Com que roupa eu vou pra chuva?

ADRIANA CRISTINA MILIORANÇA, ANDREA CRISTINA MILIORANÇA E TESSY ANNE DUARTE COSTA ROCHA¹


ESTE ARTIGO ABORDA VÁRIAS QUESTÕES IMPORTANTES: COMO AS CRIANÇAS APRENDEM SOBRE UM FENÔMENO DA NATUREZA E SUAS RELAÇÕES COM O AMBIENTE, SOBRE AS PRÁTICAS SOCIAIS DE PROTEÇÃO DO CORPO, E SOBRE A POSSIBILIDADE DE BRINCAR NA CHUVA, DE UM MODO GERAL PROIBIDO NAS ESCOLAS


Como ocorre em várias instituições, as crianças conversavam sobre o tempo observado pela janela e registravam no calendário se havia sol ou chuva lá fora. Prática mecânica que não traz nenhuma contribuição para uma aprendizagem efetiva. Além disso, brincavam na sala nos dias de chuva e permaneciam nesse espaço por longos períodos, mesmo nos dias de sol.

Em 2014, essa prática começou a ser discutida e modificada quando, em um processo formativo², com foco no trabalho com as Relações Naturais, a equipe do Centro de Educação Infantil (CEI) foi desafiada a ir além, desenvolvendo uma proposta que superasse uma prática automatizada e sem sentido para as crianças.

Desse modo, os profissionais partiram de um diagnóstico dos saberes da turma de crianças de quatro anos para propiciar aos pequenos momentos de investigação, pesquisa e discussões sobre o tempo. A proposta instigou os alunos a pensarem sobre o tempo utilizando instrumentos convencionais e não convencionais para observar e analisar alguns elementos meteorológicos (vento, umidade e tempo), tendo por finalidade comunicar as verificações sensoriais e meteorológicas, decidindo com o grupo a adequação de suas vestimentas no decorrer do dia.


1 Adriana é coordenadora, Andrea e Tessy são professoras do Centro de Educação Infantil (CEI) Cantinho Feliz da Irmã Clementina – Curitiba (PR).
2 Realizado pela Secretaria Municipal de Educação de Curitiba (PR) e Instituto Avisa Lá (SP). Teve como formadora Luciana Hubner.

Em 2015, pensando na continuidade da proposta e em sua ampliação para a faixa etária de três anos, a pedagoga convidou a equipe de profissionais a elaborar planejamentos que fizessem sentido para crianças dessa idade, pensando em algumas consignas: Quais saberes sobre o tempo são importantes para crianças de três anos? Como os estudantes dessa idade têm se relacionado com o tempo em Curitiba? Como podemos auxiliá-los a pensar sobre a adequação da roupa e acessórios em decorrência do tempo?

As pistas das crianças indicam um caminho a seguir…

– Tem vento. Sempre que tem vento chove?
– O parque tá molhado porque choveu.
– Mas o parque não tá todo molhado, eu acho que não é chuva.
– É porque tem neblina que o parque tá molhado!
– Quando eu vou pra praia tem neblina.
– Tem sol, mais tá frio.
– Pra medir a temperatura, a gente usa um termômetro, eu vi no Doc. (Discovery Kids)

Essas reflexões mobilizaram a equipe a entender que as crianças permaneciam confinadas durante os longos períodos de chuva e frio, embora reconhecessem a importância de propiciar experiências de exploração nos espaços externos com elementos da natureza. Tais experiências ficavam reduzidas aos dias com tempo mais ameno e seco. Diante disso, começaram a organizar momentos significativos, em que os pequenos pudessem adequar vestimentas para brincar, mesmo em dias chuvosos, como nos dias em que os espaços ficam molhados ou com barro.

Com a experiência de 2014, aprendemos que o levantamento de conhecimento prévio seria o primeiro passo dessa intensa experiência, pois sabíamos que, com base nas hipóteses das crianças sobre o uso dos espaços externos, poderíamos planejar práticas que para elas fizessem sentido e ampliasse seus conhecimentos.

Ampliando saberes

As crianças foram convidadas a explorar o espaço externo, após um dia chuvoso, em um momento que a chuva tinha cessado. Nessa ocasião, elas não receberam nenhuma consigna e não utilizaram acessórios e vestimentas que seriam necessárias para essa exploração. Quando lá chegaram se interessaram momentaneamente em andar por toda a quadra molhada, porém um grupo pequeno ficou um tempo maior pisando em algumas poças de água. O restante da turma foi para o parque e precisamos conter seu entusiasmo, embora percebessem que o parque estava molhado acreditavam que poderiam brincar no local. Instigamos as crianças a pensar, chamando atenção para o fato de estarem com sapatos inadequados para a situação. Nesse momento, Nicole, que espontaneamente havia trocado na sala seu tênis por uma galocha, rapidamente disse:

– Tô de bota, meu pé tá protegido!
Maria Eduarda também se colocou:
– Eu tô de crocs! É fácil de limpar!

Com isso, todas elas iniciaram uma investigação sobre os sapatos que estavam usando. Maria Eduarda e Nicole logo foram para o parque, direto para os escorregadores. Nicole primeiramente observou e, em seguida, falou:

– Tá todo molhado. Vou descer mesmo assim!

A professora avisou que ela iria se molhar e não tinha outra roupa.

Enquanto isso, os pequenos que estavam na calçada verificaram que alguns deles calçavam tênis de couro e, portanto, poderiam ir ao parque. Houve uma discussão no grupo, pois mesmo quem estava sem os sapatos adequados queria ir ao parque. Nesse diálogo, o próprio grupo decidiu que as crianças com sapatos de couro também poderiam brincar.

Em seguida, na sala de referência, várias hipóteses foram levantadas:

– O parque já secou. O sol secou! (Nicole)
– Não tem sol. Foi o vento! (Miguel)
– (…)
– Eu não fui no parque! (Alice)
– Meu tênis é de couro, não molha fácil.
(Miguel)

Famílias sensibilizadas pela alegria das crianças

No início da proposta uma grande preocupação foi com a reação das famílias, pois há uma cultura para os curitibanos de que os dias frios são para ficar dentro de um espaço, bem agasalhados e protegidos. As famílias foram convidadas a vir ao CEI e, pelo acesso às memórias de suas infâncias, estabeleceram relações com a infância dos seus filhos. Para nossa surpresa houve uma grande sensibilização e aceitação dessa proposta inusitada. A alegria das crianças dessa primeira turma participante contagiou outras famílias, que começaram a nos questionar sobre o fato de os seus filhos não estarem vivenciando as possibilidades ofertadas. Com isso, uma nova cultura de utilização dos espaços externos, independente das condições climáticas, está sendo construída no CEI Cantinho Feliz da Irmã Clementina – Curitiba (PR)

Aqui como lá, também chove….

Os professores também valorizam o que é especial sobre os espaços que cercam suas escolas, considerando-os como extensões do espaço da sala de aula. Parte de seu currículo envolve levar as crianças para que explorem as vizinhanças e os marcos da cidade. Um exemplo da extensão da escola é um projeto levado avante por muitos meses pela escola Villetta, durante o qual as crianças saíram para explorar o modo como a cidade transforma-se durante os períodos de chuvas. Esse projeto levou as crianças e os professores a explorarem juntos primeiro a realidade da cidade sem chuva, tirando fotografias em locais tanto conhecidos quanto menos familiares, formando hipóteses sobre como a chuva poderia mudá-los. Uma vez que naquele ano em particular, depois de iniciado o projeto, a chuva levou várias semanas para vir, as crianças tiveram muito tempo para preparar as ferramentas e o equipamento que consideravam úteis para observarem, coletarem, medirem, fotografarem e registrarem tudo sobre a chuva. Nesse meio-tempo, as expectativas das crianças cresciam imensamente. Todos os dias os professores e as crianças iam até o terraço da escola para observar esperançosamente o céu, ganhando muito conhecimento acerca de formações de nuvens e direção do vento. Quando uma boa chuvarada finalmente chegou, a experiência foi febril e exultante. As crianças perceberam como as pessoas mudavam o ritmo e a postura ao caminhar, como os reflexos brilhantes e os esguichos das poças mudavam as ruas, como a somatização das gotas diferia, ao cair no pavimento, no capô dos automóvis ou nas folhas das árvores. Então, após experienciarem a primeira chuva e após o procedimento costumeiro em Reggio Emilia, engajaram-se em representar muitos de seus aspectos. Isso, por sua vez, levou a questões adicionais, a hipóteses e a explorações que a professora e a atelierista documentaram fartamente. Toda a exploração foi eventualmente registrada em “A Cidade e a Chuva”, segmento da exposição As Cem Linguagens da Criança, e serve para contar-nos sobre as muitas maneiras como o espaço familiar da cidade pode tornar-se palco e o tema de atividades e de explorações construtivas (Departamento de Educação, Cidade de Reggio Emilia, 1987).

EDWARDS, C.; GANDINI, L.;FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artes Médicas Sul Ltda., 1999.

Essa primeira experiência repertoriou a conversa entre as crianças e, assim, outras hipóteses foram levantadas: uso da capa de chuva, guarda-chuva, luvas, touca, casacos com gorro, diferenças entre materiais e suas utilizações. Observou-se que elas possuem muitos saberes sobre vestimentas e acessórios e seus usos, mas não possuem autonomia para decidir quais são os mais adequados ao tempo. Percebemos também que essa proposta é muito relevante para o desconfinamento das crianças. Para sua continuidade, vimos a necessidade de aquisição de materiais para as experimentações e de conversa com as famílias sobre as propostas que serão desenvolvidas.

Com base nisso, elas começaram a sair para brincar na chuva, assim como após a chuva. Nossa intenção foi que saíssem primeiro em um dia chuvoso e, depois, pudessem sair em qualquer tempo. A frequência da prática nos diferentes espaços (quadra, parque, pomar, horta, tanque de areia e bosque) é que está propiciando repertório para que possam realizar comparações sobre os espaços, suas características e a adequação de vestimentas e acessórios de acordo com o clima.

O quê e como ensinar Ciências na Educação Infantil

Ensinar Ciências Naturais implica poder articular o modo como pensamos a Ciência com os processos de ensino e aprendizagem. As crianças pequenas têm mentes curiosas, constantemente buscam respostas para fatos e situações observadas. Estão imersas em um ambiente social natural e, portanto, interessadas em dar um significado ao mundo em que vivem. Atividades de exploração dos espaços, do ambiente e as investigações sobre diferentes temas da natureza e da cultura são imprescindíveis para que os pequenos sejam educados para a curiosidade.

Oferecer situações de exploração e investigação controladas e guiadas pelo professor é uma boa forma para o desenvolvimento de novas aprendizagens e aquisição de conhecimentos sobre o mundo.

O maior desafio para o ensino de Ciências é superar a simples transmissão de informação, a mera manipulação de instrumentos e a observação contemplativa. O estudo das ciências compreende a capacidade de argumentação. Capacidade que permite expor e defender ideias com base em problemas vinculados a conteúdos como saúde, meio ambiente, entre outros. Assim, desde muito pequenas, as crianças podem desenvolver capacidades de análise, reflexão, compreendendo os efeitos da intervenção humana, a conservação do ambiente, a qualidade de vida.

Para aprender Ciências Naturais não basta somente fazer experimentações e/ou explorações, é necessário que cada um possa reelaborar suas ideias, assumindo um papel intelectualmente ativo. Assim, as investigações propostas e organizadas pelo professor devem visar à resolução de problemas e desafios que surjam do encontro entre os interesses das crianças e os objetivos do trabalho.

Isso reforça a importância em se trabalhar e organizar situações de qualidade que estimulem os pequenos, desde muito cedo, a perguntar; instiguem a descoberta; estimulem o pensamento criativo, a investigação e a capacidade para pensarem e expressarem suas ideias. A Ciência é um modo de entender a realidade. O que caracteriza a Ciência não é um resultado, mas o processo que se percorreu para encontrá-lo.

Um aspecto importante da prática científica é fazer perguntas. Perguntas que obriguem a pensar, alargar o âmbito da experiência normal, não deixando de considerar que se queremos desenvolver nas crianças a capacidade de pensar por si próprias, nós, adultos, temos de aprender a esperar.

Ensinar e aprender Ciências têm se mostrado necessário e ferramenta fundamental para ajudar a investigar, compreender e manter-se curiosas pelos fenômenos naturais, sociais e culturais que vivenciam diariamente.

Luciana Hubner
Formadora do Instituto Avisa Lá

Aprendizagens na experiência

Os registros realizados pela professora e crianças antes, durante e depois das experiências mostram que as curiosidades e hipóteses apresentadas são elementos para reflexão-ação-reflexão, em que a professora pode nortear suas ações ao intervir e provocá-las, colocando-as a pensar sobre as mudanças do tempo e suas implicações na vida cotidiana.

Enquanto brincavam na chuva, observamos que estavam encantadas em vivenciar essa experiência inusitada. Ocorreram diversas experimentações, porém o interesse em descer nos escorregadores e pular nas poças de água que se formavam foi a preferência do grupo. Brincavam, riam, conversavam e inventaram um jogo competindo para ver quem dava o maior pulo. Entre as inquietações das crianças, discutiram o que deveriam utilizar se a chuva “estivesse maior” e concluíram que usariam capas, galochas e guarda-chuvas. Porém, se a chuva fosse “menorzinha”, não precisariam do guarda-chuva, pois a
capa seria proteção sufi ciente para que pudessem sentar no chão e descer no escorregador quando estes estivessem molhados.

Nesse contexto, elas realizam investigações sobre tamanho das poças, cor da água antes e depois de brincar nelas, observam a água ou o gelo acumulado nas plantas, constroem autonomia para tirar e colocar roupas e acessórios, estabelecendo relações com a temperatura e umidade, fazem comparações entre suas vestimentas bem como a dos adultos que estão no mesmo espaço, e aprendem a cuidar dos materiais, assim como lavá-los e organizá-los, respeitando o meio em que vivem, ou seja, cuidam de si, do outro e do entorno.

Os registros das professoras por meio de vídeos e imagens são utilizados como apoio à memória das crianças, para que se reportem aos momentos vivenciados, e, assim, possam, com suas produções, significar as experimentações e revelar descobertas e interesses. Nessa proposta, uma interface com a linguagem visual está sendo construída, e as crianças, ao utilizarem diariamente suas vivências como temática para seus desenhos, avançam em seu percurso gráfico, percebendo que podem atribuir mais detalhes às suas criações.

Para valorizar as aprendizagens, um álbum da turma vem sendo elaborado pela professora com a participação das crianças, com o intuito de registrar as memórias do grupo, deixando suas marcas por meio de desenhos e falas. Outra prática que integra o álbum são as fotografias. Iniciamos com fotos tiradas pelas professoras, e agora as crianças passam a fazer esse registro no momento de exploração dos espaços. O acervo das imagens que serão impressas tem por curadoria toda a turma.

Pensar a organização das rotinas no espaço de Educação Infantil³ é aprender a transcender o cotidiano, estabelecendo uma nova cultura de acordo com o tempo local. E do ponto de vista das crianças, a pensar em como é viver em Curitiba.

Nossa maior conquista é que as crianças terão uma aprendizagem essencial que marcará sua memória de infância: saber o quão maravilhoso é brincar nos dias de chuva e que na escola as interações e brincadeiras acontecem independentes das condições do tempo.

Campo de experiências: espaços, tempos, quantidades, relações e transformações

As crianças são curiosas e procuram compreender o ambiente em que vivem. Suas características, suas qualidades, os usos e a procedência de diferentes elementos com os quais entram em contato, explicado, “o como” e “o porquê” das coisas, dos fenômenos da natureza e dos fatos da sociedade. Para tanto, em suas práticas cotidianas, elas aprendem a observar, a medir, a quantificar, a estabelecer comparações, a criar explicações e registros, criando uma relação com o meio ambiente, com a sustentabilidade do planeta, com os conhecimentos tradicionais e locais, além do patrimônio cientifico,
ambiental e tecnológico.

Base Nacional Comum Curricular – Educação Infantil, 2015. Brasília: Ministério da Educação. (Para consulta pública)


3 Segundo a fala de Maria Virginia Gastaldi na formação realizada na Secretaria Municipal de Educação de Curitiba (PR).
Posted in Revista Avisa lá #64.