A cidade em pontos de bordado

MARIA DA BETANIA GALAS¹


MEMÓRIA E ARTE APOIAM A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM TURMAS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS²


À noite, em vez de aproveitar para descansar, cochilando no trem de volta para casa, Maria Ferreira se concentrava no bordado. Ponto por ponto, entre uma e outra estação, observava o vaivém dos passageiros, enquanto os desenhos feitos de linha avançavam, dando visibilidade a novas figuras.

É no trem mesmo que eu aproveito para estudar, para fazer os deveres de casa. Não tenho outro tempo. Não tenho vergonha de falar isso.

Uma das perspectivas interessantes dessa história é que o bordado feito por Maria, no trem, era parte de um projeto da aula de artes do curso que frequenta, à noite, no Colégio Santa Cruz, em São Paulo. Diferente de outras tarefas que costuma fazer no trajeto de casa para o trabalho, do trabalho para a escola e da escola para casa, o bordado provocou conversas, puxou indagações, remexeu nos fios da memória, encantou os olhos de mais gente, afetando uma comunidade maior que o grupo imediatamente envolvido na atividade.


1 Professora de Artes Visuais do Ensino Médio no curso de Educação de Jovens e Adultos – EJA, do Colégio Santa Cruz, em São Paulo (SP). É também professora, orientadora de Artes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio e coordenadora da disciplina Projeto na Escola Viva, em São Paulo (SP).
2 Curso de Educação de Jovens e Adultos oferecido pelo Colégio Santa Cruz, em São Paulo (SP).

Este texto apresenta as ações planejadas, as trajetórias ressignificadas e os questionamentos mobilizados durante o processo em que o grupo da fase 2 do Ensino Médio de EJA esteve envolvido no projeto São Paulo em pontos de bordado³.

Sobre os atores da história

A heterogeneidade é um dos matizes mais fortes nos perfis dos grupos de EJA. Temos em uma mesma classe diferenças de idade de até quarenta anos ou mais, diversos níveis de leitura, múltiplos interesses culturais e formações religiosas distintas. Entretanto, heterogeneidade e semelhança possuem peso igual neste contexto. Como em sua maioria os alunos são migrantes ou filhos de migrantes, oriundos principalmente de cidades do interior do Nordeste, eles carregam os traços das tradições, da fala e de histórias que marcam as populações dessa região. Todos viveram, em maior ou menor intensidade, o drama de não ter podido seguir os estudos no tempo regular.

Na semelhança, também estão vinculados por serem representantes do apartheid social que a excludente sociedade brasileira promove para a maioria desprestigiada política, econômica e culturalmente4. Porém, as características que dão singularidade ao grupo que participou do projeto São Paulo em pontos de bordado são a presença de lideranças bastante mobilizadoras no sentido de dinamizar as ações coletivas, a frequência constante da maioria da classe e, consequentemente, um índice de desistência muito próximo a zero. Fatores positivos que os ajudaram a construir histórias de sucesso, no âmbito das experiências com a arte.


3 O projeto São Paulo em pontos de bordado foi desenvolvido pela disciplina Artes, no primeiro semestre de 2012, na classe da fase 2 do Ensino Médio.
4 De acordo com Orlando Joia, diretor de EJA do Colégio Santa Cruz, “o público atendido é constituído em sua grande maioria por migrantes, dos quais um grande contingente vem dos estados da região Nordeste (só da Bahia são cerca de 45%). Uma grande maioria dos alunos são empregados domésticos ou trabalhadores em condomínios, havendo ainda uma certa quantidade de trabalhadores informais, em funções de baixa qualificação” (Entrevista concedida à autora em 13/10/2011).

Sobre a realidade de EJA

Do universo de 141,5 milhões de pessoas no país de 15 anos ou mais de idade, cerca de 10,9 milhões pessoas (7,7%) frequentam ou frequentaram anteriormente algum curso de Educação de Jovens e Adultos – EJA.
[…]
O principal motivo para o abandono do curso para a maioria dos entrevistados foi a incompatibilidade do horário das aulas com o horário de trabalho ou de procurar trabalho (27,9%), seguido pela falta de interesse em fazer o curso (15,6%). Outros motivos que levaram à desistência dos estudos foram a incompatibilidade do horário das aulas com o dos afazeres domésticos (13,6%), a dificuldade de acompanhar o curso (13,6%), a inexistência de curso próximo à residência (5,5%), a inexistência de curso próximo ao local de trabalho (1,1%), falta de vaga (0,7%) e outro motivo (22,0%).
[…] Com relação ao rendimento, o maior percentual de pessoas que frequentavam EJA, na época da pesquisa, foi daquelas que estavam na faixa de até ¼ do salário mínimo (3,0%) e as que não tem rendimento (2,6%). A maioria dos que cursavam EJA era formada por pessoas que se declaravam pardas (47,2%), seguidas por brancas (41,2%), pretas (10,5%) e de outra cor ou raça (1,1%)”.

Dados coletados pelo IBGE, em 2007. Fonte: IBGE. Disponível em: www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?d_noticia=1375&id_pagina=1
Arte, identidade e memória

Algumas reflexões levaram às escolhas curriculares aqui apresentadas, entre elas a de Tomaz Tadeu Silva5, que diz:

O conteúdo do currículo é uma construção social. Como toda construção social, o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder que fizeram e fazem com que tenhamos esta definição determinada de currículo e não outra, que fizeram e fazem com que o currículo inclua um tipo determinado de conhecimento e não outro.

No caso dos alunos de EJA, a escolha de conteúdos e processos implica o entendimento de que os estudantes, aos quais se destinam as escolhas, são avaliados negativamente pela sociedade, e lutam pela incorporação de seus valores culturais à sociedade mais ampla. O foco principal, tendo em vista esse quadro de tensões, são as conexões entre identidade cultural, identidade social, currículo, significação e poder.

Quem já ministrou aulas para grupos de EJA sabe que as atividades que buscam o protagonismo do aluno por meio de narrativas pessoais, em que a memória do aluno é solicitada, costumam ser muito bem acolhidas pelo grupo. O prazer e a competência com que são elaboradas estas narrativas não deixam dúvidas quanto à necessidade de afirmação de uma identidade e de um lugar social pelo aluno.


5 Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

Ocorre que, se por um lado, a evocação de uma identidade pelos relatos de memória traz o conforto do pertencimento a um grupo social e cultural, imprimindo sentido e significação à própria vida, por outro, o lugar que a sociedade impõe a este mesmo grupo social é o lugar do exotismo, da inferioridade intelectual, do não civilizado. Para o migrante pobre, as origens, perceptíveis nas marcas físicas, econômicas e culturais, tornam-se um impedimento, um muro erguido pelo preconceito baseado na diferença.

Uma evidência do que foi dito antes está na própria dinâmica social da arte. Aplaude-se a arte popular, mas os artistas e artesãos, com raríssimas exceções, não são destaque nos acervos e exposições de galerias e museus.

Definir as escolhas curriculares

Embora envolva análises bastante complexas, certamente deveriam entrar em jogo, nos processos de escolha, as questões relacionadas à memória, a identidade e a diferença, de modo que as motivações econômicas, culturais e institucionais que estão na base das relações de assimetria e desigualdade social possam ser avaliadas, pensadas e redefinidas.

Portanto, partir do saber e da realidade do aluno, valorizando sua vivência para gerar aprendizagens, parece ser um caminho claro, mas nem por isso mais fácil. Pelo compartilhamento desse saber o aluno deveria adquirir trânsito em outros segmentos mais favorecidos da sociedade. A sua identidade cultural não pode ser fixada como marca imutável, mas como uma possibilidade de troca, de mudança, de reposicionamento social.

Neste sentido, não basta partir do conhecimento do aluno, mas garantir sua legitimidade. Dar voz ao aluno significa mais do que ouvir a sua opinião. As vozes precisam ser autorizadas pelo reconhecimento de que também as formas de conhecer por trás dessas vozes são válidas. E mais, o fortalecimento dessas vozes só é possível no contexto de uma educação transcultural que possibilita refletir a partir de diversos pontos de vista.

Um currículo transcultural

A arte é uma forma de abordagem do mundo, uma forma de leitura e indagação, de conhecimento e de expressão.

Dessa forma, o currículo deve ser escolhido pela sua capacidade de convidar à investigação, à interpretação e à provocação de julgamentos pela diversificação de ideias. Por meio da experiência com a arte o aluno poderá unir suas narrativas pessoais a outros relatos culturais mais abrangentes, compreendendo que o conhecimento se constrói numa rede social bem mais complexa do que a que vivemos com nossos pares.

Por isso, se nos museus, arte e artistas são divididos e hierarquizados por critérios de distinção e de dominação cultural, nas aulas de arte Da Vinci (1452-1519), Picasso (1881-1973), Aleijadinho (1738-1814), Adriana Varejão (1964-), Nhô Caboclo (1910-1976) e J. Borges (1935-) devem dividir o mesmo espaço. As histórias orais do sertão, as narrativas dos passageiros dos ônibus de São Paulo, as pichações dos muros e as crônicas dos jornais são bons interlocutores para criação. A linha feita a lápis na tela digital, a linha escavada na matriz de gravura para o folheto de cordel, a linha que constrói tecidos e tapetes em comunidades piauienses, e a linha que engendra os bordados feitos pela família Dumont, em Minas Gerais, nos ensinam a ver, pensar e fazer o desenho, a descobrir a cor na composição, a perceber os contrastes de luz e sombra, a ocupar significativamente o espaço, a dominar a forma, a desvendar a linguagem visual.

São Paulo em pontos de bordado

Da preocupação em oferecer um currículo transcultural, capaz de unir as possibilidades culturais que uma metrópole como São Paulo propicia com  os saberes dos alunos, nasceu o projeto São Paulo em pontos de bordado.

Algumas vezes, durante o curto espaço de um semestre, estudantes e professores compartilham algum tipo de acontecimento em que a sala de aula muda de lugar e os modos de aprender e ensinar – dadas as situações imprevistas – se transformam, abrindo oportunidades de apreensão que antes não existiam.

Um desses acontecimentos foi uma caminhada noturna pelas ruas do centro histórico da cidade de São Paulo. Por três horas, as construções do tempo do Império surgiram de trás das cortinas do passado por meio das histórias de seus personagens, lugares e maneiras de viver, atiçando questões e provocando vontades de ver, de sentir e de dizer mais.

Na volta, os alunos mostraram-se bastante entusiasmados com o que viram e ouviram. A maioria não conhecia o centro antigo e ficaram maravilhados com as muitas camadas ou cidades que se escondem na metrópole moderna e frenética. Era como se tivessem descoberto os outros corações que batiam no corpo da cidade.

Saber captar um assunto que, inesperadamente, mostra-se capaz de sensibilizar o pensamento individual e a experiência do grupo, é uma das habilidades que um professor de arte não pode deixar de desenvolver.

A partir daí a vontade que se instalou no grupo Revista avisa lá fevereiro de 2013 deu lugar ao olhar receptivo e criterioso. Passamos então a visitar outras camadas escondidas de São Paulo, com o auxílio dos registros fotográficos realizados por grandes artistas da câmera, de Gaensly a Cristiano Mascaro. Muitos livros sobre São Paulo foram folheados para que se pudesse encontrar uma fotografia que, de algum modo, produzisse no aluno-leitor de imagem movimentos de identificação.

Cada aluno escolheu uma foto de São Paulo que dissesse algo sobre ele.

Escolhidas e defendidas as escolhas. A ideia de intervir na cidade, como uma mágica que pudesse trazer de volta certa poética perdida, foi a régua e o compasso que faltavam para que se delineasse um projeto em que as intervenções seriam feitas nas próprias fotografias.

A intervenção teria de ser algo que, saído do universo do aluno, pudesse marcar a metrópole paulistana recém-descoberta na caminhada noturna e nos livros de fotografia.

Foi o trabalho mais delicioso que já fiz.
Quanto mais eu fazia, mais eu tinha vontade.
A escolha da foto foi assim:
Desde a fase 5, quando a professora Maggi, de História, me disse onde São Paulo começava, que eu comecei a me interessar por São Paulo antigo.
Quando comecei a olhar os livros de fotografia, escolhi a Igreja.
Saber que São Paulo começou ali…
O bordado, eu fazia não sei quantas vezes e desmanchava. Daí, as cores que eu mais gostei de bordar foi com o azul e o vermelho.
A minha irmã viu e adorou. A minha patroa viu no site da escola e disse que eu sou uma artista.
Ana Rita, 51, doméstica

Foi uma experiência muito boa, única.
No começo, eu achava que não tinha capacidade de fazer.
Depois de pronto, foi uma satisfação fora de série.
É que antes tudo passava despercebido.
Agora consigo ver mais.
A mente abriu em relação à arte.
Leonice de Souza Brito, massagista

O bordado, que tantas vezes era visto nas mãos das avós e observado com admiração nas colchas e toalhas vendidas nas feiras do interior e nos camelôs de São Paulo, foi a linguagem escolhida para intervir na fotografia.

Além de observar as obras de alguns artistas que se utilizaram do bordado para criar suas obras, como Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) e Divino Sobral (1966-), os belos bordados criados pela família Dumont para ilustrar livros e a pesquisa em livros sobre pontos de bordado foram inspirações determinantes. No processo de produção, enquanto as linhas coloridas avançavam entre as sombras e luzes da fotografia impressa em tecido, problemas concretos surgiam solicitando novas ideias e soluções. Como em todo fazer poético, pensar, criar e realizar aconteciam simultaneamente.

Assim, este jogo de criação produziu um pensamento que se fez por meio das cores, das texturas e dos novos volumes e planos redesenhados em linhas. O resultado final é uma obra que já não é mais sobre São Paulo, mas sobre toda essa experiência inscrita na superfície fotográfica.

A exposição dos trabalhos na biblioteca da escola foi muito importante para o grupo. Nas classes de EJA, esta é uma etapa que deve ser bastante cuidada, pois é o momento em que existe a possibilidade de troca com outros grupos sociais. Habituados cotidianamente à invisibilidade, por desempenhar funções na vida profissional que os colocam nesta condição, a oportunidade de falar para uma comunidade mais ampla, por meio de suas criações, é fundamental para que se possa reduzir os estereótipos negativos que recaem sobre o grupo e consequentemente fazer crescer a autoestima positiva.

Enfim, “o que importa não é nem vencer o caos nem fugir dele, mas conviver com ele e dele tirar possibilidades criativas”6.


6 In: GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2003.
Posted in Revista Avisa lá #53.