras do texto diante do meu silêncio. Após essa atividade, solicitou que eu lesse uma história do livro Contos de Grimm. Escolheu Chapeuzinho Vermelho.
Durante a leitura, contou-me que também tem uma avó. Pude observar que Paula conseguiu ler sozinha as seguintes palavras: “você”, “vou”, “resposta”, “Luiz Carlos”, “Paula”, “nós”, “não”, “isqueiro”, “mágico”, “chapeuzinho”, “vermelho”, “lobo”, “avó”, “vovó” e “menina”. São 16 palavras, que bom! Um detalhe me chamou atenção: Paula conseguia ler as palavras “avó” e “vovó”, o que confirma que além de ler pelo sentido, estava também prestando atenção nas letras que compõem cada palavra. Cilene contou que Paula havia lido sozinha várias palavras da história. Ela está indo muito bem, daqui a pouco estará lendo tudo sozinha.
4º encontro: 16/04/03, 45 min.
Paula leu comigo o livro Nós, de Eva Furnari (nível 4). Durante a leitura, sempre que eu propunha que ela lesse alguma palavra pelo sentido, conseguia. Leu as seguintes palavras: “nós”, “nó”, “mel”, “garoto”, “menino”, “bicicleta”, “repolho”, “casa”, “amarela”, “nariz”. No total são dez palavras. Conseguiu ler também a lista de palavras do 3º encontro. Ficou muito contente em saber que já havia lido 16 palavras e me pediu que somasse as do encontro passado com as lidas hoje. O resultado foi 25 palavras, pois a palavra “nós” está nas duas listas. Vale observar mais uma vez que ela leu “menino” e “garoto” adequadamente, o que revela sua atenção não somente ao sentido, mas também à palavra lida.
Em seguida mostrei-lhe uma tira com letras de imprensa e de mão (maiúsculas e minúsculas). Ela me ajudou a encapá-la com contact e recortou as sobras de papel. Disse-lhe que poderia levar para a sala de aula, para consultá-la quando tivesse alguma dúvida. Falou que agora ia saber as letras da professora. Jogamos bingo com a cartela de letras minúsculas de imprensa. Paula precisou consultar a tira para achar as letras: f, g – reparou que o g minúsculo da tira era diferente do g da cartela) –, h, j, k, q, r. Não houve tempo para ditar as letras i, p, u, x. As demais, Paula acertou sem titubear.
Quando tirava alguma letra da cestinha e perguntava que letra era, na maioria das vezes ela não sabia dizer. No entanto, Paula sabe recitar o alfabeto corretamente e conhece visualmente as correspondentes minúsculas de várias letras maiúsculas. Na cartela do bingo, espontaneamente, Paula anotou, a lápis, a versão maiúscula da letra ditada. Contei-lhe sobre os encontros de supervisão do Projeto Letras e Livros e disse-lhe que às vezes lia para as outras professoras tudo o que escrevo sobre ela e tudo o que já está conseguindo. Paula sorriu.
5º encontro: 05/05/03, 30 min.
Depois de duas semanas sem conseguir encontrar Paula, finalmente pude revê-la. Estava com muita saudade. Começamos a sessão pela leitura do livro Cocô de Passarinho (nível 2). Paula pareceu estar desinteressada, quase não olhou para o livro, mas quando perguntei-lhe se queria parar de ler, ela disse que não. Propus, após a leitura, que escrevesse seu nome. Escreveu com as letras móveis PALUA. Perguntei se era assim mesmo o nome dela, então ela corrigiu. Depois pedi que escrevesse Luiz Carlos. Ela escreveu LUS DAIE. Depois, com algumas intervenções, chegou à versão correta.
Antes de ir para a sala, me disse que estava precisando de um caderno. Saí da sessão preocupada, pois Paula pareceu alheia e distante.
6º encontro: 14/05/03, 60 min.
Hoje nosso encontro foi muito bom! Começamos com a leitura do livro Dito e Feito (nível 4). Paula conseguiu ler as palavras: “rio”, “ovos”, “ganso”, “bruxa”, “pão” e “avental” várias vezes. Ela disse que gostou do livro. Depois apresentei-lhe um caderno. Ela quis escrever no caderno os nomes de suas amigas: Viviane, Karina, Jaciele, Tatiane, Evelin, Daniele, Roberta, Jane e Jenifer. Escreveu com ajuda. Também quis escrever o nome de um lugar para onde queria viajar: Paraíba. Disse que seu irmão morava lá.
Primeiro escreveu assim: PAIABRA, PAIBARA, APAIBRA. Perguntei então se ela sabia qual, dessas três palavras, era a correta: PAIABRA, RAIBAPA, PARAÍBA. Identificou rapidamente a correta. Em seu caderno também escreveu, com ajuda, o nome da matéria preferida: (Matemática) e o nome de sua professora de sala (Célia).
Obs.: Nesta semana a professora Cirlene, do projeto, que também estava atendendo a Paula, se desligou, sendo substituída pela professora Silvana.
7º encontro: 22/05/03, 60 min.
Começamos nossa sessão pela leitura dos envelopes com as palavras importantes para Paula: nomes das amigas, matéria preferida, lugar que quer conhecer, nome de sua professora. Quando estávamos lendo o envelope do lugar que quer conhecer, Paula me contou que queria conhecer Santos. Pedi a ela então que escrevesse a palavra. Com as letras móveis fez: SANTOU, SANTOI, SANTOSU, SANTOS. Disse então que queria escrever uma carta para seu irmão, que mora na Paraíba. Ditou-me:
“Meu irmão,
Tou com saudades, queria te ver, mas não posso ir aí. Por isso estou te mandando essa carta. Nada anda bem por aqui. Como você vai aí? Queria que você viesse aqui, mas não pode vir, meu pai também está com saudades. Meu pai não pode mandar 100 reais então quando ele receber vou mandar ele mandar o dinheiro. Minha irmã Luzinete tem uma nenê que se chama Michele. Queria que você pudesse ver a Michele por isto estou mandando esta carta. Tou com saudades. Paula que mandou. Todo mundo está com saudade. Luzinete e Michele, Damiana, Tereza, Tatiane, Cileide, Angelina, Corrinha, Dande, Ingrid, Tita e Paula. Muitos beijos. Te amo.Rua China, nº 2 – Embu”
Combinamos que Paula traria o endereço do irmão na Paraíba no nosso próximo encontro, para que pudéssemos enviar a carta.
8º encontro: 30/05/03, 15 min.
Fui à escola excepcionalmente na sexta-feira, pois não encontrei Paula na quinta-feira. Ela estava na aula de Educação Física, mas eu convidei-a mesmo assim para a sessão. Perguntei sobre o endereço do irmão e ela me respondeu, muito decepcionada, que não havia encontrado o envelope onde ele estava. Disse-me que sua mãe havia saído de casa, parecia estar triste. Em seguida fez um comentário sobre o jogo da Educação Física. Perguntei se ela queria voltar para a aula, respondeu que sim. Nos despedimos.
9º encontro: 10/06/03, 60 min.
Infelizmente não pude atender Paula na semana passada, pois ela faltou. Já estava com saudades, por isso mandei uma carta para ela.
Hoje nosso encontro foi maravilhoso! Começamos lendo juntas o livro De Onde Viemos. Paula conseguiu ler sozinha muitas palavras do texto, mas, em determinado momento, me disse que não poderia continuar a leitura do livro, pois ainda era muito criança. Durante a leitura achou interessante a palavra “trigêmeos”. Propus então que a encontrasse em uma página só de texto. Ela disse que não conseguiria, mas eu insisti que ao menos tentasse.
Em seguida apontou corretamente a palavra. Fiquei muito feliz, pois percebi que Paula já está conseguindo ler, embora às vezes tenha medo de arriscar. Continuamos nossa sessão com a leitura de um conto tibetano do livro Variações sobre o Tema Mulher. O conto era o do unicórnio. Paula demonstrou muito interesse pelo texto e participou bastante. Não conseguimos terminar a leitura, pois bateu o sinal, mas deixei o livro para a professora Silvana terminar de ler.
10º encontro: 18/06/03, 40 min.
Um dia muito especial! Paula conseguiu ler uma poesia inteira sozinha! Já a caminho da sala, me disse: “Sabia que a minha professora disse que eu já sei ler?”. Já estava decidida a propor um desafio maior a Paula, e esta afirmação me encorajou ainda mais. Havia trazido o Livro de Letras, de Vinicius de Moraes. Abri na página do conto Casa e pedi que ela lesse. Primeiro olhou para mim, desconfiada, depois leu tudo, tudo mesmo, sem nenhuma ajuda. Em seguida leu As Meninas, de Cecília Meireles. Precisou de pouca ajuda. Hoje percebi que Paula já está lendo sozinha. Fiquei muito feliz.
11º encontro: 26/06/03, 45 min.
Trouxe para Paula escutar a música Velha Infância, dos Tribalistas. Ela gostou muito e pediu para ouvir de novo várias vezes. Depois acompanhou com o dedo a letra da música, enquanto ouvia. Às vezes seu dedo se desencontrava da palavra cantada. Neste momento recuei um pouco, reduzindo o número de visitas, mas intensificando a correspondência escrita. A esta altura recebi uma carta que ela me disse ter escrito sem ajuda. Veio em um envelope feito por ela mesma. Transcrevo a carta mantendo os erros ortográficos e a original.
Ainda houve mais um encontro, que foi registrado em vídeo, onde lemos juntas O Rei Bigodeira e a Sua Banheira. Desde o início me envolvi profundamente com Paula. Tive que, por este motivo, administrar as sensações dialéticas de impotência e onipotência que me invadiram em determinados momentos de nossa história. Hoje ainda me vejo em conflito. Como será que ela está na 5ª série? O que podemos fazer para reivindicar que este tipo de acompanhamento se estenda pelo tempo que for necessário? Como garantir que Paula não seja mais uma criança a abandonar a escola? Tenho consciência de que tudo o que fizemos por ela não foi pouco, mas é difícil deixar de pensar no que será feito daqui para frente.
(Cleide Goes e Alexandra Contocani, professoras do Município do Embu – SP)
*Título do filme de Yi Ge Dou Bu Neng Shao, China, 1998, drama, 106 min. Direção de Zang Yimou.
1Projeto em andamento desde abril de 2002. Tem sua origem na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação de São Paulo (FEUSP)
e conta com a assessoria de Heloysa Dantas.
2O nome da aluna foi trocado para preservá-la.
Relação de livros e discos utilizados
- A Bolsa Amarela, de Lígia Bojunga. Ed. Casa Lígia Bojunga. Tel.: (21) 2516-2581
- Cocô de Passarinho, de Eva Funari. Ed. Cia. das Letrinhas. Tel.: (11) 3167-0801
- Contos de Andersen, de Hans Christian Andersen. Ed. Ática. Tel.: (11) 3346-3000
- Contos De Grimm, de Jacob e Wilhelm. Ed. Ática. Tel.: (11) 3346-3000
- Contos Tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo. Ed. Global. Tel.: (11) 3277-7999
- De Onde Viemos?, de Paul Walter, Arthur Robins e Peter Mayle. Ed. Nobel. Tel.: (11) 3706-1466
- Dito e Feito, de Jannifer Armstrong. Ed. Brinquebook. Tel.: (11) 3742-8142
- Melhores Poemas de Cecília Meireles, Cecília Meireles. Ed. Global. Tel.: (11) 3277-7999
- O Livro de Letras, Vinicius de Moraes. Ed. Cia das Letras. Tel.: (11) 3167-0801
- O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha. Ed. Salamandra. Tel.: (11) 6090-1500
- Pandolfo Bereba, de Eva Funari. Ed Moderna. Tel.: 0800-172002
- Variações sobre o Tema Mulher, de Jette Bonaventure. Ed. Paulus. Tel.: (11) 5084-3066
- CD Os Tribalistas. Gravadora IME. Encontrado em lojas de CDs e Livrarias.
Ficha técnica
Secretaria de Educação, Cultura, Esportes e Lazer do Município do Embu – Rua Andronico dos Prazeres Gonçalves, 114
Embu das Artes – São Paulo – SP. CEP: 06804-200
Tel.: (11) 4704-3500. Fax: (11) 4704-6185. E-mail: educacao@embu.sp.gov.br
Coordenadora da equipe pedagógica: Lídia Maria Balsi Machado
Supervisora responsável pelo Projeto Letras e Livros: Laura Dantas de Souza Pinto
Assessora: Heloysa Dantas
Educadoras: Alexandra Contocani, Cilene Jeronymo, Cleide Ferreira de Góes, Maria Doredi Gonçalves, Nadir Maria F. Carvalho, Rita de Cassia Ferreira, Silvana Carvalho Zelante Escolas: E.M. Astrogilda de Abreu Sevilha, E.M. Elza Marreiro Medina, E.M. Iodoque Rosa, E.M. Janaina Agostinho Oliveira, E.M. Mauro Ferreira da Silva; Escola Municipal Villa-Lobos