Desenho infantil: conquistas de um passeio criativo

FABIANA QUEIROLO²


CONHECER CADA CRIANÇA, SUA FORMA DE SER E SE EXPRESSAR, É UMA DAS PRINCIPAIS COMPETÊNCIAS DE UMA PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL COMO ESTÁ BEM EXPLICITADO NESTA INVESTIGAÇÃO DIDÁTICA


A valorização do desenho da criança e a incorporação de sua prática à rotina escolar, desde a entrada do aluno na Educação Infantil, é uma marca da Escola Lourenço Castanho. A partir do Maternal I, cada aluno possui seu próprio caderno de desenho, que é um suporte para atividades que possibilitam a exploração de materiais diversos, o exercício da expressividade, o desenvolvimento da linguagem visual e a oportunidade de interação entre criança e mundo.


1 Este trabalho é parte da monografi a realizada no curso O desenho e as crianças: garatujas. CEVEC, 2014, professora Silvana Augusto.
2Fabiana Queirolo é coordenadora de Arte da Escola Lourenço Castanho (São Paulo/SP) e professora de Artes da Escola Ágora (Cotia-SP).

Caderno de desenho, fonte de pesquisa

No segmento da Educação Infantil, a escola adota o caderno de desenho como uma das frentes de atividades plásticas propostas pelas professoras titulares, sendo que essa é complementada por outras atividades ligadas à pintura e ao tridimensional. Mesmo o desenho, quando vinculado a outras áreas de conhecimento, é praticado fora do caderno, como, por exemplo, por meio dos registros visuais da observação do crescimento de uma planta. Há, também, a oferta de materiais gráficos nos cantos, que são situações (em geral no início do período letivo) em que as professoras organizam diversas possibilidades de atividades do interesse das crianças para que escolham o que desejam fazer. Esses desenhos, em geral, são realizados em folhas soltas e levados embora no mesmo dia, atendendo ao pedido da maioria dos alunos. Entre outras atividades artísticas presentes na rotina, surge o caderno de desenho, no qual concentram-se propostas de natureza gráfica, oferecidas ao grupo de alunos com certa frequência. Cada professora é responsável pelo planejamento do caderno de sua turma, sempre intercalado com outras práticas artísticas. Nesse jogo de alternância, o caderno oferece ao educador uma ferramenta preciosa de análise do percurso de cada aluno, pois nele ficam registrados, de forma ordenada, importantes conquistas que (literalmente) desenham o processo de descoberta e construção, pela criança, de sua própria linguagem visual.

O caderno de desenho pode ser utilizado como ferramenta que contribui para o trabalho do educador, trazendo elementos importantes para o desenvolvimento gráfico de determinado aluno ou grupo. Apresento aqui a breve análise de um fragmento do percurso realizado no caderno por uma aluna do Maternal II, a quem chamaremos Fernanda, na faixa etária dos três anos. Foram tomadas como objeto de estudo, suas produções do período de 12 de março à 12 de maio de 2014. A escolha da trajetória de Fernanda, entre tantas outras do grupo, se deu pelas significativas conquistas que ela apresentou no período selecionado. Meu interesse se fixou na tentativa de revelar, por meio da reflexão e elaboração de pequenos passos rumo à conquista da visualidade, a grande mobilização interna da criança na direção de dominar seus gestos, perceber as marcas resultantes de suas ações e renovar, a cada experiência, sua própria intencionalidade expressiva tendo em mãos materiais gráficos.

A caminho de um novo lugar
I. Uma mancha

No primeiro desenho que fez em seu caderno, Fernanda recebeu a proposta de desenhar com caneta hidrográfica sobre a folha branca com a interferência de um quadrado amarelo, de papel camurça, colado de forma centralizada na página. Notamos que ela explorou o material com intensidade, formando uma bela mancha vermelha no centro do quadrado. O movimento de vaivém do seu gesto marca o desenho como um todo, pois ele se repete nas laterais da figura colada no centro. Há dois pequenos traçados que indicam uma variação nesse gesto, um esboço de forma fechada que, notaremos, vai se tornar mais frequente em seus desenhos seguintes. É importante ressaltar essa variação no gesto da criança, pois podemos supor que essas pequenas áreas não preenchidas pela repetição do movimento longitudinal são tentativas de controlar o movimento das mãos, que fica gravado no papel por meio de seus traços. Por meio dessa mágica de registrar movimentos que é o desenho, aos poucos, a criança vai percebendo, explorando e elaborando possibilidades de interação entre ela e os materiais³.

Podemos levantar a hipótese de que ela ficou interessada na textura diferente do papel camurça, pois investiu mais sobre essa superfície do que nas laterais da página branca. Salvo um pequeno traço escuro no canto superior esquerdo do quadrado, Fernanda optou por usar uma única cor de caneta em sua exploração do material.

II. Gestos em camadas

Nesta segunda produção foram ofertadas canetas hidrográficas à Fernanda para exploração. Nota-se logo a presença de uma mancha no centro, formada por gestos longitudinais intensos e de cor forte, como no desenho anterior. Por outro lado, podemos perceber a ampliação de sua pesquisa diante de tantas possibilidades gráficas. Experimenta diversas cores de material; explora novas qualidades de gestos: traços longitudinais com a retirada da caneta do papel (contrário à mancha central em que o movimento registrado é um gesto ininterrupto), em diversas direções (há cruzamentos de linhas que formam x), com diferentes pesos (traços leves e pesados), surgimento de pontos. Além disso, Fernanda realiza algumas formas fechadas arredondadas (uma maior com outras pequeninas dentro), o que nos leva a constatar a suspeita do desenho anterior, em que estava tentando ampliar possibilidades expressivas. Do ponto de vista do movimento que gera o traço, podemos considerar esse desenho como parte de uma passagem importante para a criança: da garatuja desordenada para uma produção em que começa a controlar seu gesto, com algum repertório acumulado que a permita prever seu resultante gráfico.

Em relação às cores, notamos que Fernanda não estabelece uma função para cada cor que utiliza. Elas estão sobrepostas, configurando um resultado visual composto por camadas. A criança, nessa etapa, não percebe o desenho como um todo, que vai se constituindo a cada gesto (e cor). Para ela, cada movimento é uma experiência distinta e parece ser um acaso que estejam todos ali sobre a mesma superfície. A composição intencional de formas e cores, em que os elementos estão relacionados em um conjunto propositivo, é uma conquista da linguagem que ainda está distante dessa fase em que Fernanda se encontra, entretida que está no prazer sinestésico de cada material que explora com vigor, que a leva a perceber o efeito de cada gesto isoladamente.


3 Ver depois de olhar: a formação do olhar do professor para os desenhos de crianças, de Silvana Augusto de Oliveira. São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

O desenho acima foi feito sem que tivesse sido estimulada por parte da professora. Durante a atividade anterior, Fernanda virou a página do caderno em busca de mais espaço, ou de um novo espaço para traçar. Podemos notar a variação do gesto para o sentido horizontal, reforçando a tese de que Fernanda estava então empenhada em experimentar novas e importantes possibilidades para ampliar seu repertório gráfico.

III. Novelos

Nessa atividade, foram oferecidas, ao grupo de Fernanda, diversas cores de giz pastel oleoso para que cada um explorasse o material sobre uma página do seu caderno, na qual havia sido colado, pela professora, um círculo de cor diferente da do papel. Ao observar o desenho feito por Fernanda nessa proposta, cerca de um mês após o primeiro da sequência analisada e utilizando um novo material, observamos aspectos que se mantém em sua produção: a intensidade de seu gesto; o uso de cores vivas; a sobreposição de cores e traços; a presença marcante de movimentos de vaivém; a configuração de um núcleo concentrado, que anteriormente localizei como mancha e que agora surge como novelos. Justamente, o movimento circular, por meio das formas arredondadas, surge com mais força, pois se repete em várias sobreposições. É como se a repetição do gesto, presente desde o primeiro desenho, se desdobrasse em diversas direções e qualidades. Nesse caso, podemos supor que o círculo laranja, colado previamente no canto do papel pela professora, tenha estimulado Fernanda a explorar com afinco as formas circulares.

Nas páginas seguintes, Fernanda novamente nos indica o desejo por um suporte limpo, pois realizou essas produções sem que a possibilidade tivesse sido estimulada pela professora. Ali, realiza poucos gestos, que são muito significativos em sua pesquisa: movimentos contínuos que geram duas formas arredondadas com uma única cor. É como se pudesse conferir, rever ou sedimentar aquilo que vinha explorando na página anterior… Outro recurso que reaparece com mais clareza são os pequenos gestos em vermelho que nos indicam o uso do giz pastel em diferentes intensidades de força, por um lado e, por outro, a possibilidade de interromper o movimento para criar formas pequenas, separadas umas das outras. Surge, também, uma nova variação nessa sequência, uma forma fechada decorrente de movimentos longitudinais mais abertos e mais leves, levantando novas possibilidades expressivas. Nessas páginas extras, Fernanda pôde reunir várias experiências e dar passos importantes rumo à ampliação de seu repertório gráfico. O material que experimentou, o giz pastel oleoso, certamente auxiliou a despertar seu interesse para criar novos jeitos de desenhar.

IV. O passeio da Fernanda

A proposta seguinte, feita no caderno de desenho, utiliza novamente o recurso da interferência de um elemento inserido no papel, agora de formato quadrado. Aos alunos, foram dadas canetas hidrográficas de cores diversas para usar sobre a página aberta do caderno. Cerca de dois meses após o primeiro desenho dessa série, notamos um salto na produção gráfica de Fernanda. Ela agora faz de seu movimento um grande passeio pelo papel, ocupando todos os espaços de maneira organizada. Realiza inúmeros gestos que originam as mais diferentes formas: redondas, compridas, estelares, grandes, pequenas etc. As sobreposições de cores e linhas ocorrem em alguns momentos, mas não há nada encoberto pelo movimento seguinte, demonstrando que a criança percebe o efeito do ato de traçar sobre o papel e o organiza em seu espaço. Os traços parecem obedecer à vontade de compor formas e ela nos saúda com tantas novas possibilidades.

Nota-se que Fernanda utilizou poucas cores e que, com cada uma delas, traçou elementos bem distribuídos pelo espaço – com exceção da cor rosa –, experimentando uma forma dentro de outra, linhas que acompanham um grupo de elementos menores e a repetição de bolas com variações.


4 Desenvolvimento da Capacidade Criadora, de V. Lowenfwld e W L. Brittain. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

Podemos afirmar que as conquistas de Fernanda nesse percurso a levaram definitivamente a uma garatuja controlada4, sendo indiciada (nesse caso) pelo domínio do próprio movimento, pela capacidade de interrompê-lo para criar formas separadas e pela percepção do espaço do papel.

Segundo Lowenfeld (1903-1960), a fase das garatujas controladas é a superação, por parte da criança, de suas garatujas desordenadas iniciais, e está associada à conquista do controle visual sobre os traços que realiza no papel. Ela descobre, e confirma sua descoberta por meio da vivência do desenho, que há uma ligação entre seus movimentos e as marcas que surgem na superfície, e esse passo é extremamente importante para a expansão de sua criatividade, aliada a seu desenvolvimento visual e motor.

Outros passeios

O encaminhamento, pelo professor, do processo de desenvolvimento gráfico e de apropriação da linguagem visual pela criança deve considerar as necessidades e as oportunidades que se apresentam por meio da observação, da análise e da reflexão sobre o que ela produz em cada etapa… Tomando como base o caderno estudado, penso que poderiam ser ampliadas tanto a frequência de situações de desenho (considerando quatro propostas em um período de dois meses) quanto a diversidade de materiais para traçar.

Notamos que o planejamento da sequência observada privilegiou a interferência sobre o suporte neutro, cujas variações foram estimulantes para as conquistas de Fernanda, analisadas anteriormente. No entanto, os materiais para traçar pouco variaram, sendo a caneta hidrográfica a mais frequente. Pontuamos o quanto o giz pastel oleoso trouxe para ela novas sensações e a impulsionou para novas investigações gráficas, que ela depois retomou nas produções que realizou.

Para a criança – e não só para ela! –, cada material é uma fonte potencial de novas possibilidades, tanto em relação às sensações que experimenta quanto à qualidade dos efeitos oriundos de sua interação com eles. O peso, o tamanho, a pressão, a textura, o atrito, a intensidade, enfim, são muitas as variações a serem experimentadas em um grande leque de materiais: carvão, caneta esferográfica, caneta hidrográfica grossa e fina, giz de cera, giz de lousa, lápis grafite, nanquim ou outras tintas com pincel fino, entre tantos outros. O suporte também deve oferecer experiências variadas, e, visto isso, poderiam ser incluídas no caderno de desenho folhas coloridas, folhas pretas e transparentes, bem como outros formatos de papel que poderiam ser colados no caderno após a atividade.

De qualquer modo, penso tratar-se de uma metodologia extremamente válida para análise do percurso de cada criança, em que, uma pequena conquista é como um passo por entre aquilo que poderíamos chamar de grande parque da linguagem, quando, então, desenhos são brinquedos!

Posted in Revista Avisa lá #60.