Analisando o projeto estético da criança

Lucília Helena Franzini¹


A investigação acadêmica e didática ressalta o percurso estético e expressivo das crianças na educação infantil.


Durante a investigação², procurei dar visualidade aos processos autônomos e peculiares de cada criança investigada; por esse caminho, precisei me reencontrar, estar próxima a elas e me abrir para o que vinha delas. Para isso, escolhi um lugar chamado Mesa de Desenho, onde as crianças desenvolvem a expressividade de forma livre, todos os dias, como uma prática já consolidada na escola.

A Mesa de Desenho e seu funcionamento

A montagem e a organização da Mesa de Desenho são diárias, e é o professor que tem a função do dia (isso é previamente combinado) quem define onde e como será a sua configuração no Quintal: embaixo das árvores, no galpão, em frente à sala, na quadra ou sob uma tenda; com as crianças sentadas em cadeiras, no chão ou em pequenas almofadas, de pé ou ajoelhadas; em volta de mesas, bancos ou tábuas apoiadas sobre pneus ou cavaletes altos ou baixos; não há regras fixas para a sua criação.


1 Coordenadora de Artes na Escola de Educação Infantil Grão de Chão, São Paulo (SP).
2 Investigação iniciada em 2013, na pós-graduação da Faculdade de Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo.

Para a montagem da Mesa usamos uma caixa transparente, que chamamos de Caixa de Desenho, dentro da qual organizamos os materiais artísticos. Com a Caixa transitamos com os materiais para lá e para cá com rapidez e eficiência, como um ateliê móvel. Ela serve de apoio na montagem e fica acessível, próxima à Mesa, caso crianças ou professores precisem de algum material extra.

Embora saiba que ambientes bem organizados e estruturados, como ateliês, potencializem experiências expressivas, a Mesa de Desenho tem em sua concepção a simplicidade em relação à quantidade e à diversidade de materiais. Os básicos são giz de cera, lápis de cor, caneta hidrocor, tesoura, fitas adesivas, apontador e cola.

História da Mesa

Os suportes oferecidos são, geralmente, papel sulfite e retalhos de vários tipos de papéis. Eventualmente, acrescentam-se outros materiais, como giz pastel e de lousa, tintas e pincéis, barbante, réguas e carimbos – esses materiais são levados pelos professores do ateliê para a Mesa e depois retornam para o lugar de origem.

É importante salientar que o dia no Grão começa com as brincadeiras realizadas na parte externa da casa. Nesse momento, que dura cerca de uma hora, as crianças agrupam-se pelos interesses e há quatro grandes espaços organizados para o brincar: o Caminho – composto de tábuas, tonéis, cordas, panos, caixas de papelão, módulos de madeira, bancos, pneus, escada e tudo o que puder ser agregado; o Brinquedão – estrutura de madeira com escorregador, trepa-trepa e casinha; o Tanque de Areia – que abriga vários objetos para cavar e construir, elementos naturais, brinquedos e água; e a Mesa de Desenho. Os três primeiros são os que “competem” com a Mesa a atenção das crianças na primeira hora do dia, que dão a dimensão do que significa o desenho para as crianças pequenas, num cenário bastante sedutor para as brincadeiras corporais e o faz de conta.

Juntas ou em pequenos grupos, as crianças circulam e procuram um lugar onde possam explorar e viver no corpo as experiências sensíveis, próprias da infância. Nessa perspectiva coletiva e de interidades, professores e auxiliares também trabalham juntos – em duplas, trios, quartetos – as associações são diversas. Os profissionais interagem com os demais e com as crianças – e todos conhecem todos. O compartilhamento de conteúdos (cognitivos, expressivos, afetivos,) entre crianças de várias faixas etárias e as múltiplas referências que elas criam na relação com os adultos, num espaço em que os adultos também estão em constante diálogo entre si, situa o leitor para algumas particularidades e prioridades da escola e, por consequência, para a Mesa de Desenho.

O tempo da criança

Na Mesa, o tempo é da criança; a movimentação é livre – o ir e o vir, o entrar e o sair são completamente aceitos pelo educador responsável por ela. Há crianças que participam todos os dias, e outras que não se interessam pelo espaço do desenho na primeira hora do dia (manhã: das 8h às 9h; tarde: das 13h às 14h). As crianças têm liberdade de expressar o desejo de integrar-se ou não a esse momento, o que não descarta a possibilidade de serem convidadas ou incentivadas por adultos a participar. As crianças trabalham com muita autonomia e não há uma proposta formal do professor que a organiza – a ideia é a produção livre. Ele está presente e atento, ora mais próximo, ora mais afastado, observa, conversa e cria um ambiente que acolhe as demandas de cada uma.

Esse aspecto do funcionamento da Mesa foi muito importante durante a pesquisa para que eu pudesse perceber melhor as marcas de singularidade de cada criança; e se havia um potencial para que ela construísse o seu projeto estético.

Falar de processos singulares em Arte é falar sobre experiência estética, da sensibilidade e empatia das pessoas com as coisas. A criança, em suas elaborações, demonstra expressividade, emoção, sensibilidade e qualidades estéticas, e isso tudo contribui para apoiar os seus desejos. A estética pessoal é marca, é escolha que se expressa pelos assuntos e procedimentos elegidos. O processo é autônomo e emocional de ponta a ponta; para a criança, a experiência estética é senso-perceptiva, por isso é expressiva.

Considerei o estudo, especialmente a partir da abordagem fenomenológica de MerleauPonty³, que situa a criança a partir dela mesma – não de teorias sobre ela. Por esse caminho, procurei ouvir a criança e acolhê-la em seus pontos de vista; uma propositiva simples que se faz pela observação e compreensão dela consigo, com o outro e com o mundo. O modo fenomenológico de pensar a infância e a criança reside, portanto, em nossa atitude diante dela – à procura de referências e caminhos que se adequem à interpretação do que é percebido.

Na pesquisa, analiso o processo de autoria de quatro crianças, num período que variou de um a dois anos. A partir de observações diretas, filmagens e fotos, pude perceber como as crianças vivem as suas criações e de que maneira elas compartilham isso com o mundo. Assim, ao observá-las na Mesa, constato algo que não havia identificado antes: certa coerência na escolha e apropriação dos materiais, em seu uso, na construção de gestos e formas que comporiam um projeto estético, ou seja, uma linguagem particular, um estilo reconhecível, distinguível, entre outros. Dessa constatação surgem as perguntas que dirigem a pesquisa: É possível falar em “projeto estético” na primeira infância? E, se sim, como ele se daria? E de que modo o educador deveria se colocar diante dele?

Contarei o processo de Gabriel com base em uma cena que me instigou e me colocou em movimento para buscar outras cenas, outros indícios que me dissessem mais sobre ele ou outras crianças. Dados os primeiros contornos sobre a pesquisa, vamos ver como Gabriel constitui a sua diferença?


3 Merleau-Ponty (1908 -1961); considerado um dos mais importantes filósofos franceses do século XX, por ter se afastado da tradição filosófica da França, na década de 1930, possibilitou a configuração do existencialismo francês; foi o único fenomenológico que deixou uma contribuição focada na criança e na primeira infância.

O Projeto Estético de Gabriel

Gabriel tem cinco anos e é um frequentador assíduo da Mesa de Desenho; passa todos os dias por esse espaço e lá permanece por muito tempo. Constrói quase sempre rolinhos, embora os nomeie de forma diferente. No dia em que flagrei sua “performance”, ele chegou à escola e foi direto para a Mesa de Desenho. De posse de alguns papéis, começou logo a enrolá-los e a fixá-los com fita-crepe. Mesmo com alguns materiais gráficos disponíveis, Gabriel decide não os usar. É dia do brinquedo na escola e, ao contrário das outras crianças, ele não trouxe nada de casa, por isso – ao ser perguntado sobre o que faz – diz que é um cavalo, pois quer fazer um brinquedo.

Os rolos crescem nas mãos desse menino habilidoso que, com muita paciência, ajeita-os ora um dentro do outro, ora sobrepostos. Mais fita-crepe é colocada em diagonal, vertical e horizontal, para dar consistência e firmeza aos rolos.

Ao olhar para a Figura 1 é possível perceber a organização da criança em torno do objeto que constrói: tesoura, fita-crepe, pedaços de papel foram cuidadosamente selecionados e colocados por ele bem próximos de suas mãos. As fitas previamente cortadas estão por toda a mesa (gesto que aparentemente Gabriel aprendeu com os adultos e que facilita a montagem individual das peças). Se a intenção desse garoto era brincar com seu cavalo, seu empenho em grudar as peças é fascinante e bem calculado. Vez ou outra testa os rolos grudados: levanta-os e chacoalha para ver se estão bem presos.

Fica muito tempo nessa construção, mais de uma hora, completamente concentrado, focado no seu fazer. Quase não olha para os lados, só para seu cavalo. Investiga cada rolo, muitas vezes, de perto, de longe, olha-os por dentro e examina todos os detalhes. De repente, Gabriel joga os rolinhos no chão e começa a organizá-los com critério.

Alguns mais à frente, outros atrás, agrupados de forma nada aleatória. O planejamento das ações fica evidente, assim como a autonomia para criar uma situação, uma história para si, uma “performance” para nós que o observávamos. Gabriel rasteja e, a cada movimento, aproxima os rolinhos para perto de seu corpo. Indago a ele o que são todos os rolinhos, e ele me diz que são cavalos. Pergunto se ele também é um cavalo, e ele me responde que não; ele é o condutor deles. A cena não termina aí, pois Gabriel volta à Mesa e faz mais dois cavalos. Coloca-os no chão e recomeça a brincar; de novo, deitado. Dessa forma, consegue aproximar-se da perspectiva de seus cavalos, unir-se a eles pelo olhar. Gabriel funde-se completamente à situação.

É constante para ele (e observo que para várias crianças que frequentam a Mesa) o movimento de ir e vir. Na primeira hora de Quintal, como disse, as crianças podem transitar pelos espaços da escola; por isso o entrar e sair das atividades são compreendidos pelo professor como uma necessidade de retorno, repetição e reencontro. Assim, o que foi feito ou construído pela criança na Mesa de Desenho não é guardado imediatamente pelo adulto. A manutenção da produção da criança na Mesa dura uma hora, tempo em que permanece aberta a possibilidade de retorno a ela.

O movimento de retorno à Mesa e aos cavalos parece-me essencial para a produção do Gabriel. Feitas algumas formas, era vital certificar-se de que modo elas interagiam ou se comportavam juntas e, depois, para satisfazer seus anseios, voltar à produção e refazê-las ou rearranjá-las, se necessário.

Os amigos não percebem de imediato o que acontece; passam pelo Galpão e quase atropelam os frágeis animais de papel. Gabriel fica bravo e evidencia a preocupação de que algo aconteça com seu trabalho: entre um abaixar-se e levantar-se do chão, ou entre as idas e vindas à Mesa de Desenho, passa agora a olhar feio para as crianças que se aproximam. Seu foco não está mais só na construção dos cavalos, mas na preservação deles, dos quais cuida com muita veemência. Diz um sonoro “não” para o colega que se aproxima: coloca as mãos em riste – ora para cercá-los, ora para defendê-los.

Nos dias seguintes a essa cena, no encalço de Gabriel, percebi que havia uma persistência dele em construir com papéis, e isso me fez reconhecer que ele tinha um percurso e um desejo incontestável de seguir com essa pesquisa. Presenciei outras construções de Gabriel e o que me chamou a atenção foi a investigação muito intensa; especialmente com os vazios e com os volumes ou com os adensamentos dos objetos que criava, em função das sucessivas camadas de papel e fita que colocava. É possível perceber isso na construção que ele nomeou de jacaré.

Durante o período em que o acompanhei (um ano e meio), notei forte tendência dele à construção, em detrimento do desenvolvimento gráfico. Os desenhos ocorrem, eventualmente, na parte externa do rolinho, após sua confecção, quase como um adorno. Quando o desenho acontece na parte interna, com o papel aberto, Gabriel permanece por pouco tempo na atividade e já começa a enrolar ou a dobrar o papel.

As crianças maiores parecem enrolar o papel como ato final, para acomodar a produção na mochila e levar para casa, dar de presente, ou ainda para esconder algo; diferentemente, as menores (principalmente as de um e dois anos) amassam, dobram ou enrolam como parte da investigação do suporte. No caso de Gabriel, o movimento de dobrar ou enrolar é parte importante de seu projeto estético, por isso a constância e a insistência dele.

A produção de Gabriel não deixa rastros; parecida com o que fazem outras crianças, que possuem marca pessoal de natureza mais construtiva ou mais performática – que integram e mesclam naturalmente o faz de conta, o teatro, a música, a pintura; enfim, as várias linguagens artísticas.

Com ele, as coisas voam, vão para a terra, aderem ao corpo e perdem-se; por isso configurava-se nesse tipo de produção a captura por filmagens, como eu fiz, ou pela memória de quem presenciou. Nesse caso, o próprio modo performático de ser da criança pode ser discutido, iluminando a produção dele e apontando novos caminhos de interpretação da expressão artística infantil. A arte contemporânea, com sua liberdade de transitar por meios não convencionais, assemelha-se muito à ação da criança, que, para conhecer o mundo, lança mão de todos os recursos disponíveis de modo bastante livre e lúdico.

Algumas análises

Compreender o que acontecia com Gabriel diariamente, na Mesa de Desenho, abriu meus olhos para a possibilidade de outras crianças terem também interesses, percursos, que talvez não estivessem tão escancarados quanto o dele, mas que, meio camuflados, poderiam ser descobertos.

Na análise dos trabalhos de Gabriel e de outras crianças pesquisadas foi possível perceber o efeito seletivo em suas produções. No processo de cada uma encontrei aspectos que me pareceram ser reconhecidos e resguardados por elas, como o uso de determinado material, a constância ou a repetição de certas temáticas, ou modos de fazer. Aspectos que se comunicam e progridem. Como se a criança, diante de uma novidade ou descoberta, precisasse repetir o movimento ou procedimento para adquirir controle, concretizar uma ideia ou ainda, em contato com os materiais, ir em frente com sensações agradáveis que ainda não se esgotaram.

O caminho de cada uma não foi igual o tempo todo, certamente, mas atendeu a alguns requisitos selecionados por elas. Há quem pense que a criança pequena está sempre a recomeçar algo novo, sempre por fazer uma investigação que não encontra diálogo entre o que foi feito, o que está em processo e o que virá. Mas será que é ela que não faz ou somos nós que não percebemos?

As crianças pesquisadas mostram a capacidade que têm de se concentrar, porque se comprometem e implicam-se completamente com a própria expressão. Esforçam-se pelo prazer de realizar algo, um desenho, um desejo. O projeto estético revela a singularidade de cada criança, a integração e o domínio delas com os materiais e os instrumentos, e o estado de sensibilidade que configura um processo mais rico, que é, com efeito, a lição primordial dada pela arte infantil.

Com a pesquisa, abro a possibilidade de nós, professores, conhecermos a identidade de cada criança pela observação de sua ação e produção, para com isso podermos pensar melhor os projetos em Arte. Para receber bem o ato criativo da criança, é preciso observar, acolher, reafirmar cumplicidade e, ao mesmo tempo, deixá-la crescer para que ela possa seguir livremente seu caminho rumo a novos vínculos e novas emoções. Deixar a criança criar é vê-la diferenciar-se e descobrir inesperada originalidade.

Na Educação Infantil existem vários desafios que precisam ser transpostos. Um deles está na forma de conduzir o processo expressivo, que muitas vezes se mostra autoritário, que desconsidera os interesses da criança. Talvez aqui possamos refletir o quanto é possível, em um trabalho proposto pelo professor em ateliê ou sala, seguir em direção à autenticidade, pois, como constatamos com Gabriel, as crianças fazem isso naturalmente em espaços de livre expressão como a Mesa de Desenho ou nas brincadeiras de Quintal. A proposta que faço a professores e interessados é um método fecundo de recepção, interpretação e abordagem da produção infantil. Um método que é, na verdade, uma perspectiva bastante ampla, dado que se configura em sua especificidade no ponto de encontro do olhar do educador experiente e cultivado com as necessidades e os desafios que a ação expressiva de cada criança lhe sugere como caminho.

Posted in Revista Avisa lá #67.