Apoio para a resolução de conflitos

As crianças, mesmo as bem pequenas, podem aprender a solucionar problemas com os colegas. Cabe ao adulto mediar as situações de conflito, tendo em vista a educação de seres autônomos e cooperativos

A construção de valores demanda um longo processo, que envolve emoções, sentimentos e interações sociais e culturais. Saber o que é certo ou errado e quais as atitudes e os comportamentos necessários para a vida em sociedade é difícil para adultos, e mais ainda para crianças. No início, os pequenos aceitam as regras em respeito à autoridade dos mais velhos e pelas reações negativas aos seus atos demonstradas pelos seus pares. A autonomia para lidar com as diferenças e enfrentar os dilemas morais é construída ao longo da vida, mas pode ter bom começo na mais tenra idade.

Conflitos e intervenções
Imagine um lanche coletivo. Há duas mesas compridas repletas de pães, frios e frutas. Uma criança diz: “Vou comer tudo”. Outra, ao escutar essa fala, reage fisicamente, com agressão. Quando a professora conversa com elas sobre o acontecido, o agressor justifica: “Ele ia comer tudo. E não pode!” Ele considera ao pé da letra o que o amigo falou. Imagina, de fato, que o colega comeria sozinho todo aquele lanche, não deixando nada para os demais. Sente-se frustrado e, por isso, bate.

Donald Woods Winnicott (1896-1971) defende dois significados para agressividade. O primeiro está relacionado à frustração, como é o caso aqui relatado. O segundo refere-se à diversidade de situações nas quais a agressividade pode se manifestar. O autor chama a atenção para os diferentes tipos de agressão para defini-los melhor, considerando a criança em evolução. Portanto, a relação entre desenvolvimento, agressividade e experiência na infância deve ser considerada.

De qualquer maneira, quais são as estratégias possíveis para a resolução desse tipo de conflito? A primeira delas é a indicada no texto: a criança sente-se perdedora e, por isso, reage fisicamente. A segunda pode se referir a uma resposta à fala do colega: “Você não vai comer tudo”. A depender da criança, ela explicaria o que havia querido dizer ou, centrada em seu pensamento, ao descobrir que o outro havia pensado exatamente igual a ela, diria: “Vou sim!”. Nesse caso, o conflito seria verbal.

O convívio social é um aprendizado diário (foto: acervo Daniela Munerato)

O convívio social é um aprendizado diário (foto: acervo Daniela Munerato)

Os pequenos conseguem resolver as questões pela ação física ou em conversas. No entanto, o ato de conversar tem de ser aprendido, já que, em geral, eles acreditam que o outro o compreende e que não é necessário explicitar sentimentos, desejos e sugestões. Cabe ao professor sugerir uma alternativa à agressão física ou verbal até que todos se apropriem das estratégias de negociação. Não basta dizer: “Não pode bater. Tem de conversar.” É necessário ensinar como fazer isso, para que eles possam simular novas possibilidades. A apropriação acontece por meio dessas experiências. Vale ressaltar que a vivência é como um exercício e, portanto, leva certo tempo para tornar-se parte do repertório infantil.

No momento de solucionar esse tipo de conflito, cabe a nós, professores, percebermos o valor da formação que, na verdade, é um princípio importante que permeia o universo dos conflitos. O professor poderia, simplesmente, chamar a atenção daquele que agrediu, solicitando que ele pedisse desculpas. Outro caminho seria conversar e, assim, refletir sobre a impulsividade ligada àquela situação. Exemplo:

“O que ele disse que te deixou tão bravo?”,
“Você acha possível alguém comer toda essa comida sozinho?”, “Acho que o seu amigo quis dizer que experimentaria de tudo, não foi? Ou fez uma brincadeira diante da mesa cheia?”, “Agora você entendeu?”,
“Quando a gente conversa consegue compreender melhor o que o outro quer dizer; quando a gente bate, não há entendimento da situação”.

Outro momento bastante comum é quando as crianças, durante os jogos dramáticos, assumem papéis diversos. Os heróis são os personagens preferidos. Uma criança, nesse papel, diz: “Vou te matar”. A outra chora compulsivamente, com medo. Do ponto de vista do “herói”, o interlocutor deveria saber que se tratava de uma brincadeira. O ofendido entra em conflito pessoal, na dúvida se o colega o mataria de fato. Essa é outra característica dos pequenos, que ainda estão aprendendo a distinguir a realidade da ficção. É fundamental mostrar aos envolvidos os dois lados. Para isso, é importante elaborar questões que os façam refletir sobre os sentimentos que permeiam o acontecido. Para finalizar a conversa, chame a atenção dos pequenos para o fato de que não era intenção do amigo deixar o outro com medo porque ele acreditava que o outro soubesse disso.

Valor formativo
A relação entre professores e alunos deve ser de respeito e de troca. O vínculo representa um eixo fundamental, sobretudo quando falamos dos pequenos, que obedecem em nome do amor ou do medo que sentem. O educador precisa criar um ambiente marcado pelo respeito e tornar evidente o prazer em vê-los juntos, em que sentimentos, interesses e ideias dos pequenos sejam considerados, como no exemplo a seguir. Em um momento de roda, a conversa era sobre relações. A professora perguntou aos alunos o que é possível fazer quando um amigo não deseja brincar da mesma coisa. Alguns sugeriram escolher outra brincadeira, perguntar ao colega sobre o que ele gostaria de brincar e até escolher outro parceiro. A educadora adota as sugestões como boas possibilidades, que evitam o conflito e respeitam a vontade do outro.

Quando se pensa em intervenções, é inevitável abordar as sanções. Jean Piaget (1896-1980), por exemplo, sugere dois tipos: sanções por reciprocidade e sanções expiatórias e punitivas. Na primeira, há as consequências naturais, a compensação, a exclusão, a censura… Na segunda, há uma sanção que não tem valor de formação. A criança consegue compreender que errou, mas sem compreendê-lo totalmente. Dessa maneira, esse tipo de ação não gera reflexão, muito menos mudança de atitude. Por um lado, o professor deve fazer escolhas, sempre em nome de um princípio que permeia e fundamenta regras estabelecidas para a convivência no grupo. Por outro, deve ter claro que algumas escolhas e punições podem estar relacionadas a outro foco, diferente do trabalho de formação com a criança.

O docente que retira da sala um aluno, depois de tentar solucionar uma questão mal-sucedida, precisa de um tempo para se equilibrar, acalmar os sentimentos e retomar o que fazia em sala. Nesse caso, o foco é o professor; não o aluno. É fundamental que o profissional saiba distinguir o que cabe a ele ou não. Vale dizer que não há regras nem receitas que dão certo em qualquer situação. Como diz o professor Yves de La Taille1, “as regras se discutem, mas os princípios não”.

Autonomia infantil
No dia a dia das escolas, é comum ver docente utilizando a palavra “autonomia” para se referir a expectativas ou conquistas dos estudantes. Quando observamos os alunos realizando ações que antes não faziam sozinhos, verificamos um avanço no campo da autonomia. E o que significa autonomia? Segundo Piaget, autonomia refere-se, por um lado, a um nível de desenvolvimento psicológico. Por outro, há uma dimensão social. Autonomia pressupõe relação com os outros. Por isso, só é possível realizá-la como processo coletivo, que implica relações de poder não autoritárias. Quando o foco da autonomia é o conflito, a situação fica ainda mais complexa. Vale observar que a aquisição da linguagem, marco importante no desenvolvimento dos pequenos, cada vez mais elaborada, não quer dizer que seja aplicada adequadamente, ainda.

A linguagem é o principal instrumento, mas deve ser ensinada, pois sua utilização ainda não é tão clara. Portanto, pedir que as crianças resolvam seus conflitos sozinhas pode não ser um caminho encorajador, construtor. Se elas nos pedem ajuda é porque não sabem lidar com esse momento. Outro fator importante são os sentimentos envolvidos, que podem ajudar ou não. Se a criança estiver com medo de enfrentar um colega mais velho, por exemplo, guardará sua raiva e tristeza, mas não resolverá a questão sozinha. Por outro lado, algumas falas revelam essa construção de autonomia, que acontece progressivamente, como: “Eu quero esta pá que está com ele.” (expressão sem ação física), “Não quero esperar, quero agora. Você me ajuda?” (pedido para conter a ansiedade e a vontade de tirar o brinquedo do outro), “Você brinca e depois você me dá? Vamos fazer uma parlenda para ver quem brinca primeiro?” (tentativa de acordo) e “Vamos brincar juntos?” (proposta mais sofisticada).

O papel do professor não é resolver pelas crianças, mas servir de scaffolding, termo cunhado por Jerome S. Bruner2 e Edward Ross3 , como sendo um processo que permite à criança resolver um problema que estaria acima de sua capacidade Assim, estar com as crianças nas situações significa parceria importante nesse momento. Significa dar apoio, estar junto e, se houver necessidade, intervir. Muitas vezes, ter o educador perto já basta para que elas consigam expressar sentimentos e explicitar o acontecido, dialogar. À medida que se apropriam de tais condutas e amadurecem sentimentos não precisarão mais da nossa presença tão constante. Para as crianças dessa idade, autonomia significa saber identificar o conflito e falar sobre as ocorrências antes de agir fisicamente, apropriar-se de possibilidades para resolver questões recorrentes, como a disputa por um brinquedo, por exemplo. O que importa é saber quais são os recursos que cada um tem para resolver diferentes tipos de conflito sozinho, acompanhado ou com ajuda de um adulto. Para isso, é preciso contar com a afinada observação individual feita pelo professor, com os registros em forma de diários e pautas de observação. Assim, pelo acompanhamento individual e coletivo, será possível analisar como se formam os processos de construção da autonomia das crianças.

(Daniela Munerato, psicóloga, professora e orientadora de Educação Infantil da Escola da Vila e formadora de professores do Centro de Formação da Escola da Vila, em São Paulo – SP)

1Psicólogo, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, amplamente reconhecido por seus estudos sobre a chamada Psicologia Moral.

2Jerome S. Bruner nasceu em 1915. Embora seja psicólogo por formação e tenha dedicado grande parte de suas obras ao estudo da Psicologia, ganhou grande notoriedade na Educação graças à sua participação no movimento de reforma curricular, ocorrido nos Estados Unidos da América, na década de 1960. Bruner apelida sua teoria de instrumentalismo evolucionista, uma vez que, para ele, o homem depende das técnicas para a realização da própria humanidade.

3 Edward Ross (1866-1951) foi um sociólogo americano. Foi o grande divulgador da ideia de que o objetivo da Sociologia era reformar a sociedade. Ross não teve pares entre os sociólogos americanos em sua vida. Foi um estudioso erudito, palestrante, inspirador, reformador, corajoso e intransigente defensor da liberdade individual.

As crianças aprendem a dialogar e a resolver conflitos com o outro (foto: acervo Daniela Munerato)

As crianças aprendem a dialogar e a resolver conflitos com o outro (foto: acervo Daniela Munerato)

Ficha Técnica

  • Daniela Munerato
    E-mail: dani@vila.com.br
  • Escola da Vila
    Endereço: Rua Barroso Neto, 91, Butantã – São Paulo – SP. CEP: 05585-010 Tel.: (11) 3726-3578
    Diretora de Educação Infantil: Vania Marincek
    Coordenadora pedagógica: Dayse Gonçalves
    E-mail: info@vila.com.br
    Site: www.escoladavila.com.br

Para Saber Mais

Livros

  • Seis estudos de Psicologia, de Jean Piaget. Ed. Forense Universitária. Tel.: (11) 5080-0780. Site: www.grupogen.com.br
  • Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas, de Yves de La Taille. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br
  • Desenvolvimento psicológico e educação, de César Coll, Álvaro Marchesi e Jesús Palacios. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br
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