Olhar para ver

MONIQUE DEHEINZELIN¹


ESTA SÉRIE DE CONVERSA REFLEXIVA SOBRE A OBSERVAÇÃO DA CRIANÇA E SUAS EXPERIÊNCIAS TRAZ AGORA O OLHAR DE MONIQUE DEHEINZELIN E SEU PERCURSO PELAS ARTES


Você tem sido, desde muito tempo, uma observadora competente do pensamento e da ação das crianças pequenas. O
que nelas lhe encanta?

Na criança, vemos a nós próprios, não é verdade? Ou, como bem disse [Gaston] Bachelard², nela vemos a juventude de nossos atos. O que se vê nas crianças é a gênese, ou origem, do conhecimento, daquilo que nos constitui. Se a vida é uma
dádiva, para cada criança é vivida como abertura de possibilidades – muito mais do que necessidades ou impossibilidades; porque, se não fosse assim, ela não sobreviveria! Como teríamos aprendido a andar se tudo fosse só queda ou imperfeição? O que me encanta nas crianças são os seus procedimentos, que vêm de uma aliança afetiva que a criança realiza em cada instante, entre observação e imaginação. Interagindo com as situações da vida a criança se safa inventando soluções. Isto – de não aceitar o que já está dado, pronto, posto na mesa do comércio social dos adultos – é mais que encantador, é a própria vida com seus meandros.

A sua experiência nos últimos anos tem se concentrado na força expressiva das crianças em relação à pintura e também na implicação delas quando estão trabalhando. Por que isso ocorre?

Um exemplo recente: Em uma folha de papel tamanho A3 (30 cm x 42 cm), com pastel oleoso, Eva (7 anos) quer fazer um céu à noite. Digo a ela que vai ser bem difícil vencer o branco do papel com aquele lápis nessa superfície bem grande. Então ela desenha, na folha ainda em branco, um retângulo emoldurado, dentro do retângulo uma lua em quarto crescente, para – aí sim! – pintar com canetinha azul, preta, magenta (compondo um escuro!) uma noite que se vê da janela, de dentro para fora de casa. No desenho atrás do sofá contemplamos o interior da sala – a mãe, o pai, um menino e uma menina vendo televisão (sabendo que seria complicado desenhar qualquer cena na tela do televisor, ela anunciou: Estão vendo só a maçã da Apple, tudo bem?, um vaso, um gato – e a janela com a noite lá fora.


1 Educadora e escritora em @treselefantes – Arte, Cultura e Educação. E-mail: moniqued@uol.com.br. https://www.behance.net/MoniqueDeheinzelin.
2 Filósofo e poeta francês (1884-1962). Sua obra encontra-se no contexto da revolução científica promovida no início do século XX pela Teoria da Relatividade.

Antes de o desenho da criança ganhar existência – pelos seus procedimentos, nada disso estava pronto! Havia sim uma observação do interior da casa e da impressão que causa a noite pela janela – a partir desse afeto ela criou o seu desenho no mundo.

Assim, no desenho, na pintura ou em qualquer de suas ações – aquelas que, como bem observa Lino de Macedo, têm valor de conhecimento, vemos a criança presente. Presença aqui significa implicação subjetiva em suas próprias ações.
Esquecer-se das obrigações e imposições externas para mergulhar na própria ação – que é sempre uma tentativa de solucionar uma situação real. Isto é importante: contar com os próprios recursos, ter confiança neles, agir com autorregulação e disciplina, não exclui o que acontece no entorno. A criança nos diz: Estou aqui, observo e vejo do meu
jeito o que acontece e expresso o que sinto nessa interação com a realidade.

Isso é possível porque as crianças constituem a si próprias no conhecimento do mundo de acordo com o binômio sentir e agir. Confiando nas próprias sensações, o que as afeta funciona como uma mola propulsora das ações: é o que eu chamo de mobilização estética (ou sensível). A criança sente e age simultaneamente – ela não para pra pensar, constrói o pensamento na ação. Por isso suas ações são transformadoras, mudam a realidade e o modo de ser da criança. Para nós adultos é difícil compreender esse processo de construção, estamos habituados a agir de acordo com valores externos preestabelecidos – os preconceitos, segundo binômios bem menos inteligentes que o sentir-agir da criança: feio-bonito, certo-errado, bom-mau, e assim por diante. Nós perdemos a confiança em nossos próprios procedimentos e, com isso, nos distanciamos da inteligência da criança que consiste em estar presente nas próprias ações.

Por que o jeito de sentir, pensar e agir das crianças deve ser matéria-prima para o trabalho do professor? Como apoiá-lo para que veja isso?

Quando temos a imensa boa sorte de trabalhar com crianças, é preciso nos desvencilhar de muita tralha; é como se nossa cabeça fosse um sótão atulhado de coisas que não servem mais, girando incessantemente como antiga máquina de lavar roupa. Como estar presente na própria ação de educadora com esta barulheira infernal? Em primeiro lugar é preciso considerar como estamos, como somos naquele instante, o que mobiliza nosso afeto. Tudo aquilo que estudamos e compreendemos agora faz parte de nós e vai se atualizar em nossa ação – se estivermos presentes, tal como a criança está. A partir desse contato consigo mesmo e com a crianças, os procedimentos delas podem se tornar observáveis para nós.

Um exemplo: Na Casa do Aprender, em Osasco (SP), estávamos, eu e a educadora, com cinco crianças entre um ano e meio e dois anos de idade que pintavam (ver Revista Avisalá, no 10). Acabou a tinta guache nas cores azul cyan, magenta e amarelo nos três potinhos do Marcelo. Fui buscar mais tinta e a educadora disse: Não põe pouquinho porque ele não gosta. Quando ele quer repetir o prato de comida, se não coloco bastante ele nem toca. Isso é uma observação muito fina e delicada da criança! E cabe muito bem a analogia entre paleta de tinta e prato de comida que a educadora intuiu. Assim se desenvolve o que hoje é muito valorizado na Educação Infantil – a escuta.

Jean Piaget partiu sempre dessa escuta, nos primeiros tempos ouvindo os próprios filhos. E que escuta! Por exemplo, junto ao berço, mexendo as bochechas para observar a evolução de condutas de imitação de sua filhinha ao longo dos seis primeiros meses de vida. E dessa observação inferir que a imitação é a origem do conhecimento. Ouvindo a criança, Piaget inventou uma nova disciplina, a Epistemologia Genética. Epistemologia – ciência que tenta compreender o conhecimento; Genética – de Gênese, do que gera, de onde se origina, de onde algo vem e como se desenvolve. Para nós, educadores, as descobertas, em Epistemologia Genética, funcionam como óculos de longo alcance. Com os óculos, podemos observar, ver e escutar as condutas e os procedimentos das crianças, e propor a elas situações e atividades significativas e transformadoras. Ao observarmos as produções das crianças, ao possibilitarmos que elas se expressem, ao tentarmos compreender seus procedimentos, nos reinventamos a cada momento. Haverá maior felicidade do que essa?

Em geral, a Educação valoriza o resultado de uma ação, a aprendizagem que pode ser medida, mas a criança peque-
na não tem essa preocupação. Se ela inicia uma ação, uma pintura ou um jogo simbólico, está mais implicada com o pro-
cesso. Por quê?

Em minha tese de doutorado – Móbiles da ação: da cor à experiência estética. FEUSP 2013 –, propus às duplas de crianças da Casa do Aprender que fizessem bolas de cores diferentes com base nas três cores primárias – azul cyan, magenta e amarelo. Tudo bem, consigna tranquila para elas – mas inseparável de pintar já, aqui e agora! Não existe, para as crianças, uma preparação, uma atividade avaliativa; existe a ação de pintar. E aí sim, mergulhadas nesta ação, pesquisam cores, imprimem ritmo aos gestos com o pincel, coordenam tudo ao mesmo tempo para completar sua experiência estética. Nesse processo de pintar, podemos e devemos observar de que maneira elas coordenam as ações até estarem satisfeitas com o produto final. Com ou sem óculos de epistemólogos, observamos a gênese da pintura, o quanto gerou de aprendizagem, e pensamos a questão central para nós: O que propor às crianças a seguir? Porque nós, educadores, precisamos sempre estar atentos a estas três perguntas: O que ensinar? Como ensinar? O que e como avaliar? Sublinho o como por que é um procedimento que gera ação. E porque não podemos fugir do caráter de construção dos procedimentos – daí o Construtivismo.

O Instituto Avisa Lá tem se empenhado em favorecer o olhar atento para a criança. Algo que praticamente sumiu ou talvez nem mesmo tenha tido espaço nas escolas de Educação Infantil é o faz de conta. Você considera que essa é uma ação que precisa existir? Por quê?

Esse caráter de construção de todo conhecimento tem sua gênese ou origem no jogo simbólico, ou faz de conta – uma coisa no lugar de outra, representar para si aspectos da realidade. Haveria felicidade maior do que manter esse jogo da criança na origem de nossas ações? O jogo rege, o jogo constitui, o jogo é a criança. Escondo-me em pé atrás da coluna, reapareço para Benjamim (1 ano) na mesma posição, ele sorri. Escondo-me agachada atrás da coluna, apareço no pé da coluna, Benjamim me esperava no alto. Apareço então do outro lado da coluna, quando ele, tal como um goleiro, tinha se preparado para qualquer aparição. Agora é a vez dele, que desaparece atrás do sofá – se ele não me vê, eu também não o vejo! E assim vamos, o jogo de esconde-esconde segue pela vida afora. Na Educação Infantil, tenhamos a intenção ou não de configurar espaços para o faz de conta, o jogo simbólico é a ação por excelência da criança! Representar, colocar uma coisa no lugar de outra, simbolicamente, é isso que está acontecendo o tempo todo. Se concebemos espaços especialmente desenhados para ampliar a manifestação do jogo, se aprendemos a observar como brincam as crianças e a compreender seus procedimentos, estaremos no caminho de aprender a aprender. Não é esse o objetivo que se consolidou unânime para a Educação?

Como professora e pesquisadora, o que aprendeu com as crianças?

Eu, com as crianças, humildemente aprendo a viver, ou pelo menos tento!

Posted in Revista Avisa lá #64.