A cultura infantil no muro e na comunidade

ANTONIO NORBERTO MARTINS, CINTHIA MANZANO, KELLY CRISTINA DO NASCIMENTO BATISTA E SHIRLEI APARECIDA DO CARMO¹


GRAFITEIROS E ARTISTAS LOCAIS ESTÃO ESPALHADOS PELA CIDADE, MAS SÃO POUCOS OS TRABALHOS FEITOS POR ESSES PRODUTORES E PELAS CRIANÇAS NOS MUROS DAS ESCOLAS


Pensando o currículo numa perspectiva de integração com a comunidade, no ano de 2015 a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Chácara Sonho Azul² definiu como eixo de seu Projeto Especial de Ação³ (PEA) a discussão sobre as culturas infantis e suas linguagens. Ao integrar crianças, professores, gestores, funcionários e comunidade, o PEA buscou incorporar a cultura urbana e a cultura de paz na Unidade, de maneira a valorizar as linguagens expressivas infantis e as manifestações artísticas, sem deixar de considerar também a ideia de sustentabilidade.

O projeto Fazendo Arte teve como principal ação na escola a criação e construção de um ateliê como um espaço de múltiplas linguagens e de reutilização de materiais descartáveis, assumindo uma visão e uma postura sustentável, afinal, considerando as manifestações da Arte Contemporânea, qualquer material pode ser utilizado em um processo de criação artística. Esse ateliê foi construído na lateral do prédio da escola, aproveitando-se de um corredor que antes não era
utilizado, cujo “teto verde”4 revela a preocupação contemporânea com a integração de áreas verdes nos espaços construídos e na arquitetura urbana. A fim de subsidiar os profissionais com vistas ao desenvolvimento desse trabalho, os professores e a coordenadora pedagógica participaram de uma série de encontros de formação com foco nas linguagens artísticas contemporâneas e nas práticas de ateliê.


1 Na Escola Municipal de Educação Infantil Chácara Sonho Azul, em São Paulo (SP), Antonio é diretor; Cinthia é consultora pedagógica e formadora do Instituto Avisa Lá; Kelly é coordenadora pedagógica e Shirley é assistente de direção.
2 A EMEI faz parte da rede pública do município de São Paulo. Está localizada no bairro do Jardim Ângela, zona Sul da cidade, e atende crianças de quatro a cinco anos.
3 Segundo Portaria de SME/SP, o PEA é um instrumento de trabalho elaborado pela Unidade Educacional, que expressa as prioridades estabelecidas no Projeto Pedagógico.

Uma das importantes ações objeto desse trabalho foi o RevitaVila: a cor na quebrada, que teve como objetivo a recuperação da pintura do muro da escola e a construção de uma pequena horta de temperos e ervas medicinais. No movimento de revitalização do muro, a primeira pergunta formulada para o grupo foi: De que maneira o muro, como elemento arquitetônico que separa o espaço interno da escola e o espaço externo da cidade, pode integrar essas duas dimensões de maneira a valorizar as produções infantis, mostrando que esta instituição reconhece as culturas infantis e também a cultura local? Nesse panorama de integração, a escola e a cidade tornam-se ambientes de aprendizagens. Buscou-se repensar a ideia de que a educação só ocorre dentro de muros protegidos. Nesse projeto, as linguagens das crianças ganharam o espaço da cidade e passaram a ocupar lugar de destaque na paisagem visual urbana.

A solução pensada para valorizar e integrar as culturas infantis e a cultura local foi aproximar de alguma maneira os desenhos das crianças, entendidos como uma das principais formas de os pequenos se expressarem, com o grafite, manifestação da Arte urbana muito comum na região do entorno escolar. O primeiro passo foi a articulação com um Coletivo Artístico de grafiteiros da comunidade local, o SPclan, composto de jovens que atuam no campo do hip-hop, e, portanto, trabalham com dança (break), música, sarau e grafite. Depois de algumas conversas, chegou-se a um acordo de que o muro da escola iria ser compartilhado entre os jovens do bairro e as crianças. A produção artística dos grafiteiros dividiria espaço com seus desenhos. Os jovens, por sua vez, ajudariam a transportar as produções infantis para
o muro. Para isso, foi decidida que a técnica do estêncil5 seria a melhor maneira para ligar os desenhos infantis e o grafite.


4 Um “teto verde” ou “telhado verde” é uma técnica de arquitetura que consiste na aplicação e uso de solo ou substrato e vegetação sobre uma camada impermeável, geralmente instalada na cobertura de residências, fábricas, escritórios e outras edificações.

A valorização da produção gráfica das crianças

Diante do desafio de transportar os desenhos das crianças para o muro por meio do estêncil, alguns novos e bons problemas se apresentaram ao grupo de profissionais da escola: Que condições precisam ser criadas para que sejam produzidos bons desenhos com o propósito de serem expostos à comunidade de maneira permanente no muro? Que tipo de desenhos se mostram favoráveis à técnica do estêncil? Essas boas perguntas mobilizaram reflexões do grupo
acerca de situações didáticas que contribuem para a evolução da criação dos desenhos infantis.

Podemos considerar o ato de desenhar como a marca de uma trajetória, uma brincadeira visual repleta de sentidos. Compreendido como linguagem, o desenho pode ser uma forma de se imprimir uma marca singular, o que contribui para que cada um possa delinear sua individualidade. A ação de desenhar pode ser vista como uma experiência que deixa marcas, registros, vestígios e também uma forma de se aproximar das linguagens artísticas. Produzir Arte implica olhar para o mundo de maneira curiosa, fazer perguntas, procurar formas de entender os acontecimentos e estabelecer relações. Na Educação Infantil, as crianças não produzem arte o tempo todo, mas as experiências que elas têm com a linguagem do desenho as envolvem em um intenso processo de imaginação e criação. Esse processo está ligado ao desenvolvimento da sensibilidade estética, do fazer artístico e da construção de narrativas.


Desenhando cria em torno de si um espaço de jogo, silencioso e concentrado ou ruidoso seguido de comentários e canções, mas sempre um espaço de criação. Lúdico. A criança desenha para brincar […]. Entendendo por desenho o traço no papel ou em qualquer superfície, mas também a maneira como concebe seu espaço de jogo com os materiais de que dispõe. […] O que é preciso considerar diante de uma criança que desenha, é aquilo que ela pretende fazer: contar uma história e nada menor do que uma história. Mas devemos também reconhecer, nessa intenção, os múltiplos caminhos de que ela se serve para exprimir aos outros a marcha dos seus desejos, de seus conflitos e receios. Porque o desenho é para
a criança uma linguagem como o gesto ou a fala. Ela desenha para falar e poder registrar sua fala. Para escrever.

Ana Angélica Albano
O espaço do desenho: a educação do educador,
São Paulo: Loyola, 1995. Cap. 1: “O desenho da criança”.


5 Um estêncil (do inglês stencil) é uma técnica usada para aplicar um desenho ou ilustração que pode representar um número, letra, símbolo tipográfico ou qualquer outra forma ou imagem figurativa ou abstrata, através da aplicação de tinta, aerossol ou não, através do corte ou perfuração em papel ou
acetato. Resultando em uma prancha com o preenchimento do desenho vazado por onde passará a tinta. O estêncil obtido é usado para imprimir imagens sobre inúmeras superfícies, do cimento ao tecido de uma roupa. (Fonte: Wikipedia)

Cada criança possui diferenças individuais ao organizar seu espaço de brincadeira e construir seus desenhos. Ela desenha para brincar e, ao fazer isso, cria ao seu redor um espaço de jogo. Quando proporcionamos bons espaços e boas oportunidades para elas brincarem enquanto desenham, a criação e a expressão acontecem globalmente: o corpo participa da criação. E é também nesse sentido que se pode entender o desenho como movimentação e atitude infantis, uma vez que o gesto, ao tornar-se exercício para a individualidade, apreende o desenho também como atitude.

No trabalho educativo dos pequenos, é muito importante que o professor crie contextos para a exploração dos processos ligados à produção artística. Nesse sentido, pode organizar propostas de atividades que despertem a curiosidade e o olhar investigativo: como posso expressar o que sinto, o que desejo, como vejo e me relaciono com o outro, uma ideia etc. Considerando a faixa etária das crianças da EMEI, de quatro a cinco anos, uma sequência didática com foco na linguagem do desenho de observação6 pode contribuir significativamente para que elas ampliem seus conhecimentos sobre suas marcas gráficas. Diante dessa consideração, os professores organizaram ambientes nos quais as crianças puderam observar o que gostariam de desenhar para ser exposto no muro. Seguindo os interesses infantis manifestados em rodas de conversa organizadas previamente em cada sala, observaram e desenharam principalmente: a si próprias, em propostas de autorretrato com espelhos; os outros; a vegetação da escola, incluindo árvores e demais plantas; a paisagem urbana local; e os brinquedos do pátio. Em diferentes momentos puderam escolher a posição na qual se sentiam mais confortáveis para desenhar: deitadas, de pé, sentadas, agachadas. Desse modo, puderam circular pelos espaços e escolherem o ângulo a partir do qual gostariam de desenhar o objeto escolhido. Os suportes utilizados para os desenhos foram apoiados no chão, nas paredes, em mesas e em pranchetas, o que também contribuiu para ajudar a garantir uma boa condição para a exploração de diversos pontos de vista.


6 É possível pensar em três diferentes modalidades de desenho: observação, memória e imaginação. Com base em estudos na área de Arte e Educação, sabe-se que a prática de desenhos de observação contribui muito para a melhoria da qualidade dos desenhos de memória (imagens lembradas) e dos desenhos de imaginação (imagens inventadas).

Para que os desenhos pudessem ser transformados em estêncil precisavam ser grandes e com linhas bem definidas e marcadas. Dessa forma, os materiais cuidadosamente escolhidos pelos professores e oferecidos às crianças foram grandes papéis, como cartolinas e grandes folhas de papel Kraft (os suportes) e canetas hidrográficas coloridas de ponta bem grossa (os riscantes). Elas foram desafiadas a criar grandes desenhos, e o propósito de utilizá-los para a decoração do muro foi compartilhada com os pequenos, e isso fez toda a diferença na produção, que, por sua vez, se tornou mais significativa na medida em que tomaram conhecimento do processo que estavam vivenciando. Antes de partir para a etapa da produção dos desenhos, algumas propostas de apreciação de grafites de artistas consagrados foi um momento fundamental para alimentar o percurso de criação de todos7. Procurou-se também nessas rodas de apreciação mapear o que elas conheciam sobre a Arte do grafite a partir das imagens de paredes do bairro. E elas conheciam bastante, pois convivem diariamente com essas imagens pelas ruas onde vivem!

A celebração da concepção de educação e de cultura

Com os desenhos prontos, a equipe da escola organizou um verdadeiro dia de festa para as famílias e a comunidade do entorno. Nesse dia, os jovens grafiteiros pintaram parte do muro da escola e realizaram uma espécie de minioficina com as crianças para que elas aplicassem seus desenhos no muro utilizando a técnica do estêncil. Nesse dia também as crianças, acompanha das dos professores e das famílias, plantaram temperos e ervas medicinais em grandes caixas de madeira que foram conseguidas junto aos comerciantes da região e pintadas previamente pelas próprias crianças. Depois do grafite e do estêncil no muro e do plantio da horta na parte da manhã, além de uma grande ciranda com todos os presentes, foi promovido um sarau com muita dança (break), poesia e música que se estendeu pelo resto da tarde. Uma verdadeira celebração do uso da escola como espaço de convivência da cidade!


7 Alguns artistas contemporâneos urbanos conhecidos por suas obras com a técnica do grafi te foram estudados e apresentados pelos professores às crianças a partir de situações de apreciação de imagens. Foram eles: Keith Haring; Michel Basquiat; Alex Vallauri e Os Gêmeos.

Uma concepção de gestão

Penso que a gestão da escola tem que estar em função do pedagógico. Se em uma instituição de Educação Infantil as crianças já dão a cara em suas manifestações de alegria, seja no pátio ou nos corredores, esse é um dos sinais que o pedagógico está bem.

Na escola é bom que existam vários projetos acontecendo ao mesmo tempo e estes têm que estar relacionados aos direitos das crianças e aos campos de experiências. Em outras palavras o gestor precisa trabalhar com o coordenador, ouvir muito a opinião desse parceiro. A mesma coisa em relação ao assistente de direção que não deve ter o seu papel só direcionado ao administrativo, é outro parceiro importante na gestão. Deve-se considerar a opinião dos professores e funcionários, que não podem fazer um trabalho alienado, todos devem ter clareza da proposta pedagógica da escola. Se a escola faz parte de uma rede, tem que se informar das novidades e se inteirar das políticas educativas do município, sem perder de vista a autonomia da escola.

Tem que construir um bom relacionamento com a comunidade para que a gestão seja democrática. Transparência é bom. É importante se articular à cultura local, para que esta, na medida do possível, se integre ao currículo e isso só ocorre se o espaço escolar estiver aberto para a comunidade. Também é fundamental ser solidário com as lideranças locais, participar de suas reuniões. Enfim, buscar formar um território educativo. Isso só acontece se os projetos da escola se tornarem espaços de formação para as professoras e funcionários. A formação na escola é muito importante, pois ela liga a pratica pedagógica ao que está acontecendo no entorno.

Para terminar o administrativo é importante, mas deve estar, na medida do possível, em segundo plano. É o que penso: o olhar do diretor tem que ser pedagógico, tem que circular na escola para ver com olhos de ver mais.

Antonio Norberto Martins

Os resultados significativos nas aprendizagens

O grupo de profissionais avaliou que a ação empreendida no âmbito do projeto foi um sucesso, na medida em que o aprendizado das crianças foi muito significativo, assim como o dos professores e gestores. Puderam ampliar seus conhecimentos sobre o desenho, conheceram um universo da Arte, isto é, o grafite, com mais profundidade e gostaram muito de ver o muro todo grafitado, o que também contribui para que se sintam valorizados e pertencentes àquele espaço, uma vez que percebem que a escola em que estudam está cuidada e bonita. Toda a atividade que envolveu o RevitaVila teve como foco o processo de construção do ateliê, compreendido aqui como um lugar de criação por excelência. A parceria com os jovens do Coletivo SPClan, por sua vez, foi consolidada e foram planejadas outras ações de grafitagem e paisagismo no entorno da escola, assim como atividades de oficinas, oxigenando mais ainda o currículo da escola. A aceitação das famílias também foi excelente, assim como da comunidade do entorno, que participaram de cirandas, acompanharam seus filhos no plantio, no mutirão de pintura do muro interno do parque e nas atividades culturais. Configurou-se, assim, uma situação de confraternização da comunidade e ocupação dos espaços públicos. Todos aprenderam muito e puderam observar os problemas que podem ser melhorados no que se refere à organização de momentos nos quais se estabelece mais concretamente um diálogo com a comunidade. Por fim, é bom lembrar que o projeto abriu portas para outras parcerias que apoiaram as ações e criaram vínculo com a EMEI e com a comunidade, como o Coletivo Dedo Verde, a Banca Jovem e a Cidade Escola Aprendiz. Essas parcerias fortalecem a ideia contida no Projeto Pedagógico da escola, que persegue a meta de se abrir para a comunidade e para as práticas de parceria.

Posted in Revista Avisa lá #64.