Belo Horizonte tem historia para contar – O que as crianças aprendem ao editar livros

Muitos dos projetos realizados com as crianças têm como finalização a montagem de um livro, quase sempre centrada na ação do professor. No entanto, essa produção é mais complexa do que se costuma imaginar. Em BH, Minas Gerais, duas professoras mostram como as crianças podem aprender a tomar decisões e resolver problemas próprios da edição de textos e imagens ao compartilharem um objetivo comum desde o início do projeto.


A produção de livros na escola tem se revelado uma prática bastante freqüente. Essa proposta, em geral, parte dos professores durante a finalização dos projetos de estudo com a intenção de recuperar o processo vivido com as crianças. Configuram-se, assim, como momentos de síntese avaliativa em que as crianças organizam os conhecimentos adquiridos no decorrer do estudo e o professor, por sua vez, avalia seu próprio trabalho ao reconhecer os avanços e as dificuldades de cada criança.

Mas, no entanto, temos refletido sobre outro aspecto: a produção de um livro propriamente dito possibilita outras situações de aprendizagem. Para escrever um livro, é preciso mais do que retomar o processo de aprendizagem ligado à escrita: é preciso planejar, fazer escolhas, tomar decisões, resolver problemas em relação ao texto, à ilustração e às questões estéticas referentes à edição final dos livros. Dessa forma, esse trabalho vai se configurando como um projeto que mobiliza crianças e professores durante alguns meses.

Como professoras, temos investigado a produção de livros por crianças, levantando uma questão: “mas, afinal, o que as crianças aprendem ao construírem livros que exigem tantos cuidados, tantas revisões antes de sua edição final”? Refletimos sobre essas aprendizagens nas experiências que acompanhamos bem de perto: o trabalho de duas turmas de crianças, de 8 e 9 anos, da Escola Balão Vermelho, em Belo Horizonte.

Conhecer a história para escrever
No ano de 1997, Belo Horizonte comemorava 100 anos e a Escola Balão Vermelho, 25. Essas comemorações nos mobilizaram a pensar em projetos de estudo que retratassem aspectos dessa cidade e/ou dessa escola. Nos encontros por equipe sempre dedicávamos um tempo para conversar sobre quais aspectos desejaríamos abordar com as crianças. O que nos despertou mais a atenção foi o aspecto arquitetônico da cidade, compreendendo o espaço como produto de transformações decorrentes de influências políticas, sociais,históricas e culturais.

Na verdade, o projeto de construção de Belo Horizonte foi cuidadosamente planejado durante quatro anos; mas sabemos que nesses 100 anos muitas transformações arquitetônicas ocorreram. Quisemos levar este tema para a sala aproveitando, inclusive, a oportunidade de falar com o arquiteto Flávio Casalarde, que estava envolvido em projetos do centenário da cidade e era pai de uma das crianças e ex-aluno da escola.

Num período de três meses, nós e as crianças passamos a conhecer BH por meio de sua arquitetura. Queríamos saber em que período histórico o prédio da nossa escola, tão cheio de curvas e cores, passou a fazer parte da história da cidade. Apreciamos livros e textos sobre a cidade, visitamos vários prédios e pontos turísticos, como o conjunto arquitetônico da Pampulha, praças construídas em diferentes épocas, a fim de relacionar as formas com a época de construção.

Também assistimos a uma conferência de Flávio Casalarde: ele foi cuidadosamente construindo a história arquitetônica da cidade em diferentes épocas relacionando-a com o momento político do país, com as influências européias e com as necessidades reais de cada época. Isso tudo numa linguagem acessível às crianças sem perder o grau de profundidade.

De volta à escola, fizemos propostas para que as crianças reconstruíssem as informações dadas por Flávio, consultando suas anotações pessoais e acessando seus registros de memória. Também propusemos desenhos de observação e de memória dos lugares visitados pelo grupo ou de locais significativos para cada um. As crianças guardavam suas produções e, durante as aulas de artes, reservávamos um tempo para a apreciação pelo grupo.

À medida que o material individual foi crescendo, passamos a discutir sobre a organização dos conteúdos num livro, tecendo idéias para um projeto.

A escolha do formato editorial
Diante de algumas idéias trazidas por nós, as crianças ficaram seduzidas pela construção de um livro-arte. Foi assim que nasceu o livro BH minha cidade, minha casa, título escolhido pelas crianças depois de muitos ensaios.

A partir daí, nossas rodas tiveram como eixo as seguintes perguntas: Mas o que é um livro-arte? Um livro é um objeto de arte? Para que ele serve? Será que podemos construir um livro só de imagens ou só de textos? Será que um livro que não tem textos, só desenhos, é um livro? E o seu tamanho? Podemos variar? E o seu formato? Podemos abri-lo e fechá-lo de vários jeitos? Como utilizar nossas produções? Como transformá-las num livro?

Essas questões colocavam para o grupo a discussão sobre concepção de livro como objeto de arte. Para avançarmos nessas questões, usamos como referência um catálogo de artistas americanos que trabalham o livro como objeto de arte. Nesse catálogo, Judith Hoffberg, bibliotecária, crítica de arte, curadora de muitas exposições de livros de artistas, considera que “a intimidade de um livro seduz o artista a criar o trabalho do mesmo modo que seduz o observador/leitor a interagir com essa intimidade que lhe é acessível. Assim a experiência de ver um livro de artista é uma experiência interativa”.

Depois de apreciar os diferentes trabalhos dos artistas americanos, as crianças planejaram seus livros, imprimindo-lhes as suas memórias sobre a cidade: esboçaram diferentes formatos, selecionaram desenhos, criaram outros, incluíram fotografias, experimentaram vários materiais de diferentes texturas, trocaram produções com os colegas e fizeram a opção de construir o livro individualmente, em dupla e até mesmo em pequenos grupos. Esses livros que se desenrolam, desdobram e revelam faces múltiplas da cidade e das crianças se encontram à disposição na biblioteca da escola.

Um foco na produção de textos
No ano seguinte, a turma de 9 anos dedicou-se à edição de um livro
relacionado à seqüência de estudos sobre aspectos da cultura negra no Brasil. Trata-se de um projeto de um ano: no primeiro semestre as crianças trabalharam para a construção textual, e no segundo, a ilustração.

Depois de muitas conversas e estudos sobre o tema, as crianças foram construindo o seu próprio diário: da África ao Brasil. Para definir a publicação também foi preciso apreciar alguns exemplares que poderiam inspirar as crianças. Neste caso, foi o livro Ilê Aiê um diário imaginário, de Francisco Marquês, que ajudou a turma a definir um roteiro para esta escrita. Entretanto foi necessário também recorrer aos textos estudados e anotações pessoais para buscarem mais dados que retratassem melhor a época.

Na fase de produção do rascunho ocorreram muitas situações de revisão: ora coletivamente – para chamar a atenção de aspectos relacionados à coerência textual, em que as crianças eram convidadas a assumir a tarefa de críticas –, ora em duplas para a revisão da ortografia, pontuação e outros aspectos formais da escrita. Algumas vezes as correções eram feitas individual e espontaneamente. Outras vezes, precisávamos direcionar o olhar para atender a questões particulares.

Um olhar para o trabalho com artes
Para ilustrar a própria produção, as crianças passaram a pesquisar e apreciar obras de artistas que retratavam elementos da cultura africana no Brasil. Prepararam seus rascunhos experimentando formas, cores, texturas e diferentes materiais. Nessa fase, foi necessário trabalhar lado a lado com a produção escrita para retirar elementos do texto essenciais na composição das vinhetas de cada página do diário.

Com passagens obrigatórias pelos navios negreiros, mercados de escravos, canaviais, cidades, fazendas e quilombos, as crianças foram narrando sonhos, tristezas, lembranças, lutas e esperanças dos negros daquele tempo. Como resultado, diários imaginários e ao mesmo tempo verdadeiros. Imaginário porque as crianças se reportaram aos séculos de escravidão negra no Brasil para contar episódios importantes dessa história, assumindo o papel do personagem principal: um africano ou uma africana que fora obrigado a abandonar a sua Terra-Mãe para trabalhar como escravo no Brasil. Verdadeiro porque fruto do estudo da história que deixou marcas profundas na formação do povo brasileiro e nos ajuda a entender como ainda hoje são cometidos tantos abusos de discriminação racial no país.

Concluindo: o que se aprende
Percebemos que as crianças se tornam mais exigentes quando sabem que estão desenhando ou escrevendo para um livro. Não vale qualquer desenho, qualquer palavra, qualquer lápis. É preciso pensar cuidadosamente em cada detalhe.

Normalmente as crianças menos exigentes ou as que não se satisfazem com a própria produção recebem tanto a nossa ajuda quanto a dos colegas. Observamos que, ao mesmo tempo em que se sentem amparadas, também se esforçam para mostrar uma boa performance. Até mesmo as mais exigentes e perfeccionistas – que também necessitam de ajuda para flexibilizar suas emoções. Aprendem a lidar com suas frustrações. Além disso, os exercícios de planejar, selecionar e escolher, que são essenciais na produção de livros, colocam as crianças diante de situações de aprendizagem que exigem antecipações e tomada de decisões.

Aprender a preparar rascunhos, tanto dos textos quanto dos desenhos, revisar a própria produção e a dos colegas, resolver problemas de espaço considerando texto eilustração são alguns dos exemplos. É preciso remendar, rabiscar, experimentar, fazer de novo e até mesmo aprender a lidar com o erro e incorporá-lo no seu trabalho.

Tudo isso sem perder de vista a importância do coletivo para a conquista da autonomia e da responsabilidade. Aprender a trabalhar em grupo, sentar-se em roda para refletir sobre a produção e planejar novos encaminhamentos são exercícios presentes o tempo todo, exigindo do grupo níveis cada vez mais complexos de organização.

É importante lembrar que não “criamos do nada”, o processo precisa ser alimentado. Pesquisar, conhecer e apreciar obras de diferentes autores e artistas deve ser um trabalho constante.

O olhar atento sobre o acervo literário e sobre as produções artísticas disponíveis a todos nós deve estar contemplado na escola, pois só assim temos a oportunidade de resgatar aspectos da cultura essenciais à formação de nossas crianças.

Depois de vivenciar essas duas experiências de trabalho, podemos concluir que a produção das crianças são “livros de sonho”, que representam diários de impressões altamente pessoais, tornando pública a experiência particular de cada uma.

Os livros possibilitam nosso vínculo com o passado, com a memória, com o que já foi revelado. Permitem uma deliciosa interação entre autores e leitores que se desenrola no tempo.

Gostaríamos de agradecer à Escola Balão Vermelho pela oportunidade deste trabalho, aos colegas de ciclo que compartilharam dessa experiência e aos alunos, dos anos de 1997 e 1998, que construíram seus livros com tanta dedicação.

(Claudia Rocha de Paula e Rosvita Kolb Bernardes, Professoras do primeiro ciclo do ensino fundamental – turmas de 8 e 9 anos – da Escola Balão Vermelho)

O livro, ricamente ilustrado, foi escrito pelas próprias crianças

A revisão de textos na produção de livros

Revisão de texto ou correção de erros? Como resolver os textos mal – escritos produzidos pelas crianças? Eles podem ser publicados como estão? E ainda, como ajudar a criança a escrever melhor? Estas são algumas das questões que têm preocupado os professores que trabalham a partir da produção de livros pelas crianças. Veja como a equipe do PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores , Brasília: Ministério da Educação, SEF, 2001) pensa essa questão.

“Em primeiro lugar é preciso que o professor defina com clareza seus objetivos. O que conhecemos e estamos habituados a encontrar na escola é a prática de marcar no texto do aluno o que o professor acha que está errado. A idéia é que, vendo seus erros corrigidos, o aluno não os repita. Esta prática traz embutidas duas hipóteses:

  1.  a primeira é que um texto pode ser trabalhado apenas de um ponto de vista, do que está certo ou errado. (O que pode valer para a ortografia, por exemplo, do ponto de vista discursivo não funciona.)
  2. a segunda tem a ver com a concepção de aprendizagem e com o modelo de ensino. Numa ótica empirista bastaria ao professor apontar os erros mostrando o certo. Caberia então ao aluno memorizar, isto é, fixar o certo para não repetir o erro1

1 Os PCNs, (Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental, 1999) também assumem essa concepção.

Ficha técnica:

Este trabalho foi desenvolvido pelas professoras Cláudia Rocha de Paula (2o ciclo) e Rosvita Kolb Bernardes (Artes) com crianças de 8 e 9 anos da escola Balão Vermelho em Belo Horizonte. Também participaram do projeto os professores Aline Pieri, José Olavo Malta e Mércia Maldonado.

  • Escola Balão Vermelho. Rua Mangabeiras, 800, Belo Horizonte, MG Tel: (31) 281-7799 Fax: (31) 223-4545 e-mail: balaoesc@net.em.com.br Obs: os livros das crianças não foram produzidos para venda, mas podem ser vistos na biblioteca da escola.

Para saber Mais

  • Ilê aiê um diário imaginário. Francisco Marquês. Ed. Formato. Tel: (31) 3413-1720.
  • A História dos Escravos. Isabel Lustosa. Histórias da Preta. Heloisa Pires Lima.Ambos da Ed. Cia. das Letrinhas.Tel: (11) 3846-0801
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