Observar para ver

LINO DE MACEDO¹


CONTINUANDO AS REFLEXÕES SOBRE A OBSERVAÇÃO DO BRINCAR, DAS DUAS ÚLTIMAS EDIÇÕES, DESTACAMOS AQUI A COLABORAÇÃO DO PROFESSOR LINO DE MACEDO.


Por que brincar é importante para a criança?

A criança interage com o mundo, entende a sua relação com ele com recursos que começam com o reflexo inato e são aperfeiçoados na relação com o meio. Além disso, os recursos sensoriais e motores são base para o nascimento da formação do símbolo. Jean Piaget divide a inteligência em sensório-motora e simbólica. A inteligência simbólica é aquela que preside a nossa vida, a aprendizagem, o desenvolvimento, desde os dois anos até a morte. Tudo é mediado pelo símbolo. Então, qual é a importância do brincar na formação do símbolo? A criança brinca imitando os adultos com os quais convive, as ações que presenciam, ou imitam as coisas, os animais etc. O imitar é esse desafio da criança fazer o mesmo que fazem com ela ou com os que es tão próximos. Por exemplo, vi no youtube uma criança de um ano e meio fazendo nananenem com a boneca, batendo na bundinha, cantando, embalando. Você vê que ela mal sabe falar, e ela canta, tem uma melodia. Na imitação, a criança tem como referência aquilo que ela observa das pessoas e coisas importantes para ela. O jogo tem a ver com prazer funcional. Do prazer de repetir aquilo que a criança sabe fazer. Sabe bater, fazer sons, é aquele prazer de manter, repetir coisas que ela gosta, que acha interessante. No período simbólico, o jogo se caracteriza exatamente pelo faz de conta. Por que o brincar é importante? Brincar de imitar é uma forma de você incorporar o mundo. É brincando de imitar que ela assimila, põe para dentro dela as características do objeto, e, das pessoas e das coisas. Imitar é muito importante.


1 Professor de Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, membro da Academia Paulista de Psicologia, participante do Instituto de Pesquisa Pensi, Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

O jogo simbólico é essa brincadeira de fazer de conta, imaginar, fingir que tal coisa é tal coisa. Agora, uma coisa que Piaget dá muita importância é o que ele chama de imagem.

Hoje, na neurociência, eles chamam de memória não verbal. Aquilo que era o sensório-motor, por exemplo, o visual, o tátil, o cenestésico, o cheiro, todas essas coisas que as crianças, na experiência, sentiam pelos órgãos do sentido diretamente, na formação do símbolo permite visualização, ou seja, imaginar com o olho da mente. A imagem é muito importante, pois permite a percepção interna dos objetos, a sensação interna do gosto das coisas, da motricidade etc. Permite, por exemplo, a criança ver um sapato e pensar na mãe. E a representação é, na verdade, a nomeação das coisas, dos objetos, das ações, das pessoas etc.

na do gosto das coisas, da motricidade etc. Permite, por exemplo, a criança ver um sapato e pensar na mãe. E a representação é, na verdade, a nomeação das coisas, dos objetos, das ações, das pessoas etc.

Qual é a diferença entre jogar e brincar?

É uma questão teórica e uma questão de tema, de área. Na teoria de Piaget, tudo é jogo. Usa para tudo: jogo sensório-motor, jogo simbólico, jogo de exercício, jogo de regras, de construção; ele sempre usa a palavra jogo. Para Piaget, o jogo de regra é o jogo simbólico que evoluiu, o jogo simbólico é o jogo de exercício que evoluiu para o simbólico. Ele mantém as características do jogo anterior, a estrutura do jogo anterior; por exemplo, o jogo simbólico guarda as características do jogo de exercício. Ou seja, o prazer funcional, acrescentando a isso uma novidade própria da inteligência simbólica que é o faz de conta.

O jogo de regra guarda dentro dele o prazer funcional. Mesmo perdendo ou ganhando, as pessoas continuam a jogar.

O prazer funcional continua, a repetição também, por isso o jogo é aditivo; você termina um jogo [e logo] quer fazer outro. E ele guarda também as características simbólicas, pois o jogo é um artifício, uma encenação. Acrescentando a isso a problemática das regras, do desafio, da oposição, do competir, do ganhar ou perder que, não são características do jogo simbólico.

Outras teorias pensam o jogo simbólico como uma estrutura em si, diferente do jogo. Nelas, o brincar é uma qualidade de relação lúdica que não importa tanto as regras.

Para Piaget, o jogo de regras seria uma estrutura superior que engloba as anteriores. Toda brincadeira desemboca no jogo de regras. Além disso, os adultos gostam de brincar. Hoje está na moda pintar, colorir. Tem o quebra-cabeça, montar objetos sofisticados como hobby, navios, ou quebra-cabeça gigante. O humor, as piadas e as gozações. A própria literatura de entretenimento, ler pelo prazer de ler. É um ócio agradável, lúdico. No computador, tem os RPGs. O brincar tem a ver com a ideia de distrair. Estar num contexto em que o preponderante é a distração. Suspender aquilo que caracteriza o trabalho fazendo coisas que você gosta, que dão prazer.

Como vê essa brincadeira de faz de conta hoje?

Fazer de conta é a brincadeira característica da segunda fase do desenvolvimento da criança, prevalecendo dos dois aos sete anos, e expressa jogo simbólico. Como já disse, nela a imitação, o jogo, a imagem e representação articulam-se em uma realização sensório-motora, possibilitando à criança fazer de conta. Compor cenas, criar situações em que a leitura de sua experiência sobre a realidade e os sonhos pode ser combinada ou atualizada de muitos modos.

Hoje essa brincadeira também acontece por meio de aplicativos eletrônicos ou tablets. A máquina é um brinquedo que produz brincadeiras. Mas sua simulação é diferente do faz de conta, ainda que na prática possam parecer equivalentes. No jogo eletrônico, a brincadeira é do programa, que utiliza simulações de movimentos, gestos, propõe tarefas e desafios para a criança. É uma brincadeira que tem aspectos comuns à brincadeira simbólica proposta e realizada pela criança. Agora o problema é compartilhar uma forma de brincadeira com outra, mas não substituir. Há de se diferenciar uma coisa da outra.

Qual é o papel das professoras e das instituições de Educação Infantil na promoção da brincadeira?

No currículo da Educação Infantil, por que brincar é uma palavra-chave? Porque as pessoas que formularam os referenciais entendem, e eu concordo com elas, que o brincar é muito importante. É pelo brincar que a criança aprende. Ele é tão importante quanto as disciplinas lá para a frente. Agora, isso significa o professor ter repertório de brincadeira, significa saber o que a criança quer brincar, saber diferenciar situações cotidianas de brincadeiras propriamente ditas. A criança pode, por exemplo, brincar escovando os dentes, mas precisa diferenciar aquilo que é sério e tem que ser feito direito, que tem um compromisso. Na brincadeira, certas coisas são permitidas, e na atividade, dita assim séria, não são.

É importante o professor saber diferenciar para a criança quando se trata de uma atividade séria e quando se trata de uma brincadeira, valorizando as duas atividades; é isso que é importante. Às vezes se pensa que o adulto só é importante no momento sério, de realidade. Um adulto brincalhão, um adulto leve; um adulto, por outro lado, consciente do valor da brincadeira, com repertório de brincadeiras, que sabe inventar histórias é um grande aliado.

Há distinções que eu sempre faço entre o brincar, a brincadeira, o brincalhão e o brinquedo. O professor ensina brincadeiras, ele é um brincalhão, e ele faz isso utilizando brinquedos e, com isso, a criança aprende a brincar.

Professoras e instituições de Educação Infantil têm grande participação na promoção do jogo simbólico. Essa participação inicia-se no período anterior, quando a criança tem de zero a dois anos. Nesse período, o jogo caracteriza-se pela repetição e prazer funcional. A criança gosta e precisa ter oportunidades de brincar com três tipos de participantes: 1) ela mesma e os objetos; 2) outras crianças de mesma idade ou com pouco mais idade; 3) com os adultos. São os adultos que apresentam, nesse período, a brincadeira simbólica para a criança. Eles fazem isso conversando, cantando, lendo histórias, rindo, olhando nos olhos, fazendo palhaçadas, ativando, enfim, formas lúdicas que os objetos, outras crianças pequenas e a própria criança não poderiam ativar. É muito importante o papel da estimulação lúdica do adulto nesse período.

No período seguinte, a criança vai brincar de faz de conta por si mesma, imitando, jogando e representando o que os adultos fizeram com ela. O cotidiano tal como organizado e gerido pelos adultos, seus comportamentos e formas de se relacionar com a criança, com outros adultos e os objetos também exercem muita influência. Despertam sentimentos e emoções (raiva, medo, alegria, confiança) na criança. Além disso, os adultos também podem prover materiais, brincar juntos, garantir a segurança, criar um contexto em que as brincadeiras são valorizadas. No caso de as brincadeiras serem eletrônicas é importante a participação do adulto na escolha dos programas, na dosagem do quanto a criança pode brincar e, sobretudo, criando alternativas para o brincar de faz de conta realizado pela própria criança, e não apenas o proposto pelo aplicativo.

O que é estimulação lúdica?

Estimulação é aquilo que, de algum modo, mobiliza a criança, entendendo por isso algo que interessa, que chama atenção, que desperta curiosidade. Algo só é estímulo se pedir uma resposta, uma reação. O estímulo lúdico é aquele que tem características lúdicas. Uma das características da brincadeira é que as consequências da ação não importam. O brincar supõe um desapego. Eu estou montando um jogo, a hora que ele terminar eu posso desfazer. O que deixa marcas é o que você aprendeu, é o que sensibiliza. A atividade em si é substituída pela próxima. O brincar é uma experiência de generosidade de dar e de receber só pelo prazer. A brincadeira é um fim em si mesmo. A estimulação lúdica provê atividades que tenham fim em si mesmo, no fazer por fazer. Se ele virar meio para ensinar algo, a criança percebe que a brincadeira tem outros motivos, então ela reage negativamente.

Esse é o problema do brincar na escola. Muitas crianças não gostam dessas brincadeiras, “mal-intencionadas”. Porque o que importa não é o brincar, mas o que justifica o brincar. O professor pode trabalhar conteúdos por meio da brincadeira, mas tem que ter muita delicadeza nisso. Se a criança percebe, por exemplo, que não é brincar de jogar, mas é uma aula de matemática, ela pode reagir como reage a qualquer coisa que lhe é imposta de fora para dentro. A formação para a estimulação lúdica do professor é muito sofisticada. Atender aos interesses da escola, que são fazer da brincadeira um meio para ensinar, para desenvolver a criança, mas ao mesmo tempo considerar a perspectiva da criança que é lúdica. E só lhe interessa se for lúdico.

Falando nessa formação, como se dá a formação do olhar do professor?

O professor precisa aprender a olhar. O que é o olhar? Um dos significados do olhar é você compartilhar o momento sem intervir, só olhando.

Olhar já é uma intervenção. É graças a esse olhar “organizado” que o professor decide intervenções, manejos pedagógicos a partir disso. Mas primeiro eu olho, eu observo.

Aprende-se a olhar. Como o psicólogo que tem que aprender a escutar. É um tipo de escuta que não compete com a fala do outro. É um olho que não compete com o que o outro está fazendo. É um olhar a criança. A atividade é olhar.

A atividade da criança é brincar, a minha é olhar, e elas se complementam. Se elas competem entre si, não dá. O olhar é uma atividade para o professor que tem uma função pedagógica, porque confirma, porque regula, ajuda ele a decidir intervenções; ele avalia, ele verifica se o material que ele proporcionou está bem usado, o tema proposto, ele observa as crianças; enfim, é uma ferramenta de observação. É apreciar no sentido de conferir valor ao olhar. Não é que ele esteja fazendo nada. A impressão que dá é que, para alguns professores, apenas olhar é não estar fazendo nada.

Só olhar é tão nobre quanto falar. É tão nobre quanto ele fazer coisas com a mão ou com a boca.

Por exemplo, em situações de casa ou de escola. Enquanto a criança está brincando, a mãe ou a professora está fazendo outras coisas, o que é completamente diferente do olhar. O olhar também não pode ser aquele olhar julgador, curioso, intrometido. É um olhar que olha, mas não se intromete no sentido ruim do termo. É um olhar que está presente, que dá presença. Uma coisa é eu estar olhando corrigindo, criticando, um olhar já desaprovando. Mas é um olhar que olha, que não é nem displicente nem ausente, de que enquanto está brincando o adulto está fazendo outras coisas, mas é o olhar da
presença. “Eu estou aqui, eu estou junto, eu estou compartilhando”. Eu estou fazendo isso pelo olhar. Eu posso fazer isso de outro jeito. Na roda de conversa, na hora em que o professor está distribuindo o material, entrando na brincadeira. Tem a ver com a formação, que possibilita que ele reconheça o valor e a complexidade dessa ação, pois não é o olhar intrometido, fiscalizador, nem negligente, ausente, indiferente. É um olhar que compartilha de uma forma gostosa, simétrica, não intrusiva.

Por que e como observar as crianças brincando? E como se desenvolve essa competência?

Observar uma criança brincando é, em si mesmo, um grande aprendizado para o adulto. A criança pequena comunica como sente e compreende o mundo, as pessoas e a si mesma pelas brincadeiras. Pela observação, ele pode verificar o quanto a criança se desenvolveu e está se desenvolvendo em relação aos quatro componentes da formação do símbolo, segundo Piaget: imitação, jogo, imagem e representação. Observando, ele pode definir quais os melhores procedimentos em favor da promoção do desenvolvimento da criança. Ele observa seus sofrimentos e alegrias, suas preocupações, enfim, sua leitura de mundo.

Como aprender a observar? [Por meio de] fotos, vídeos, registros das brincadeiras realizadas, do modo como a criança utiliza os objetos, sua gestualidade, os temas das brincadeiras. A roda de conversa pode ser também um precioso recurso para conversar com a criança sobre suas brincadeiras de faz de conta.

Observar significa guardar e conter. Guardar o que viu, ouviu, sentiu, cheirou, apreciou. Conter dentro de si, pensando, refletindo sobre o que observou, coordenando essa atividade da criança com as outras que compõem sua vida. Observar o brincar ensina sobre quem é a criança, sobre o que lhe faz falta e como se sente nessa fase de vida. Observar, nesse caso, é aprender a olhar, desenvolver um olhar que recebe informações, que é generoso em sua forma de ver o que acontece, que suspende críticas, julgamentos. Um olhar que recebe e aprende com o que a criança expressa em suas brincadeiras.

A competência do olhar supõe o desenvolvimento de muitas habilidades: registrar, reconhecer, identificar, comparar semelhanças e diferenças, acompanhar sequências, compor narrativas, estabelecer relações, orientar-se, isto é, considerar o que se vê em diferentes perspectivas, considerar posições e deslocamentos no desenrolar da trama lúdica para, com isso, entender, pouco a pouco, o que a criança está fazendo e as significações do seu fazer que se sustentam pelo seu brincar. É importante termos em conta que, ao contrário do adulto, que diferencia fantasia e realidade, para a criança realidade e fantasia, na hora do brincar, são uma coisa só. Como diferenciar o que, na prática, é indiferenciado? Eis uma questão importante para quem quer observar crianças brincando.

Quais seus últimos aprendizados sobre a brincadeira decorrente das suas observações e estudos?

Trabalho duas tardes por semana no Instituto de Pesquisa Pensi² – SP, que realiza estudos e faz formação de profi ssionais que cuidam da saúde infantil de crianças internadas no Hospital Infantil Sabará, ou que recorrem a ele para algum tratamento emergencial. Represento esse instituto no Núcleo Ciência pela Infância (NCPI)³. Nesse contexto, tenho estudado o tema das brincadeiras de crianças de zero a seis anos (80% das crianças que vão ao Hospital Infantil Sabará estão nessa faixa etária). É impressionante a importância que se atribui ao brincar da criança hospitalizada. No hospital, o tempo livre da criança, isto é, aquele tempo em que não está sendo atendida por médicos ou enfermeiros, é muito grande. Preencher esse tempo é responsabilidade dos pais ou responsáveis, uma responsabilidade compartilhada pelo hospital que provê “brinquedistas”, psicólogos, voluntários, músicos, palhaços, contadores de histórias, cães, desenhos para colorir e brinquedos, de modo a fazer do brincar e das brincadeiras uma forma humanizada e respeitosa de receber e tratar a criança doente. Um modo de permitir a ela que se comunique pela sua relação com esses recursos, aquilo que ela não saberia dizer com palavras. Nesse contexto, tenho tido a oportunidade de ler, discutir, orientar, escrever e, principalmente, aprender sobre a relação do brincar com a saúde, e o valor das brincadeiras para as crianças pequenas e seu direito a uma vida digna, saudável, feliz e lúdica.


2 Instituto de ensino e pesquisa em saúde infantil.
3 Composto pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Insper, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Center on the Developing Child da Universidade de Harvard (EUA) e Fundação José Luiz Egydio Setúbal, ao qual pertence o Instituto Pensi.
Posted in Revista Avisa lá #63.