Ortografia, sim!

ALESSANDRA ASSIS, ARIANE MOREIRA E CAMILA CHIARA¹


OS DILEMAS DE ENSINAR OU NÃO ORTOGRAFIA NA ESCOLA PODEM SER RESOLVIDOS POR MEIO DE PARCERIAS PRODUTIVAS ENTRE COORDENADORES PEDAGÓGICOS


Não se corrige mais, o aluno constrói sozinho”. É o que se ouve com frequência nas escolas. Mas será que é isso mesmo? O tema proposto para a formação no curso a distância Ortografia, sim!² foi apresentado com uma provocação:

Afinal, deve-se corrigir ou não as escritas das crianças? A partir de que idade? Como fazer isso? Durante muito tempo deixada de lado nos currículos, a ortografia é mostrada hoje como um conhecimento específico que exige do professor planejamento de sequências didáticas pontuais para ensinar os desafios que a escrita convencional propõe às crianças. Essas são algumas questões discutidas nesse curso.

Provocados, todos os participantes encararam o desafio.


1 Alessandra Assis é professora do ensino fundamental em São Paulo. Ariane Moreira é bióloga e pedagoga, atualmente trabalha com turmas de 3o ano na rede particular em São José dos Campos. Camila Chiara é pedagoga, pós-graduada em Alfabetização, atualmente com turmas de 3o e 4o anos na rede particular e 1o ano na rede pública de ensino.
2 Curso destinado a coordenadores pedagógicos realizado pelo Instituto Avisa Lá em abril, junho e julho de 2012.
3 Maria Paula Twiaschor, formadora do Instituto Avisa Lá e da Comunidade Educativa CEDAC.

Os diferentes encaminhamentos didáticos propostos pela consultora do curso online³ possibilitaram compreender que a ortografia é um objeto de estudo. E como tal deve ser tratada e pensada estrategicamente. No ambiente virtual, nos espaços dos fóruns, pudemos expor nossos saberes, ampliados, ressignificados ou modificados com os procedimentos de estudos práticos e teóricos com base nos textos de Artur Gomes de Morais4. É ele quem afirma:

A escola, em geral, cobra do aluno a correção do que escreve. Mas cria poucas  oportunidades para refletir com ele acerca das dificuldades ortográficas da nossa língua. Cremos que é preciso superar este desvio: em vez de se preocupar basicamente em avaliar, verificando o conhecimento ortográfico dos alunos, a escola precisa investir mais em ensinar, de fato, a ortografia.

Procurou-se desmistificar a prática de exercícios estéreis, como a cópia de palavras repetidas sem reflexão, como único meio de assegurar que os alunos dominem as regras ortográficas. Por meio de textos teóricos5 sobre o estudo da ortografia, da análise de sequências didáticas e de discussão sobre encaminhamentos dados pelas formadoras em cada atividade, foi possível compreender a função do ensino da ortografia na escola. As discussões e trocas entre as participantes corroboraram a necessidade de fazer diferente.

Outros recursos, como vídeos sobre atividades de alunos, foram apresentados. O debate a partir da análise desses encaminhamentos nos possibilitou  repensar nossa própria prática e levou a mudança de concepção em relação ao trabalho de sala de aula.


4 Professor da Universidade Federal de Pernambuco que se dedica ao estudo da ortografia e é autor de obras sobre a didática da ortografia.
5 A maioria dos textos foi retirada do Programa de Professores Alfabetizadores – MEC 2001.
Conhecer o tipo de erro para ensinar melhor

O estudo sobre as questões por que ensinar ou não ortografia?, como ensinar?, quando? foi muito importante para a compreensão da natureza dos erros ortográficos. Antes, muitas de nós pensávamos  que o erro era erro. Achávamos que bastava corrigir os textos dos alunos ou pedir para escrever várias vezes a palavra incorreta com a grafia correta para assegurar a extinção do erro. Isto, na verdade, não acontecia. Hoje, graças às pesquisas nessa área, temos a certeza de que o ensino de ortografia não está restrito ao campo da memória, necessária em algumas situações, mas o importante é oferecer dicas para que os alunos reflitam e, por conta disso, errem menos.


Planejar em grupo

Eu já havia feito o levantamento dos erros mais frequentes dos meus alunos, mas realizei outro exercício similar com a turma do curso, em um de nossos fóruns. Foi uma experiência bastante relevante, pois todos tiveram a oportunidade de colocar suas dúvidas para o grupo e juntos analisamos quais eram realmente mais urgentes de ser trabalhadas. Foi importante confrontar a opinião do grupo com as minhas observações, tendo assim a oportunidade de rever e reorganizar meu planejamento. Desta forma, ficou mais fácil traçar estratégias a partir da natureza dos erros cometidos pelos alunos e observados por mim. (Camila Chiara)


Segundo Artur Gomes de Morais, existem dois tipos de dificuldade ortográfica. Uma delas é decorrente da apreensão de normas ortográficas irregulares. Nesse caso, não há uma regra clara para a grafia de uma palavra; portanto, o aluno precisa memorizar a forma correta.

O outro caso se refere à grafia de palavras submetidas a normas ortográficas regulares. Nesse caso, é possível o aluno prever a forma correta de grafá-las sem nunca tê-las visto, pois há um princípio gerador, uma regra específica.

Erro como indicador para o ensino

Quando se compreende o que é o erro do aluno, pode-se inverter a lógica do ensino, ou seja, em vez de tomar os erros dos alunos como indicativo para dar notas, passa-se a enxergá-los como indicadores do que precisa ser ensinado, tornando-o objeto de estudo para todos os envolvidos.

Outra consideração se faz necessária neste momento: se existem tipos de dificuldades diferentes, as estratégias de ensino precisam acompanhar este pensamento, devem ser sistemáticas, estimulando a compreensão de dificuldades específicas.

Artur Gomes de Morais sugere, no caso de dificuldade em grafar palavras com regras regulares, estratégias que levem os alunos à reflexão acerca de cada regra (princípio gerador). São sugestões o ditado interativo, a releitura com focalização e a reescrita
com transgressão ou correção. Todas incentivam a discussão entre os alunos, o que possibilita a exposição da dúvida e a decisão coletiva sobre como escrever ou corrigir determinada palavra.

No caso das dificuldades decorrentes da grafia  de palavras não regidas por normas regulares, a primeira medida consiste em selecionar as de uso frequente e que devem ser memorizadas, a segunda é o uso do dicionário, fonte constante de informações ortográficas.

Considerando esses conhecimentos, é possível compreender que a produção ou reescrita dos alunos, no aspecto notacional do texto, passa a ter outro caráter, isto é, o de observação, de pistas preciosas para diagnosticar o que os alunos sabem sobre a convenção da escrita e o quê ainda precisam saber. Portanto, são eles que norteiam as decisões que precisamos tomar acerca do que ensinar ou não. Após elaborar uma sondagem dos conhecimentos do grupo e fazer o levantamento das necessidades
da turma, diferentes situações de ensino devem ser propostas.

Sabendo do pressuposto de que a ortografia é uma dificuldade permanente para todos que fazem uso da escrita, a organização do ensino pode começar, por exemplo, pelas dificuldades que tenham regras (ortografia regular).

Em uma das tarefas, tivemos de nos organizar mesmo a distância, em grupos distintos de trabalho, focando um encaminhamento didático específico para o ensino de ortografia – foi desafiador e ao mesmo tempo compensador. Aos poucos, o grupo foi tecendo sua visão a respeito dos encaminhamentos didáticos da ortografia e, ao final,
construímos e escrevemos, em subgrupos, sobre três modalidades básicas: 1) Ditado interativo; 2) Releitura com focalização; 3) Reescrita com transgressão ou correção. Compartilhamos a seguir as produções dos subgrupos A, B e C, respectivamente, com a colaboração de todos os colegas e da formadora:

1. Ditado interativo

Esta situação didática tem o propósito de ensinar ortografia com o apoio de textos conhecidos pelo grupo, pois assim o foco será somente na ortografia e não na “produção” do texto em si. Nesta situação, as palavras desconhecidas deixam de ter a função de verificação de conhecimento, como no ditado tradicional, hoje considerado pouco eficiente.

1º momento – Selecionar um texto conhecido pelo grupo, com palavras importantes a serem analisadas quanto ao seu registro, pré-selecionadas pelo professor.

2º momento – Esclarecer o objetivo do ditado interativo para os alunos e quais os procedimentos adotados pelo professor, fazendo pausas e questionando a escrita de determinadas palavras. Em seguida, ele ouvirá as justificativas apresentadas, intervindo sempre que necessário.

Importante: caso surjam outros questionamentos que fujam à focalização planejada, combinar com o grupo se discutirão no momento em que eles surgirem ou se darão atenção à questão apresentada em outra oportunidade. Quando o professor combina com o grupo que somente suas pausas serão válidas naquela aula, ele amplia a possibilidade de reflexão sobre determinada regra ou irregularidade. Já na outra possibilidade a autonomia é mais desenvolvida.

3º momento – Propor aos alunos que pensem sobre as várias formas de grafar o mesmo som e apresentem as diversas possibilidades para escrevê-lo.

4º momento – As pausas são oportunidades que o professor oferece aos alunos para que possam focalizar e discutir as questões ortográficas pré-selecionadas pelo docente ou levantadas durante a atividade. Assim, interrupções como: “Há alguma palavra que acham mais difícil?” ou “Uma turma que não sabe escrever tal palavra, como poderia se enganar? Por quê?”. Ou ainda: “Uma pessoa que sabe escrever, como colocaria? Temos como saber por que só se pode escrever esta palavra desta forma? Qual parte da palavra pode fazer com que a pessoa erre? Por quê?”

5º momento – Essa atividade pode ser o início de uma sequência didática, de modo a despertar a curiosidade do aluno sobre a regra ou irregularidade que será estudada ou até após algumas descobertas, sistematizando uma discussão.


Resolver problemas para aprender

O aluno aprende quando é levado a vivenciar algum problema, e a partir daí pode refletir sobre dúvidas que seguramente aparecerão. Como Telma Weisz diz: As crianças precisam de problemas para resolver6. Concordo com ela, pois só assim ocorrerá aprendizado. Percebi que esta estratégia de ditado garante isso, e não mais como os ditados de antigamente que não levavam à reflexão.
(Silvana Moraes Souza Silva, aluna do curso online, professora há 12 anos.)


6 O diálogo entre o ensino e a aprendizagem, de Telma Weisz.
São Paulo: Ática, 2000.
2. Releitura com focalização

A proposta é feita coletivamente e consiste na releitura de um texto já conhecido. Ao longo da leitura, fazem-se algumas interrupções sobre determinadas palavras, lançando questões sobre a ortografia. Nessa proposta, é importante considerar as seguintes orientações:

•incentivar as crianças a focalizar a atenção na grafia das palavras;
•lançar questões que estimulem os alunos a elaborar  – mentalmente ou no papel – transgressões e a debatê-las, expressando os conhecimentos que têm sobre regras ou irregularidades;
•selecionar um problema ortográfico no qual a maioria dos alunos não esteja dando conta, para desencadear uma reflexão sistemática (no caso da professora, ela escolheu da reflexão o emprego do “r” quando ele aparece depois de consoantes em palavras como “honra” e “desrespeito”);
•selecionar, entre as três modalidades básicas apontadas por Artur Gomes de Morais, aquela considerada mais adequada ao contexto específico.

Em seu texto, o autor cita o caso da professora que optou por não iniciar um trabalho com ditado interativo, mas com a releitura da fábula A raposa e a cegonha, de Esopo. O texto escolhido havia sido comentado e reescrito na semana anterior, continha muitas palavras que proporcionavam a discussão sobre o emprego do “r” ou “rr”: palavras como cigarra, formiga, inverno, verão, durante, trabalho, trigo, respondeu etc.

Na releitura, os alunos não têm de investir tempo no registro do texto, pois o trabalho é centrado na discussão quase que exclusivamente nas palavras que o professor queira focalizar com a turma.

Após a verbalização dos conhecimentos dos alunos, eles foram registrados em forma de regras nos cadernos e em um quadro na sala de aula.

Realizaram atividades específicas em que classificavam e formavam palavras reais e criavam outras com “r” e “rr”. A discussão é constante.

3. Reescrita com transgressão ou correção

A reescrita com transgressão ou correção tem como objetivo desencadear a reflexão ortográfica tendo textos como suporte. Nessa estratégia, é proposto que os alunos transgridam a norma ortográfica no momento da reescrita. Ao escrever errado “de propósito”, surge a real possibilidade de discutir com os alunos os erros e acertos que produzem ou descobrem.

É importante destacar que num trabalho com textos voltado para a análise linguística, este deve ser tomado inicialmente como unidade de sentido, a fim de se preservar sua genuína intencionalidade: emocionar, divertir, instruir, provocar etc. Isto permite aos alunos conhecerem o texto na íntegra. Apenas a partir desse primeiro contato, ele pode ser tomado como elemento de reflexão ortográfica.

Encaminhamento da atividade

Texto-suporte: tirinhas do Chico Bento selecionadas pelo professor.

1ª etapa – Verificar se as crianças conhecem Chico Bento, personagem de Maurício de Sousa, bem como as características que o constituem: a simplicidade do menino que vive no campo, os amigos da roça, seu falar marcadamente regional etc. Caso não o conheçam, é imprescindível promover esse encontro para que possam se familiarizar com o personagem.

2ª etapa – Distribuir cópia de uma tira do Chico Bento e pedir que os alunos a leiam, compartilhando as impressões que tiveram com a situação ali narrada, como:

As pessoas que moram na roça têm o jeito de falar diferente porque é do jeito deles.
Faz parte da cultura deles.
Mas mesmo assim, sendo diferente, temos que respeitar.
A fala do Chico Bento tem trocas de algumas letras.
Ao invés dele falar a palavra “dormir”, com o “r” no final, ele fala “dormi”, ele não usa o “r” na final.
Ele usa o “r” antes da hora certa.
O pai dele também! E ainda usa o “u” ao invés do “o” na hora que fala “pru que, fio?”

3ª etapa – Pedir que as crianças identifiquem o  que há de “não convencional” na escrita da história. Professor, registre na lousa as observações feitas para que possam ser desencadeadoras de discussões de caráter mais geral, como a questão dos diferentes falares regionais.

Aqui, os alunos levantaram outros modos do Chico Bento falar comparando com o jeito de falar de quem mora na cidade, como a forma marcante do “r”, mais “arrastado”; que usamos “i” no final em lugar do “e” (ex.: leite, atende etc.). Também comentaram bastante o “uai, sô”, tipicamente mineiro, mas que ocorre no meio caipira também. É interessante observar que, mesmo com as instruções, algumas crianças não se desprenderam da fala do personagem; ora usa a fala, ora usa na forma de escritor, corrigindo-as.

4ª etapa – Propor que os alunos reescrevam a história contada nos quadrinhos, sem usar o diálogo. Professor, note que a história, agora, será escrita por eles e não mais contada pelo personagem. Surge, então, uma nova condição de escrita, na qual os “erros ou formas não convencionais” não mais se justificam, pois há um narrador.

Variação de encaminhamento

Texto-suporte: tirinha do Chico Bento.

Solicitar que os alunos reescrevam os diálogos da história, com mais expressões não convencionais. Durante a atividade, cabe questionar as transgressões feitas, pois estas revelam como “pensam” a ortografia – com suas regularidades e irregularidades – e são indicadores preciosos para o desenvolvimento de novas estratégias que permitem tratar a ortografia como um objeto de conhecimento que se internaliza por meio da reflexão e ação.

É importante levar em conta que a fala do Chico Bento não é errada; apenas caracteriza os falares regionais e o respeito que se deve ter por eles. O registro escrito, quando tem a intenção de se inscrever segundo as regras da linguagem escrita, precisa sempre ser revisado e primar pelo convencional, mas a fala tem suas características próprias, e especificamente neste quadrinho o autor enaltece isso.


Penso da mesma maneira, acredito na proposta de transgressão, mas arrumei uma “briga” boa aqui com minhas colegas da escola, pois algumas concordam e outras não, por acharem que as crianças memorizam a palavra escrita incorretamente. Farei esta atividade para dar um feedback a vocês! (Ariane Moreira, integrante do curso online.)


O que muda na prática?

Os resultados são realmente significativos. Em nossas salas de aula, a consulta ao dicionário tornou-se prática frequente e familiar, bem como ao caderno de regras construído pelo grupo. Quando a regra ainda não se apresentava clara para turma, os alunos retomavam a escrita do texto, revisando-o. A revisão já faz parte do cotidiano de quem produz textos, e não pode ser diferente quando se trata deste foco. Afinal, a ortografia é objeto de estudo.

O relato da professora Alessandra Assis é representativo da mudança que todas nós pudemos vivenciar, e é por isso que escolhemos concluir esse artigo com ele:

A atitude de refletir para aplicar procedimentos didáticos em produção de texto, revisão, leitura etc. deve ocorrer com o ensino da ortografia. Ter rotina de trabalho, o momento destinado a ela, não mecanicamente, mas sim como um conteúdo de estudo que precisa ser compreendido.

Antes, nas produções dos meninos, eu contava erro por erro, por exemplo: xuva, caxorro, xaveiro e pobresa, quatro erros. Desconhecia as contribuições da didática do ensino da ortografia. Hoje analiso os erros pela natureza da dificuldade ortográfica, por exemplo: xuva, caxorro, xaveiro e pobresa, quatro erros, mas de naturezas diferentes a serem tratadas. No caso da grafia de palavras com “x/ch”, como a norma é irregular, seu ensino está no campo da memorização. Portanto, é necessário decidir se vale a pena investir no campo da memorização por conta do uso frequente, ou se deve ser lançado em um caderninho de notas, por exemplo, para consultas e até mesmo a consulta no dicionário. O outro caso é a norma regular contextual.

Agora, daqui pra frente, eu mapeio as dificuldades ortográficas apresentadas pela turma e diante deste documento vou elegendo o que é prioridade para se tornar objeto de reflexão, isto para encaminhamentos pensados coletivamente ou individualmente.

Esperamos que nossas contribuições possam ajudar vários colegas a ensinarem ortografia, sim, na escola.

Posted in Revista Avisa lá #53.