Zoologia bizarra para recortar, colar, transformar e criar

FERNANDA RENNER E CRISTIANE DE OLIVEIRA¹


LIVRO DE FERREIRA GULLAR INSPIRA TRANSFORMAÇÕES NAS ATIVIDADES DE RECORTE E COLAGEM, AMPLIANDO AS POSSIBILIDADES CRIATIVAS DOS ALUNOS.


Como nos sugere a contracapa do livro Zoologia bizarra, de Ferreira Gullar: “Mergulhar no encantamento dessa zoologia é dividir descobertas, se surpreender, dar asas à imaginação. Cada um descobrirá um bicho à sua maneira”. Partimos dessa frase para propor uma grande mudança nos trabalhos de recorte e colagem dos nossos alunos de 3 a 7 anos.

Desde os primeiros dias de aula² introduzimos na rotina de um grupo de 22 crianças, cantos de atividades diversificadas, como desenho, recorte e colagem, lição, jogos, escrita no computador e leitura compartilhada no sofá. A ideia de cantos com várias propostas possibilita às crianças circular por eles com autonomia, aprender a fazer escolhas e desenvolver suas preferências. Duas vezes por semana, no início do dia, oferecemos aos alunos a proposta: eles podem escolher onde trabalhar por cerca de 1 hora. Organizamos previamente os papéis, riscadores, sucatas, tintas, lições e demais materiais para que as crianças conheçam as atividades e pensem naquilo que gostariam de trabalhar. Chamamos esse momento de Cantos de trabalho. Cada uma de nós, professoras, fica responsável por orientar as crianças em determinados cantos, mas deixamos que façam suas escolhas livremente de acordo com o número de vagas disponíveis. Dentre todas as opções, o recorte e a colagem chamaram nossa atenção: eram os preferidos da maioria.


1 Professoras do Pró Saber, uma organização não governamental que atende alunos de 6 a 17 anos da rede pública na comunidade de Paraisópolis. As atividades oferecidas são reforço escolar, aulas de teatro, música, jogos corporais, percussão e dança.
2 Atividades diversificadas de apoio à alfabetização, como leitura diária feita pelo professor, escrita, faz de conta e ateliê de artes com propostas de desenho, pintura e recorte e colagem.

Percebemos que as crianças ficavam encantadas com a ideia de usar cola e tesoura, mesmo sem saber muito bem por onde começar. Oferecemos bandejas de papéis criteriosamente separados pelas crianças: papéis de seda, com buracos no meio, bem pequenininhos, papéis mais grossos e maiores. Com uma oferta era vasta, as opções tornavam-se quase infinitas.

Apesar de haver muitas possibilidades de criação, era comum que os trabalhos fossem um amontoado de papéis colados um em cima do outro, numa grande competição para ver quem tinha feito mais. As crianças demonstravam dificuldade em organizar suas ideias e separar os materiais que desejavam usar, de acordo com o que haviam pensado. Elas simplesmente usavam tudo o que estava disponível, sem nenhum critério. Isso gerava desconforto e frustração, pois não conseguiam nomear o que haviam feito. Ao mesmo tempo, o desperdício de material era imenso. Folhas inteiras inutilizadas, muito papel jogado fora, muitos pedacinhos preciosos e não aproveitados.

Encontro com um artista

Nesse momento, diante do caos não criativo, decidimos apresentar o trabalho feito pelo poeta Ferreira Gullar, no livro Zoologia bizarra. A nossa intenção era ampliar o olhar das crianças para as inúmeras possibilidades que um simples pedaço de papel pode oferecer, e que o autor deixava claro na sua produção. Queríamos provocar nelas a percepção para um trabalho sem estereótipos, sem linhas retas, e sem a obrigatoriedade de um suporte sobre o qual colar os papéis.

O acaso, utilizado no processo criativo do artista, não foi nosso foco, pois queríamos, justamente, que as crianças trabalhassem com intenção e planejamento. No entanto, usamos todo o repertório de Ferreira Gullar e seus pedacinhos de papel para mostrar a possibilidade de transformação oferecida por sua arte.

Ferreira Gullar nasceu em 1930 na cidade de São Luís (MA) e foi apresentado aos alunos como poeta que gosta de fazer recortes com pedacinhos de papel, que a maioria das pessoas jogaria no lixo. Além de Zoologia bizarra, a obra mais conhecida entre as crianças é o livro Um gato chamado gatinho. Nele, o autor revela todo o seu amor pelo bichano e suas peripécias.

As crianças puderam se identificar rapidamente com o poeta e suas obras, que mostravam situações em que elas se reconheciam. A convivência com bichos, em especial com gatos, as descobertas com a arte de recortar e colar, e as transformações que o acaso do processo criativo possibilita. Começar um trabalho e no meio do caminho mudar de ideia de acordo com os materiais que aparecem.

Ferreira Gullar tornou-se quase uma pessoa presente fisicamente na sala de aula. Seus poemas eram lidos e adorados (colamos alguns no caderno de leitura), e ouvimos a versão que a cantora Adriana Calcanhoto fez para O ron ron do gatinho e Gato pensa?³. O poeta começou a fazer parte do nosso dia a dia.

Nossa intenção era que as crianças percebessem que era possível criar com restos de papel.

Utilizamos, além do livro, um vídeo4 em que o poeta conta como criou os seus animais malucos usando papéis casualmente espalhados, ora juntos, ora separados. Ferreira Gullar mostra ainda que nas suas produções nenhum pedaço é jogado fora. Ao contrário. Ele aproveita até pedaços de envelopes rasgados das correspondências que recebe para criar suas colagens cheias de vida e graça.

Após assistir o vídeo e apreciar o livro, começamos a oferecer o canto de recorte sistematicamente (ao menos duas vezes por semana), dando desafios às crianças: não usar suporte sempre, unir os papéis com durex ou fita crepe, não usar a tesoura (apenas os menores papéis da bandeja). A ideia era, sobretudo, fazê-los pensar, olhar os materiais, imaginar coisas diferentes, fazer trabalhos malucos que nunca haviam feito. Nós brincávamos com elas dizendo: “Sol com nuvens vocês já sabem fazer. Agora queremos que façam coisas diferentes e que nunca fizeram. Inventem. Criem”.

Apreciar para criar

Foi preciso um bom tempo de investimento para que as primeiras produções aparecessem, e para que fossem realmente criações genuínas. Nada de moldes prontos, de sol com nuvens em volta ou árvores com maçãs vermelhas. Ou, melhor ainda, nada de montinhos de papéis colados uns em cima dos outros, sem critérios ou cuidado. Nada de colagens feitas às pressas. O que apareceu nesse processo foram preciosidades inéditas, como um ônibus subindo a ladeira, uma escova de dentes, uma caveira simpática e um par de amigos dando um abraço gostoso, feito, claro, com bolinhas de papel de tamanhos variados e um pedacinho de fita crepe. Nada mais singelo e delicado.

Além do tempo e da prática semanal de recortar, colar, unir, desfazer e pensar, foram necessários muitos momentos de apreciação das produções entre as crianças. Uma vez por semana usávamos um momento na rotina para sentar e olhar todos os trabalhos.


3 Do CD Adriana Partimpim.
4 Acessível pelo portal da revista digital Emília. (www.revistaemilia.com.br). Criança, bicho e poesia. No vídeo, Ferreira Gullar reapresenta o processo de criação do livro Zoologia bizarra, da editora Casa da Palavra. Foi exibido durante a Bienal do Livro de 2011.

Diante de todo esse investimento, foi nítido o crescimento na elaboração de produções cada vez mais criativas e únicas. Robôs, cachorros, pessoas, monstros, animais, carros etc. Foram inúmeras as invenções do grupo no canto do recorte, que a princípio possuía quatro vagas. No entanto, sempre era possível ver pelo menos oito crianças trabalhando nele. Mesmo sem cadeiras para todas elas, o canto lotava e ninguém queria guardar os materiais no final: “Pro, deixa eu fazer só mais um pouquinho!”, “Eu sou o Ferreira Gullar!”, afirmou Luiz Felipe, no dia em que colou vários papéis brancos em cima de um fundo preto e criou uma caveira. As crianças enlouqueceram e queriam trabalhar ainda mais.

O mais interessante nesse processo de construção da autonomia para o trabalho, e de caos criativo pelo qual o grupo todo passou, foi ver o abandono dos estereótipos. Tanto empenho em produzir trabalhos únicos e divertidos, resultou numa linda exposição. Organizamos um mural com os trabalhos onde as crianças também fizeram pequenos textos, contando sobre como haviam trabalhado. Levamos a exposição para a Mostra Cultural no CEU Paraisópolis, onde as famílias e a comunidade puderam conhecer e apreciar a criatividade de cada criança.

Lembramos que, no início do ano, os alunos que soltavam mais a imaginação eram copiados. Vimos vários trabalhos idênticos sendo feitos, o que revelava que as crianças precisavam de repertório artístico para criar. À medida que o universo de Ferreira Gullar começou a fazer parte do cotidiano da sala, também serviu de alimento para muitas ideias surgirem. Foi possível constatar que, felizmente, as cópias ficaram para trás. Ninguém mais sentia vontade ou necessidade de copiar as ideias do outro. As crianças tinham segurança para criar de acordo com o que elas pensavam. Além de terem conhecido muito bem o trabalho de um grande artista, elas puderam revelar a arte que existia dentro si mesmas.

Posted in Revista Avisa lá #60.