Cultura dos jogos de tabuleiro

Projetos que consideram a cultura dos jogos de tabuleiro são muito bem-vindos nas instituições de Educação Infantil, pois as escolas brasileiras, em geral, pouco exploram esse legado lúdico da humanidade. Boa parte dele é milenar, difundido de geração em geração – por adultos e crianças – até chegar a nosso conhecimento. O curioso é que boa parte dos jogos apareceu primeiro nas mãos de adultos antes de os pequenos terem acesso a eles. Foi passatempo de reis, rainhas, faraós e marajás.

Alguns eram esculpidos em pedra, madeira, pintados a mão. Outros, feitos na própria terra, riscados no chão, com peças improvisadas, como pedras e sementes. Há povos que até hoje têm o hábito de confeccionar seus tabuleiros no próprio chão, como acontece no Deserto do Saara, onde o suporte para o jogo é a areia, e as peças são improvisadas até mesmo com fezes redondas de animais. A história dos jogos pode ser uma viagem muitíssimo interessante para as crianças, do ponto de vista do conhecimento e do sentido que pode conferir ao ato de jogar. Quando ensino jogos ao público infantil, procuro saber a origem e alguma curiosidade a respeito deles para contar para as crianças, bem como levar o mapa ou o globo para localizar sua procedência. Assim, acompanhamos o trajeto percorrido pelos jogos até o momento atual.

O próprio jogo de origem indiana Cobras e escadas tem uma história interessante. É uma versão do antecessor hindu Moksha patamu, dedicado ao deus Vishnu, no qual as escadas representavam a virtude e as cobras a maldade. Bem e mal, no tabuleiro, estavam presentes não só em imagem no jogo original, mas também em escrita. Em cada escada havia a inscrição de uma virtude, e em cada serpente, um vício – a desobediência, o orgulho etc. – que tinham sentido dentro do contexto em que o jogo foi criado.

Desde a primeira edição desse jogo na Inglaterra, em 1892, ele se conservou parecido com o que é hoje no que diz respeito às imagens. Entretanto, foram se transformando os motivos que faziam o jogador ascender ou retroceder. Ora o tabuleiro exibia motivos circenses, ora a temática era de esporte, meios de transporte e até promocionais de produtos alimentícios. Embora o formato do tabuleiro de 100 casas seja quadrado, também é possível encontrar versões retangulares e até circulares.

Saber disso tudo abre perspectivas para a criação de novas formas para se confeccionar o jogo, inclusive de pesquisa. Já pelo nome original (Moksha patamu), é possível ampliar consideravelmente a pesquisa com as crianças na internet, por exemplo, onde é possível selecionar diferentes tipos de tabuleiro encontrados em diversos países como inspiração para que outros sejam criados. Há uma versão muito inusitada, baseada neste antigo, feito Francisco Marques numa proposta desenvolvida pela Caleidoscópio – a Terça lúdica de jogos indianos.

Passatempos do mundo
Todas essas curiosidades, cada vez mais, são compartilhadas em livros publicados, alguns deles direcionados ao público infanto- juvenil. Em alguns países, há museus dedicados a esse tema. Às vezes, até mesmo para um único jogo específico, como é o caso da França, existe um museu inteiro só para os diferentes exemplares do Jogo do ganso (precursor do jogo de trilha), e outro dedicado aos jogos de cartas. Felizmente, aos poucos, algumas editoras estão socializando essa história, embora ainda haja muito a ser traduzido no Brasil, como bons dicionários e verdadeiras enciclopédias de jogos, relíquias artísticas com mostra de exemplares de alguns deles presentes em museus do mundo inteiro.

Por causa da pouca circulação desse conhecimento tão significativo para as crianças, tenho procurado escrever a respeito e, em meu trabalho formativo, divulgar esse acervo lúdico da humanidade, sua história, as regras, bem como os meios alternativos de confeccionar diferentes tabuleiros nas escolas, sobretudo usufruir de boas partidas. Assim, tenho realizado diversas oficinas com esse propósito.

Nomeei essas oficinas de Tabuleiro-Múndi, com o objetivo de conhecer e difundir a cultura dos jogos de tabuleiro. Tais momentos podem ser pontuais para conhecer dois, três ou mais jogos, sendo também possível analisar inúmeros jogos antigos, como desdobramentos deles na cultura dos jogos de tabuleiro de hoje, como é o caso do Jogo da velha, tão popular, mas que já faz parte da cultura lúdica da humanidade desde o Egito Antigo. Interessante compartilhar essa informação com as crianças e também contar para elas que há muitas outras instigantes variantes mais complexas, como o Ligue quatro, Capitão Cook, Chung toi, Quarto! e Pentago.

Há, no Brasil, algumas empresas que procuram difundir a cultura dos jogos de tabuleiro, como a Origem. Pioneira na área, ela promoveu uma exposição – A volta ao mundo em 80 jogos –, que aconteceu no Serviço Social do Comércio (SESC). Há outros fabricantes também, como a Ludens Planet, que sempre apresenta as regras e um pouco da história de cada exemplar. Em breve, a Dados e Jogos lançará as séries Mapa lúdico e Primeiros jogos, feitos em toalha de jogo americano, linha criada por mim. Uma é dedicada a conhecer a cultura dos jogos de tabuleiro. A outra, como o nome diz, é direcionada a jogadores iniciantes.

Crianças jogadoras
Além de conhecer os jogos, é interessante criá-los com as crianças. Essa medida é importante por dois motivos: primeiro pelo aspecto da criação em si e, depois, para desvincular o ato de jogar do consumo, da necessidade de adquirir o jogo no mercado. Para dar conta desses objetivos, nada melhor do que por a mão na massa e fazer o jogo. Por isso, tenho insistido na ideia das oficinas que consideram a faixa etária de 3 a 6 anos. Esses jogos de tabuleiro contêm forte aspecto simbólico em suas regras, considerando, justamente, a maneira de pensar dos pequenos. A oficina Primeiros jogos, da qual a equipe da Escola Tipuana participou, em uma de suas edições, tem como objetivo provocar a discussão dos seguintes conteúdos:

  • Jogos de tabuleiro para jogadores iniciantes.
  • Intervenções no ato de jogar.

Tais oficinas são um convite a fazer jogos para as crianças em um primeiro momento para, depois, propor exemplares confeccionados por elas. Para tanto, partimos dos mais conhecidos. Assim como não se cria um texto sem boas referências, não é possível fazer jogos sem conhecê-los bem. Para isso, selecionei do livro Jogos em grupo, de Constance Kazuko Kamii, Cabo de guerra e Todos se foram, que valorizam o uso do dado na medida em que envolve contagem. Sistematicamente, tenho proposto, nessas oportunidades, transformar esses jogos, que são exclusivamente de regras, em jogos de regras com conteúdos simbólicos. Essa intervenção pontual dá margem para uma infinidade de modelos que podem ser feitos para as crianças e pelas crianças.

Com essa metodologia, proponho pequenas mudanças nas regras e no formato do jogo até que os pequenos possam ter condições de elaborar passatempos bem diversos do modelo inicial. Tenho observado grande competência por parte dos adultos e das crianças na criação dos próprios tabuleiros, ora pensando no desdobramento de um jogo conhecido, ora mesclando a lógica de dois ou mais modelos para criar algo novo, não só na forma como no conteúdo. O que se ganha com essa proposta é a introdução das crianças no mundo dos jogos de um jeito mais próximo dela, que está no auge do jogo simbólico.

Muito mais interessante do que um simples pino, ficha ou peão se movimentar no tabuleiro, é ter objetos que tenham atributos simbólicos em um contexto igualmente simbólico. Tenho reparado que as crianças, ao construírem os próprios tabuleiros, dão muito valor a isso. Dessa maneira, podemos transformar o jogo Cabo de guerra. A ficha que se movimenta ganha conteúdo simbólico, pois às vezes ele é uma borboleta que anda de flor em flor e não de casa em casa e, às vezes, ele é um avião que voa nas nuvens. Pode ser também um super- herói, uma bola etc. Também as casas, que antes eram geométricas, podem se transformar em alguma forma condizente com o enredo do jogo. A seguir, alguns exemplos de variantes do Cabo de guerra propostos por adultos e por crianças:

Outro jogo que gosto de trabalhar durante as oficinas Primeiros jogos é o Todos se foram, do mesmo livro de Constance Kazuko Kamii, citado anteriormente. Esse é um jogo muito interessante para os pequenos que estão aprendendo a contar. Um desdobramento dessa formação, quando é possível mais constância, é a apropriação por parte das crianças não só do jogo, mas da forma de como fazê-lo. A seguir, alguns exemplos de variações muito criativas feitas por crianças e adultos. Propostas de confeccionar jogos com crianças podem ser cada vez mais ousadas, como é o caso da experiência de trabalho da rede pública de ensino de Caieiras1. Tive o privilégio de trabalhar com a equipe educativa desse município em um inusitado concurso de jogos entre crianças de 4 a 6 anos, que já está na quarta edição, com produções anuais de 5.000 jogos, concebidos inteiramente pelos pequenos. Tal experiência encontra-se registrada no livro Ciência, arte e jogo: projetos e atividades lúdicas na Educação Infantil, de minha autoria. Iniciativas como essas e a da Escola Tipuana, que, felizmente não são as únicas, estão ajudando a valorizar esse rico trabalho. Muito gratificante participar de tudo isso!

Criação dos próprios jogos Uma nova questão surgiu nas rodas: brincadeiras na quadra também são jogos? Esta pergunta levou-nos a fazer um levantamento e a elaborar um quadro de classificação de diferentes tipos de jogos. Em decorrência, os de mesa foram escolhidos como eixo de trabalho, incluindo algumas brincadeiras na quadra, que também serviram para as pesquisas e criação de jogos.

A partir da brincadeira Cabo de guerra2, realizamos na quadra um registro plástico e outro escrito das regras, que tinham sido muito importantes para o envolvimento inicial do grupo com o tema e também havia possibilitado, posteriormente, às crianças criar seus próprios cabos de guerra em tabuleiros, cada um com sua temática.

Outra atividade que contou com grande envolvimento do grupo foi a confecção do jogo Pega varetas (foto e ilustração das crianças abaixo). As crianças lixaram palitos de churrasco e separaram as quantidades de cada cor. Esse jogo, além de trabalhar a motricidade, possibilitou organizar e socializar estratégias para contagem de quantidades maiores. Fizemos ainda um jogo de percurso gigante, desenhado na quadra, no qual as crianças eram as peças do tabuleiro. Depois disso, elas criaram novamente seus próprios jogos de percurso, selecionando diferentes sucatas e suportes, o que se constituiu em grande desafio, pois, além da escolha adequada de materiais, foi necessário pensar sobre a organização deles e na compreensão do jogo em sua função social. Para isso, várias discussões foram realizadas em roda e, posteriormente, serviram para a confecção das regras do jogo de cada um. Pesquisamos também a história do jogo Mancala. Pedimos aos pais que pesquisassem com os filhos a origem do jogo e enviassem os resultados obtidos, que foram socializados em roda.

Frente às diferentes informações coletadas, adaptamos as regras à faixa etária com a qual estávamos trabalhando e, depois de observação de diferentes tabuleiros, as crianças utilizaram caixas de ovos, tampas, argila e outros materiais para a confecção individual do próprio Mancala. Fizeram também, ao longo do projeto, um registro com desenhos que representavam todos os jogos da nossa sala e do que tinham aprendido, o qual serviu para as crianças organizarem, na rotina, a utilização de todos eles.

Todo o processo foi intensamente vivenciado pelas crianças, o que proporcionou ao grupo estabelecer relações socioafetivas importantes e auxiliou na constituição de identidade.

(Adriana Klisys)

1Em 2007, por orientação da Caleidoscópio, a Secretaria Municipal de Educação de Caieiras – SP realizou o 1o concurso de jogos de tabuleiro da rede, com a participação de 19 escolas de Educação Infantil. Foi criada uma comissão para a escolha dos finalistas, que contou com representantes de professores, crianças, coordenadores pedagógicos, pais e especialistas na área de jogos. Uma produção inédita foi inaugurada: 4.500 exemplares do jogo que ganhou o concurso foram distribuídos para todas as crianças da rede municipal de ensino.

2Cabo de guerra é um jogo que utiliza uma corda e permite apenas duas equipes. A corda é dividida ao meio e cada grupo ocupa um lado, de modo que as equipes fi quem de frente uma para a outra. Ao sinal, cada grupo deve puxar a corda para o seu lado. Vence quem conseguir fazer isso.

Família de jogos

Mancala é um jogo de estratégia relacionado à semeadura. Tem origem na palavra árabe nagaala, que significa mover. Simula o ato de semear, a germinação das sementes na terra, o desenvolvimento e a colheita. Segundo o pesquisador H. J. R. Murray, existem cerca de 200 variáveis da regra desse jogo. Mancala, portanto, diz respeito a uma família de jogos.

(Fonte: trecho retirado do livro Brincar e ler para viver. Um guia para estruturação de espaços educativos e incentivo ao lúdico e à leitura, de Adriana Klisys e Edi Fonseca. Instituto Hedging-Griffo.)

Ficha técnica

Caleidoscópio Brincadeira e Arte
Tel.: (11) 3726-8592
E-mail: caleido@caleido.com.br
Site: www.caleido.com.br

Para saber mais

Livros

  • Brincar e ler para viver. Um guia para estruturação de espaços educativos e incentivo ao lúdico e à leitura, de Adriana Klisys e Edi Fonseca. Instituto Hedging-Griffo: Tel.: (11) 3704-8560. Disponível na íntegra em: www.institutohg.org.br/index.php?comunicacao e www.caleido.com.br/uploads/2/2/8/0/2280950/brincar-e-ler-para-viver.pdf.
  • Crianças pequenas reinventam a aritmética, de Constance Kazuko Kamii e Leslie Baker Housman. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br.
  • Jogos de todo o mundo, de Oriol Ripoli e Rosa Maria Curto. Ed. Ciranda Cultural. Tel.: (11) 3761-9500. Site: www.cirandacultural.com.br.
  • Jogos em grupo na Educação Infantil. Implicações da teoria de Jean Piaget, de Constance Kazuko Kamii e Rheta Devries. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br.
  • O grande livro dos jogos. 250 jogos do mundo inteiro para todas as idades. Ed. Leitura. Tel.: (31) 3379-0620. Site: www.editoraleitura.com.br/detalhe1.asp?id=35.
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