Pequenos Gestos, Grandes Atitudes

Presenciei, recentemente, dois fatos que se passaram com um grupo de jovens e professores de um dos Centro da Juventude, em São Paulo. Ali, jovens de 12 a 14 anos orientados pelas professoras da instituição, desenvolviam atividades do projeto Clube de Leitores. Eu, coordenadora responsável pelo projeto de formação de professores, fiquei com a tarefa de organizar a ida a uma livraria, onde o grupo compraria livros para compor a biblioteca de sala. As professoras da turma já haviam selecionado alguns títulos com eles, consultando as indicações e resenhas disponíveis em revistas e jornais.

Meu papel era fazer a articulação entre o Espaço Gente Jovem e a livraria, para que tudo pudesse sair conforme o planejado e os meninos fossem bem recebidos. Procurei combinar as atividades para que eles pudessem não só comprar os livros, mas também conhecer a livraria e seu modo de funcionar, afinal alguns desses jovens nunca haviam entrado num lugar como aquele. No dia combinado, lá estava eu, lado a lado com as professoras. Fiquei esperando a chegada de todos. Alguns, extremamente pobres, se apresentaram como estão acostumados no dia-a-dia: roupas simples, chinelos,
etc.

A professora que os recebeu, preocupada com o fato de que poderiam ser vítimas de discriminação, como não é raro acontecer, tratou de procurar um tênis para aquele que estava de havaiana, um pente para aquele que não havia se penteado, uma blusa melhor para o outro que tinha a roupa muito manchada e furada. Pensei comigo mesma: tanta gente fala em auto-estima e pensa em dinâmicas para trabalhar com as crianças, faz “projetos” para desenvolver tais “conteúdos”, imagine!? Enquanto isso, aquela professora, com uma preocupação genuína e incorporada em seu gesto, cuidava da imagem daqueles garotos e defendia na prática a integridade de seus alunos.

Menina Lendo, Aldemir Martins. Instituto Cultural Itaú

Menina Lendo, Aldemir Martins. Instituto Cultural Itaú

Na livraria do shopping fomos recebidos pelos atendentes, que estavam bem preparados para mostrar como trabalhavam. Dividiram os jovens em subgrupos para fazer um tour pelas estantes, mexer no terminal de computador, pesquisar títulos, autores, localizá-los nas prateleiras, identificar autores, manusear os livros e fazer suas escolhas. Eu apresentava títulos e os ajudava a escolher, quando me deparei com um jovem de 14 anos. Ele havia escolhido um livro com muitas ilustrações e pouquíssimo texto. Achei estranho, tentei conversar, mas ele me respondeu que queria um livro pequenino, uma bibliazinha, conforme as palavras dele. Ao pedir que me mostrasse o que realmente queria, ele me levou a um balcão e apontou, sob o vidro, os “Minutos de Sabedoria”. Pedi que esperasse um pouco e fui me informar com a professora, tão preocupada e conhecedora de seus alunos. Ela me contou que aquele rapaz não sabia ler nem escrever e que, provavelmente, a escola não o aceitaria mais no ano seguinte. Fiquei preocupada, estaríamos “forçando a barra” do garoto, indo além da sua possibilidade, passando pela tangente no seu desenvolvimento potencial, obrigando-o a escolher um livro para ler, sem que soubesse ler?

Nesse caso, sua lógica tinha razão: quanto menor e mais ilustrado, menos texto. Não podia deixar esta oportunidade escapar de minhas mãos, procurei à minha volta algo que lhe satisfizesse e ao mesmo tempo fosse um texto adequando à sua idade. Ziraldo me salvou! Mostrei a ele o Menino Maluquinho, na versão pequenina, parecendo uma “bibliazinha”. Contei que aquela história tinha tudo a ver com ele e que sua professora prometera ajudá-lo na
leitura. Assim sendo, ele aceitou e efetuou sua compra. Ao final do passeio, todos felizes, com seus pacotes nas mãos, com direito a marcador de página e tudo mais. Tinha dado tudo certo. Mas a história que vivi com aquele garoto e sua professora não saiu de minha cabeça.
Não sei se teve tanta importância para eles como teve para mim.

Aquele garoto simboliza milhares de crianças brasileiras excluídas do processo educativo, sem vez e sem voz. Sua professora, para mim, significa a oportunidade de continuar na minha profissão, de lutar por melhor qualidade de educação para todos, sem exceção.

(Cisele Ortiz, psicóloga e coordenadora de projetos do Crecheplan)

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