Com leitura e afeto

EDI FONSECA¹


É POSSÍVEL LER PARA BEBÊS. O QUE CRIANÇAS E PROFESSORES APRENDEM COM ESTA AÇÃO?


Temos que ler para os bebês, para sustentar uma relação afetiva e amorosa com os pequenos, para criar oportunidades e saberes promovidos pela leitura literária e para deixar uma referência fundamental de vida para eles. Embora para muitas famílias e escolas essa ação seja óbvia e desenvolvida diariamente, ainda para outras tantas instituições é necessário um trabalho efetivo.

A fim de levar essa concepção aos professores de crianças de zero a três anos para uma rede pública de educação em uma cidade no estado de São Paulo, mergulhamos em um processo formativo durante um ano focado apenas no âmbito da leitura para os pequenos. Foram realizados 20 encontros com duração de duas horas, distribuídos ao longo do ano, tratando de diferentes conteúdos, como a construção do problema da formação; significado, sentido e contexto de leitura; especificidades da leitura para crianças de zero a três anos; leitura pelo professor; diferença entre ler e contar; comportamentos e propósitos leitores; as competências do professor: o que fazer antes, durante e depois da leitura em voz alta; critérios de escolha de livros; livro ilustrado; leitura em voz alta como atividade permanente² da rotina; e práticas de leitura e modalidades organizativas³ – biblioteca circulante, cantos de leitura, mar de histórias.


1 Formadora e coordenadora de projetos de formação de professores de Educação Infantil pelo Instituto Avisa Lá; é também narradora oral. Esse texto é parte de seu trabalho de conclusão do curso de pós-graduação A Arte de contar histórias, abordagens poética, literária e performática, Faculdade
de Conchas – Facon, Conchas (SP).

Como estratégias formativas, priorizamos a tematização da práticae a dupla conceitualização5 – a leitura pelo professor, que muito contribuiu para as reflexões dos professores e avanços em seus fazeres.

Ler em todos os encontros para os professores foi um modo de criarmos oportunidades para vivenciarem a leitura, se aproximarem dos livros e se encantarem por eles. Como falar com entusiasmo sobre algo que não se têm muito conhecimento, aproximação, intimidade? Precisariam passar por boas situações como leitores, já que a maioria não pode experimentá-las em sua trajetória de vida. Infelizmente encontramos essa realidade em muitos municípios de nosso País com os quais trabalhamos nos projetos de formação. Os professores da rede apresentada também não fugiram à regra ao relatarem sua trajetória com a leitura literária.

Para que a leitura pudesse ser feita de forma envolvente, cada formadora teve a liberdade de selecionar os textos que mais apreciava e que interessassem mais às suas turmas.

Durante o ano, foi necessário observar e ouvir o que os professores apresentavam de mudanças em suas práticas e apontavam em cada etapa da trajetória formativa, validando suas dúvidas e a construção de conhecimentos. Aos poucos algumas ideias enraizadas puderam ser modificadas, como a crença de que crianças pequenas só se interessam por livros coloridos, com figuras grandes, textos bem curtos e a escolha dos professores por exemplares com conteúdos moralizantes ou pertencentes às áreas do conhecimento. Durante o ano, foi necessário observar e ouvir o que os professores apresentavam de mudanças em suas práticas e apontavam em cada etapa da trajetória formativa, validando suas dúvidas e a construção de conhecimentos. Aos poucos algumas ideias enraizadas puderam ser modificadas, como a crença de que crianças pequenas só se interessam por livros coloridos, com figuras grandes, textos bem curtos e a escolha dos professores por exemplares com conteúdos moralizantes ou pertencentes às áreas do conhecimento.

As necessidades apresentadas pelos professores exigiram a abordagem de questões mais específicas para o trabalho de leitura com os bebês.

Além do processo formativo, utilizei a experiência para desenvolver uma pesquisa com seis professoras6 para integrar meu trabalho. A idade das crianças que compunham seus grupos variou de seis meses a um ano e nove meses. Por meio de questionários e filmagens foi possível destacar o grau de apropriação do trabalho formativo.


2 Uma das modalidades organizativas para o tempo didático, a atividade permanente tem o objetivo de criar hábitos, por isso aparece com frequência na rotina escolar.
3 São formas de organizar a rotina de acordo com os objetivos do trabalho visando à qualidade na utilização do tempo didático. São elas: os projetos, as atividades permanentes ou habituais, as sequências de atividades e as atividades independentes.
4 Segundo Telma Weisz (apud HEIDCH, 2008), a tematização consiste em analisar práticas que foram registradas – por escrito ou por gravações em vídeo ou áudio – permitindo que os docentes compreendam quais as teorias que guiam suas ações. A ideia não é avaliar se a situação registrada foi conduzida pelo docente de forma certa ou errada, muito menos oferecer uma ideia transmissiva do que deve ser aplicado em sala de aula, mas sim, de tomar consciência das concepções que apoiam suas escolhas, ações e modos de encaminhamento.
5 Delia Lerner, em Ler e escrever na escola: o real o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002, explica que as situações de dupla conceitualização têm como objetivos: fazer que os professores construam conhecimentos sobre o objeto de ensino e que reflitam sobre as condições didáticas para que as crianças possam aprender sobre esse objeto. Elas visam apoiar o planejamento e envolvem práticas sociais reais selecionadas pelo formador para tornar evidentes os processos vividos pelos sujeitos durante determinadas ações e também para explicitar a natureza dos objetos de conhecimento. Uma estratégia formativa adequada quando os professores não têm muita apropriação do conteúdo a ser ensinado.
6 Para preservar a privacidade das professoras que participaram da pesquisa, os nomes foram omitidos neste trabalho.

Olhos e ouvidos atentos

Dos questionários analisados faziam parte as seguintes questões:
a. Como acontecia o trabalho com a leitura para os bebês antes da formação realizada neste ano?
b. Como o trabalho com a leitura é realizado agora?
c. Quais os avanços em sua prática?
d. Quais as mudanças que observa nas crianças?
e. O que acha que é essencial garantir na leitura para os bebês?

Os subtítulos seguintes mostram quais os aspectos mais relevantes a formação suscitou para as professoras.


7 Auxiliares de Desenvolvimento Infantil.

Os bebês em movimento

No começo dessa formação havia a crença de que a atenção é que garante a aprendizagem e não que o envolvimento na atividade gera atenção. Os professores esforçavam-se para que as crianças aprendessem a ficar atentas no momento da roda de leitura e buscavam livros e outros materiais para apoiá-los nessa tarefa, muitas vezes frustrantes para os professores e desgastantes para os bebês.

Profa. B – Bem, comecei a trabalhar em creche neste ano, então, sem experiências anteriores, eu ia bem pela intuição, pelo que as ADIs7 faziam na sala e pelo que eu via acontecer nas salas ao lado. Não deixava as crianças pegarem nos livros, e mesmo que a criança chorasse, fazia (com ajuda das ADIs) com que elas permanecessem sentadas. Não usava muitas entonações de voz diferentes, tentava sempre ler aqueles livros com dobraduras e imagens, nos quais acreditava que eles ficavam mais atentos.

Profa. D – […] quando iniciei o trabalho fiquei muito preocupada com o momento da leitura, pois queria que os bebês ficassem sentados prestando atenção, então fazia de tudo para colocá-los sentados, e todas as vezes que saíam eu ia atrás e sentava-os novamente, achando que teria que ser assim, pois com muita insistência achava que iam adquirindo postura de leitor e pensava que estava fazendo o que era correto. Não entregava os livros de “boa qualidade”, pois ficava apreensiva, com medo que os rasgassem.

Profa. F – Para os momentos de leitura eu escolhia aqueles livros Pop-up porque achava que chamava mais atenção das crianças e era adequado à faixa etária, ou seja, para os bebês. No momento da leitura, eu insistia para que todas as crianças ficassem sentadas, atentas à história, mas sempre uns dois ou três levantavam e ficavam andando, ou até mesmo a maioria levantava, chegando a ficar apenas um sentadinho, olhando fixamente, parecia encantado, confesso que era difícil entender essa movimentação e isso me frustrava muito, me sentia incompetente, incapaz de prender a atenção das crianças.

O estudo e a discussão de textos teóricos sobre a criança e o movimento, as tematizações da prática, com enfoque nas ações dos bebês durante as situações de leitura, bem como a observação das intervenções da educadora de apoio, ajudaram a mudar o olhar e a ação dos educadores. Passaram a respeitar a movimentação durante as atividades e compreenderam que o movimento é o pensamento em ação e tem papel importante para expressar emoções.

Nos vídeos de suas práticas, vimos cenas em que esse aspecto fica muito evidenciado. Em um deles a professora A lê para seu grupo formado por doze crianças. Algumas ouvem a história em pé enquanto outras se sentam mais afastadas, mas todas demonstram acompanhar a leitura. Em determinado momento uma criança que está de pé dobra o corpo ao meio, levando as mãos e a cabeça ao chão – imitando a figura do bebê que aparece na história. Uma delas ajuda a professora a segurar o livro. Duas crianças escutam a leitura deitadas enquanto uma terceira, de costas para a turma, acompanha as ilustrações pelo espelho que há na sala. Outra olha e mexe no braço e duas mais se olham e brincam com as mãos. Parecem estar dispersas. Quando a professora lê: Surpresa! Era aniversário do papai!, todos voltam os olhares para ela novamente. Durante a leitura repetem sons e palavras como trim, trim, tanto, tanto e papai.

A professora se mostra à vontade, lê, interage com as crianças por meio do olhar, dá atenção e espaço para as repetições das palavras e aceita o fato de alguns estarem em pé, afastadas ou se movimentando. Assim que termina a leitura, várias querem pegar o livro.

Profa. A – A questão do movimento foi a mais relevante, o que proporcionou momentos mais tranquilos e agradáveis. Conhecer as especificidades da faixa etária e respeitá-las é fundamental para que o ambiente seja agradável e a aprendizagem aconteça.

Profa. E – Entendi que para ler uma história não precisa necessariamente todos estarem sentados à minha frente e ao mesmo tempo, pois devemos respeitar o movimento nesta faixa etária não exigindo que todos permaneçam sentados. Sendo assim, hoje a leitura acontece em vários momentos da rotina e de diferentes maneiras: leituras individuais, em pequenos grupos ou em grupos maiores.

Profa. F – Mas, frequentando a formação, que me instigava a ir à busca, pesquisar e realizar leituras específicas sobre a leitura para bebês, fui compreendendo a razão pela qual tudo aquilo acontecia, o porquê daquela movimentação, e fui então refletindo sobre minha prática. […] Ter claro o quanto os bebês estão se desenvolvendo, o quanto estão se movimentando, e que esse movimento está diretamente ligado a descobertas que permitirão a esse bebê o conhecimento do mundo no qual está inserido, acreditar também que o movimento nem sempre permeia bagunça, que quando direcionado e visto com olhar positivo, pode nos revelar momentos muito significativos, e foi exatamente isso que aprendi na formação e levei para minha prática profissional.

Acesso livre dos bebês aos livros

Com relação a não oferta de livros, verificamos em várias escolas que eles são guardados fora do alcance das crianças. Muitas vezes o acervo não possui uma quantidade razoável de exemplares e há receio de que eles sejam estragados. Por trás dessa postura também pode existir a concepção de que primeiro a criança precisa “treinar” nas revistas e gibis, para depois, quando souberem manuseá-los, possam lidar com as obras de boa qualidade. Em inúmeras escolas com as mais diferentes realidades do País, os professores relatam que no canto de leitura de sua sala só há revistas antigas, amassadas e livros com textos curtos e empobrecidos, com imagens estereotipadas.

Outra possibilidade para não permitir o manuseio dos livros, pode basear-se em uma educação mais transmissiva, na qual a criança aprende apenas observando o educador, sem proporcionar aos bebês a experiência com o objeto livro para aprender a folheá-lo, apreciá-lo, mordê-lo etc.

Foi importante promover situações de dupla conceitualização aos professores, como no momento em que eles se colocaram numa situação real de fruição de diferentes obras literárias. Isso possibilitou que percebessem o que se ganha ao ter a oportunidade de manipular os livros, tudo o que se pode fazer nessa ação sozinho ou na companhia do outro, se divertindo, conversando, tendo a chance de trocar opiniões sobre o que foi observado, reencontrando uma obra que havia sido apresentada pela formadora e, em seguida, pensar como essa atividade poderia ser realizada com os bebês. A reflexão sobre o acesso dos pequenos aos livros suscitou novas formas de organização e uso do acervo nas salas e em outros espaços da escola.

O bebê inicia essa “pesquisa”, como em todas as novas coisas que encontra, a partir de um contato físico e sensorial. Ele explora o objeto livro colocando-o na boca, brincando com ele. Explora suas formas, suas cores, seu odor, sua diagramação, suas ilustrações, “chupa”, “come”! São as primeiras apropriações da língua escrita que fazemos com o corpo inteiro, com os gestos, primeiro tentando pegar a imagem, para depois tocá-la, tendo tanto o prazer de escutar de perto quanto de longe, do outro lado da sala, enquanto fazemos outras coisas. Essas explorações abrem um caminho que parte do corpo de quem lê e se desenvolve em direção ao imaginário da criança8.

Na filmagem da professora E, apresenta-se inicialmente uma sala sem crianças. Há no chão um tecido com muitos livros sobre ele e algumas almofadas. Um expositor de livros de tecido e plástico transparente na parede expõe outros títulos. A professora entra na sala com os alunos e os convida para a atividade. Eles fazem suas escolhas e a professora lê para os que pedem a ela. A educadora lê baixo, faz comentários à medida que a criança aponta uma imagem, fala algo sobre o personagem:

Criança – Ó o gato!
Profa. – Que bocão!
(Criança imita a boca aberta do gato).

Profa. A – Deixar que as crianças brinquem com os livros, que os tenham próximos a elas e que posteriormente sejam convidadas à leitura. E respeitar seus movimentos, próprios da faixa etária.

Profa. E – Que os livros sejam de boa qualidade, que possam estar disponíveis para os pequenos manusearem em diferentes momentos. Que o ambiente seja aconchegante, favorecendo a leitura. Que haja um planejamento para que esses momentos sejam bem aproveitados.


8 Ler histórias para os bebês: Que história é essa?, de Patrícia Pereira Leite. Revista Emília, novembro de 2014.

Obras de qualidade

Profa. C – Acredito que, como a maioria das professoras de creche, eu tinha como prática constante usar um livro como apoio (escolhia os mais coloridos possíveis, cheios de “imagens fofinhas”) e contava a história, pois nem todos os livros com essa característica têm um texto de qualidade, e quando tinha eu considerava muito longo e achava que os bebês não tinham um tempo de concentração sufi ciente para esperar a leitura do texto antes de ver as figuras.

De modo geral, o mercado voltado ao público infantil oferece produtos com desenhos de personagens conhecidos de filmes ou de programas de TV ou ilustrações estereotipadas com desenhos infantilizados. Realmente livros com esse tipo de ilustração são os mais fáceis de encontrar e os que muitas vezes são mais baratos. É preciso lembrar que a escola deve trabalhar com a ideia de ampliação e troca de conhecimentos e acreditar que as boas ilustrações são, em vários casos, as primeiras aproximações da criança pequena com as artes plásticas, e elas são capazes de apreciá-las. Várias crianças, adultos hoje (e isso inclui os professores) não receberam uma educação para as artes visuais, o que gera receio por tudo o que é diferente do que estão acostumados a olhar. Na hora da aquisição de livros, as escolas acabam adquirindo os que possuem ilustrações muito parecidas, livros com sons, pop-ups, que brilham etc.

As leituras e discussões sobre os critérios de escolha, bem como as atividades para análise de texto e imagem nos livros infantis, jogaram luz sobre a preocupação com a qualidade do acervo apresentado aos bebês. Com base nisso, outras questões e comentários foram surgindo: Eu não leio, apenas conto as histórias com o livro na mão, senão eles se cansam. / Se o bebê não sabe o que está escrito, qual o problema de contar com o livro, ao invés de ler a história? / Por que não ler algumas partes e contar outras? / Os livros com histórias reduzidas e simplificadas são os que mais temos na escola, pois são esses que os pais podem comprar.

A questão da qualidade textual e narrativa já estava vislumbrada. Mas o grupo docente ainda ficava com dúvidas, pensando que os bebês precisariam compreender integralmente o texto das histórias para prestar atenção nelas, ou ainda que os livros mais interessantes fossem também os que tinham histórias mais bem escritas, mais complexas e talvez mais difíceis para as crianças pequenas.

Os professores já tinham como prática contar histórias para os pequenos, o que sempre foi muito valorizado. Costumavam fazer as narrativas orais com os livros em mãos. Como as crianças são grandes observadoras, aprendem muito observando cada gesto do adulto: o modo como manuseia o livro, se passa o dedo sobre o texto para marcar o que é lido etc. Nossa tematização dessa vez teve como foco pensar quais informações os bebês podem observar quando lemos e narramos oralmente, e o que as crianças aprendem em cada uma das situações.

Profa. B – Os livros que escolho têm histórias de fato e não só nomeação de objetos e pequenas frases.

Profa. C – Confesso que relutei no início à ideia de ler na íntegra os textos. Comecei a procurar histórias com pouco texto (mas de boa qualidade) e muita imagem. Não vou dizer que foi instantâneo, mas a prática me mostrou que cada vez mais os bebês estão entendendo esse momento da leitura e, o que é melhor, estão gostando e aproveitando essa atividade da nossa rotina. Claro que também há o fato de que eles estão crescendo, mas acredito que não conseguiria o mesmo resultado que tenho hoje se continuasse com a minha prática de “meio contação, meio leitura”. Minha turma hoje é muito falante, gosta de “ler” histórias para mim, ficam muito tempo folheando livros e contando suas histórias.

A organização das crianças para a leitura

Profa. E – A leitura sempre foi realizada diariamente. Lia-se o livro com antecedência para verificar quais pontos poderiam ser levantados no antes, durante e depois. Não havia critérios para a escolha do livro, simplesmente era pego aleatoriamente da biblioteca da escola e lido para as crianças. As Rodas de História sempre aconteceram com as crianças de frente para a professora, sempre segurando o livro e lendo para todos. O manuseio de livros era realizado duas vezes na semana; era estendido um tecido e colocados os livros em cima. Em meu plano de ensino, o objetivo principal desta vivência era desenvolver o comportamento leitor. Ora eu permanecia apenas manuseando os livros, lendo para eu mesma, ora incentivando para que eles pegassem e folheassem. Em nossa sala também havia um espaço onde os livros ficavam à disposição das crianças o dia todo. Também sem critérios de seleção.

Profa. F – Tenho que dizer que, no início do ano, foi um pouco difícil, cheguei a me sentir frustrada, pois eu acreditava que deveria ler para todos do grupo de uma só vez, assim como acontecia no Ensino Fundamental, minha experiência anterior, mas aí estava o problema.

Ler diariamente para as crianças é, sem dúvida, algo que precisa ser valorizado, porém não é o sufi ciente. Preparar a leitura com antecedência é o que se espera dos professores. Mas a questão aqui era outra. Será que deveria ser considerado no planejamento para essa faixa etária o mesmo que se garante com os maiores? Por exemplo, para as crianças de três anos, planeja-se o que pode ser conversado após a leitura. Com os bebês será proposto o mesmo encaminhamento e de igual modo? Os maiores já conseguem fazer uma roda para a hora da história. Como organizar o espaço e o grupo de bebês para as situações de leitura?

Assistindo aos vídeos da professora de apoio e tematizando suas práticas foi possível pensar que se os bebês engatinham e se movimentam pela sala, organizar vários cantos com livros possibilitam a movimentação no espaço. Outra sugestão foi pensar em leitura para pequenos grupos: o professor ou Auxiliar de Desenvolvimento Infantil pega um livro, mostra para uma ou mais crianças que estão próximas a ele, faz o convite para a leitura, e os que estiverem interessados podem usufruir desse momento. A leitura individualizada também foi uma proposta que gerou inúmeras interrogações. A preocupação dos docentes era se estou lendo apenas para uma criança, o que estarão fazendo as outras? Muitas vezes os primeiros comentários que faziam estavam sempre ligados ao receio das mudanças de espaço, de organização do grupo, de materiais – algo aparentemente mais voltado para o externo.

Por outro lado, também foi muito bom poder contar com aqueles que, de acordo com as orientações dadas, se disponibilizaram a tentar e depois relataram aos colegas o planejamento e o desenvolvimento da atividade. Como no caso da professora F, que fez cantos diversificados: um com brinquedos de encaixe, outro com caixas, um terceiro com livros. As duas ADIs e ela se dividiram para ficar próximas dos bebês. A educadora ficou perto do canto de leitura e foi mostrando os livros, lendo para aqueles que quisessem. Contou que foi bem tranquilo, porque os que não quiseram ler puderam escolher e se envolver em outras atividades.

É preciso ter momentos coletivos e individualizados. As crianças, desde pequenas, precisam de momentos para ficar consigo mesmas. Necessitam também ter o direito de escolha. Assim como um adulto, as crianças têm preferências, oscilações de humor, e cabe ao professor ter flexibilidade para abrir esse espaço, respeitando as individualidades e promovendo outras atividades.

Profa. A – Os bebês se apropriam do objeto livro de forma diferente, pois querem pegar, rasgar, morder. Os momentos de interação entre o bebê e o professor precisam acontecer de forma mais intensa para ser construído o vínculo afetivo, e a leitura individualizada ou em pequenos grupos propicia essa interação.

Profa. B – Faço momentos em que eu leio pra eles e deixo que peguem no livro depois; faço outros momentos em que distribuo livros para todos e vou tentando dar atenção individualmente para auxiliá-los na leitura; também faço momentos de contação (antes não fazia, me sentia insegura), converso com eles antes da leitura sobre a capa do livro, os personagens; também deixo que eles escolham o livro que será lido.

Profa. D – Atualmente é um momento muito prazeroso, pois no início, às vezes, nem lia para eles, pois sentia que não tinha capacidade para isto […] Na escola temos um cantinho, inaugurado em abril/2014, onde há diversos livros colocados em varais na altura dos alunos para que eles manipulem, explorem; é um lugar que frequento todas as semanas com os bebês; os livros expostos são de “boa qualidade”; neste espaço há sofás feitos de colchões, tapete de EVA no chão, objetos pendurados no teto. Na sala, monto um espaço de leitura: a Bebeteca (materiais: edredom utilizado como tapete, almofadas e aí espalho os livros). Neste espaço, deixo os bebês manipularem os livros e vou individualmente conversando, lendo para eles. Há momentos que querem ficar virando as páginas e apreciar as figuras. Procuro deixá-los bem à vontade.

Profa. F – […] Assim fui transformando os momentos de leitura, lendo para pequenos grupos, para uma só criança, e também oferecendo às crianças o prazer de presenciar diferentes momentos de leitura em diferentes espaços da escola, como no bosque, quadra, árvore do parque, casinha, solário, biblioteca, cantinho da leitura e sala. Mas de todos esses espaços e momentos, preciso destacar que os bebês adoravam o MAR DE HISTÓRIAS9, principalmente quando realizado no bosque e na biblioteca.


9 Atividade que consiste em colocar muitos livros no chão sobre um tecido grande, permitindo que os leitores façam escolhas.

Escuta e observação – as aprendizagens dos bebês

As propostas de organização com diferentes composições – em pequenos grupos ou com a leitura individualizada – foram mais adequadas à faixa etária. Possibilitaram acompanhar ainda mais as reações dos bebês e fazer as intervenções necessárias, como validar um comentário, nomear o que é apontado no livro pelo bebê, ler novamente a história quando solicitado, perguntar se há interesse por outra leitura, permitir a escolha dos livros etc. Acompanhar os esforços, as soluções encontradas pelos bebês para os desafios enfrentados, as mudanças em seu desenvolvimento e suas conquistas. Assim nos diz Rinaldi10 sobre a proposta no trabalho em Reggio Emilia11:

Escuta que tira o indivíduo do anonimato, que nos legitima, nos dá visibilidade, enriquecendo tanto aqueles que escutam quanto aqueles que produzem a mensagem – e as crianças não suportam ser anônimas.

No vídeo que mostra a professora E lendo para uma criança de dois anos, pudemos observar o quanto aquele pequenino ser tinha se apropriado de vários conhecimentos. Após ter lido a história uma única vez, o bebê pega o livro das mãos da professora e começa a folheá-lo. A cada parte lida da história, a criança percebe, por meio do ritmo da leitura, que há continuação do texto na folha seguinte e vira a página, no momento exato – e isso aconteceu até o fim do livro.

Na gravação de uma leitura individualizada realizada pela professora C, a criança está sentada em seu colo. Observamos que, dessa forma, o bebê se sente acolhido; o momento é de partilha e há o que Yolanda Reyes chama de triângulo amoroso. A criança olha para o livro na mesma direção que o adulto olha. Depois, vira a cabeça e olha para o adulto – para seus lábios proferindo as palavras, para seu olhar que dá vida à história – e volta a mirar o livro, e assim por diante. É assim que o objeto livro ganha significado, disse Patricia Pereira Leite em um de seus encontros de assessoria para a nossa equipe. Em uma cena seguinte, a mesma professora lê um livro de frente para a criança, com o exemplar virado de lado, possibilitando a visão dos dois. Desta vez, a professora consegue perceber que a criança mexe os lábios durante a leitura, que arregala os olhos em algumas partes, demonstrando surpresa. Não queremos dizer que um encaminhamento é melhor do que o outro, pois em cada um deles garantem-se aspectos diferentes, igualmente importantes. O que vale aqui é ressaltar como a observação das próprias ações possibilitou não só novas formas de conduzir a atividade como o aprimoramento do próprio olhar.

Profa. A – Outra mudança é a leitura em pequenos grupos e leituras de histórias que as crianças demonstram interesse, como no caso do “mar de histórias”. As crianças escolhem os livros para a professora realizar a leitura. A relação entre a professora e o aluno é construída e aprofundada com esses momentos; além disso, a professora pode conhecer, observar, OLHAR seu aluno e perceber detalhes que, na leitura coletiva, é mais difícil.


10 Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender, de Carla Rinalde. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 125
11 Escola pública em Reggio Emilia, Itália, que acredita que a criança é protagonista de seu processo de conhecimento, cuja proposta de trabalho é usar a linguagem gráfica para explorar as formas de aprender das crianças.

Profa. B – Percebo uma grande evolução deles na linguagem oral e acho que a leitura contribuiu nisso, pois os estimulo bastante à fala nos momentos de roda. Também fico impressionada sobre como alguns deles conseguem já memorizar as histórias e recontá-las depois. Nessa semana, li pela primeira vez a história do “pum – aquela do cachorro que se chamava pum” e, no dia seguinte, dei os livros que havia lido durante a semana para eles manipularem. Uma aluna recontou partes da história. Fiquei muito contente!

Profa. C – Acho que não só para os bebês, mas para qualquer idade, o essencial é transmitir para seus ouvintes sua paixão pela leitura e se conectar com eles através do olhar. Assim não tem erro: seus ouvintes vão se apaixonar pela leitura tanto quanto você.

Profa. D – O interesse pelos livros. Eles já escolhem os livros para ler através das suas imagens. Gostam muito de manusear, apreciar as imagens. No início do trabalho, os livros, as revistas eram rasgadas com mais frequência, colocavam diretamente na boca, necessitando muito de intervenções dos adultos.

Profa. E – Os adultos conseguem perceber falas e colocações que os pequenos fazem sobre as histórias, e em grupos grandes isso talvez não fosse possível. Identificamos com mais facilidade as preferências, pois os momentos de escolha estão mais presentes na rotina. O movimento fica evidente nesses momentos, percebendo um maior envolvimento por parte das crianças.

Profa. F – […] meus pequenos revelavam isso quando pediam, às vezes até sem ainda fazer uso da linguagem oral, mas através de gestos, para eu ler várias vezes um mesmo livro ou um livro escolhido por eles no Mar de histórias, no Cantinho da leitura ou na Biblioteca […].

O conhecimento como empoderamento

À medida que as conversas estimulavam a reflexão sobre as aprendizagens das crianças e o papel do educador foi possível observar a movimentação dos professores, no sentido de conseguir que remexessem suas convicções e seus modos de atuação. Legitimar os medos, incentivar os docentes para as tentativas com possibilidade de avaliação (reavaliação) e adaptações e a reafirmação de seus papéis como profissionais da Educação – que precisam dominar o que fazem – colaboraram demasiadamente para fortalecê-los e encorajá-los para as mudanças.

Profa. A – Na minha prática foram muitos os avanços. A escolha de bons livros, com bons textos e ilustrações, a organização do ambiente. A questão da motricidade no processo mental da criança, como movimento e manutenção da atenção. A observação do professor para o aluno. As leituras coletivas menos “engessadas” e as leituras para grupos menores, em duplas ou individuais. A interação com meus alunos. O manuseio e exploração dos livros…. Os avanços se estenderam em minha prática, passei a olhar para as crianças considerando a sua faixa etária de forma mais concreta e estendi minhas reflexões para todos os eixos de trabalho. Minha prática se tornou mais leve e produtiva, me tornei mais
segura e comprometida.

Profa. C – Aprendi principalmente que não se deve subestimar a capacidade de aprendizagem e compreensão de um bebê!

Profa. D – Com certeza, hoje estou mais preparada e me sentindo muito segura do trabalho que estou realizando, não fujo dos momentos de leitura, não tenho mais receio em entregar os livros para os bebês, todos já se interessam pelas
situações de leitura que proponho, a cada dia que passa acredito no que estou fazendo e isto dá muito certo.

Profa. E – Acredito que o principal é estar mais segura e entendo que este processo só aconteceu porque foi adquirido um conhecimento relacionado ao assunto. Através dos estudos, leituras realizadas, reflexões em grupo, troca de experiências, entre outras situações. Com esse ganho pude embasar teoricamente o trabalho feito em sala, conseguindo envolver mais as ADIs para que elas entendam a importância desses momentos de leitura.

Profa. F – E aqui encerro com a certeza de que a leitura para bebês é possível sim, que tenho prazer de ler para bebês, e acredito que esse prazer é recíproco […].

Considerações finais

Ao longo do ano de formação, da tabulação do questionário, da análise dos vídeos e da elaboração do artigo foi possível observar o amadurecimento profissional dos grupos de professores. Tanto na apropriação da teoria quanto nas mudanças em suas ações. O período de um ano para tratar de um mesmo tema permitiu o aprofundamento dos conteúdos, com tempo para discussões, reflexão, retomada de informações e implantação de práticas nas creches e escolas.

A escolha da realização da leitura em voz alta pelas formadoras e das outras situações de dupla conceitualização mostrou-se acertada e fez que os professores se aproximassem efetivamente do universo literário e se sentissem confiantes para a realização do trabalho com as crianças. Além dos resultados identificados nos vídeos e questionários, o interesse pela literatura também pode ser percebido empiricamente por suas falas e atitudes, como a criação de um grupo de poesia em um aplicativo de bate-papo por celular, a busca de obras de um autor apresentado pela formadora, a preocupação com a qualidade de novos livros adquiridos, o compartilhamento de títulos com a família e comentários sobre as leituras realizadas.

Outro aspecto que merece ser ressaltado foi a descoberta, por parte das professoras, da necessidade de observar atitudes, comportamentos, reações, avanços e desenvolvimento dos bebês. Não adianta pensar apenas nas atividades, no material, no espaço, se não considerarmos os sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem e observarmos seus percursos e transformações. Isso também contribuiu para as mudanças citadas. A tematização da prática possibilitou a observação mais apurada das professoras.

Um educador que tem consciência de sua função no processo educativo, que compreende como se dá a aprendizagem dos educandos (sejam eles bebês ou adultos) e tem oportunidade de repensar sua prática, compartilhando os saberes com outras vozes (teóricos, pesquisadores ou colegas do trabalho) conseguem também ter voz e se sentem mais confiantes e autores de suas ações.

Posted in Revista Avisa lá #64.