Albert Eckhout – o contato com um olhar estrangeiro

O olhar estrangeiro do mestre holandês Albert Eckhout, com seus exóticos tipos etnográficos, e o curioso olhar das crianças que apreciaram suas obras, em um museu do Recife, compõem esta matéria
"Negra", de Wallyson

“Negra”, de Wallyson

Foi Portugal quem descobriu o Brasil, mas os holandeses também se interessaram por nossas terras. A Companhia das Índias Ocidentais, instituição holandesa responsável pelas navegações, fez muitas tentativas para se estabelecer no Brasil. Em 1637, chegou a enviar um governador, o conde Maurício de Nassau, um homem arrojado e empreendedor, para ocupar o território Nordeste do Brasil, na região onde hoje está o estado de Pernambuco.

Nessa viagem, ele trouxe consigo um grupo de pintores, desenhistas e cientistas para que registrassem imagens de nosso país e aspectos da vida de nosso povo. Nassau tinha a pretensão de montar um verdadeiro inventário da fauna e flora brasileiras: na época, essa era a única forma de mostrar aos habitantes da Holanda como era o território recém-ocupado, no Mundo Novo. Além disso, os cientistas também deveriam fazer observações astronômicas, reconhecimento topográfico da ocupação e estudo das propriedades medicinais das plantas tropicais.

Era uma verdadeira expedição artística e científica. Albert Eckhout fez parte dessa comitiva. Viajando pelo Brasil, conheceu de perto e retratou, segundo seu olhar estrangeiro, as maravilhas brasileiras. De todos os pintores viajantes, Eckhout foi o que trabalhou com temas mais incomuns para a pintura da época, que em geral se preocupava com o registro preciso e detalhado de paisagens e grandes planos. Ele se concentrou nos tipos etnográficos: índios tapuias, guararapes, negros e mamelucos.

Nos cenários onde aparecem essas personagens, ele incluiu a fauna e flora brasileiras, um tanto exóticas para os europeus. Seus quadros chamam a atenção para a fartura que apresentam: abacaxis, melancias, maracujás, cocos, cajus, entre outros, às vezes combinados com abóboras e outros vegetais típicos da cultura indígena predominante naquelas terras, ou mesmo com repolhos e nabos que de brasileiros não tinham nada. E ainda animais, como enormes aranhas, jibóias e tudo o mais que o pintor nunca havia visto antes.

Não se sabe muito sobre sua vida fora do Brasil, o que e como ele pintava antes e depois dessa viagem. Pode até ser que toda a produção que se conhece do pintor tenha sido realizada aqui. Há poucos quadros que são atribuídos a ele, depois de sua estadia no Brasil, e, ainda assim, a autoria não é certa: há quem afirme que, de fato, não são dele. Mas, certamente, sua obra mais importante foi realizada no Recife e em Olinda. Entre 1637 e 1644, Eckhout produziu sua principal obra: um conjunto de oito representações em tamanho natural (265 x 178 cm), que obedecem a um só esquema estrutural: apresentam os habitantes locais, sozinhos, em pé, tendo ao fundo a paisagem e, em destaque, alguns elementos da flora e da fauna brasileiras (veja mini-pôster). São retratos naturalistas marcados pelos detalhes de uma boa observação etnográfica e zoológica e pela exuberância da botânica. Por outro lado, são também expressão de um gênero em moda na época, a alegoria, um modo de expressar pensamentos por meio de símbolos, como é o caso da Índia Tapuia, que carrega uma mão humana e, na sacola, um pé de cores bem contrastantes com a pele da índia, simbolizando o canibalismo que o homem branco europeu imaginava encontrar entre povos pagãos com costumes tão diferentes.

A coleção “Alegoria dos Quatro Continentes”, encomendada por Nassau, foi um presente muito especial para o primo, Frederico III, rei da Dinamarca. São representações valiosas do que ele queria mostrar do Novo Mundo e, tão impressionantes e encantadoras, que foram até mesmo copiadas. Dom Pedro II chegou a encomendar cópias de seis delas, que hoje estão guardadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. As obras originais pertencem ao Museu Nacional da Dinamarca. Eventualmente viajam pelo mundo. No Brasil, a raríssima oportunidade de conhecer de perto essas telas foi possibilitada aos pernambucanos: a exposição esteve no Recife, de 15 de setembro a 24 de novembro de 2002. E, em São Paulo, de 14 de janeiro a 30 de março de 2002, na Pinacoteca do Estado. Ao que tudo indica, tão cedo essas obras não sairão de novo da Dinamarca.

Negra - 265 x 178 cm, Museu Nacional da Dinamarca

Negra – 265 x 178 cm, Museu Nacional da Dinamarca

O curioso olhar das crianças
No Recife, as crianças conheceram as obras de Eckhout de perto. Ao voltar, encantadas com o que viram, passaram a produzir imagens, reinterpretando o olhar estrangeiro. Conheça detalhes dessa experiência na entrevista da professora Rosinha1, orientadora do trabalho.

Por que você decidiu apresentar Eckhout para as crianças?
Tive acesso à exposição graças à parceria firmada entre o Instituto Ricardo Brennand2 e o Centro de Cultura Luiz Freire, beneficiando o projeto Brotar de capacitação dos educadores de creche de Olinda, Recife e Camaragibe. Percebi, então, que seria uma oportunidade de reencontro das crianças com nossa história, já que as obras de Eckhout foram concebidas em Pernambuco. Particularmente, por desejar desenvolver um trabalho em que as crianças, desde cedo, tenham contato com obra de arte em seus locais expositivos. Essa foi uma experiência embrionária.

Como foi o início do projeto?
Conseguimos reproduções das obras com o Instituto Ricardo Brennand, que colocou à disposição textos e imagens com referências ao Eckhout para algumas creches. Infelizmente não foi possível enviar o material para a rede municipal. Como havia muito material em revistas, jornais e na Internet, por causa do evento, orientei as professoras para criarem um acervo com esse material e trabalhar com ele. Além disso, orientei-as para que ficassem atentas aos outdoors espalhados pela cidade e nas chamadas da televisão.

Que tipo de proposta você levou para que as crianças conhecessem o artista e sua obra?

Seguimos 6 passos:

  1.  Situar Eckhout na nossa história: usamos uma produção em vídeo desse momento histórico contado por bonecos. E também o vídeo Brasil 500 anos, produzido aqui no Recife, pelo grupo Mão Molenga, para a TV Escola. Esse vídeo foi passado em todas as creches.
  2. Situar as crianças em relação a Eckhout: como os dados sobre a vida de Eckhout são raros, decidimos que as professoras fariam contações de histórias sobre o artista, com a intenção de aproximá-lo ao máximo da criança, enriquecendo a narrativa.
  3. Situar as crianças no ambiente em que essas obras foram criadas: os sons das matas, dos animais, os cheiros e sabores das frutas, elementos constantes nos quadros de Eckhout, foram temas de trabalho com as crianças.
  4. Situar as crianças no ambiente em que essas obras foram expostas: como o ambiente expositor tinha a proposta inicial de estar climatizado em 15 graus, temperatura praticamente desconhecida para a maioria dos recifenses, esse foi outro assunto com as crianças. Outra preocupação foi com a dimensão do espaço e dos quadros, para que elas não se sentissem inseguras ou assustadas com a mudança de escala a que estão acostumadas.
  5. Situar as crianças em relação à obra: por serem muito pequenas, usei apenas a primeira operação indicada por Feldman3 para a leitura de uma obra de arte, pedindo que as crianças descrevessem a obra em seus detalhes, chamando a atenção para os elementos que lhe eram familiares, como animais, frutas, cenários, personagens, para que assim tivessem intimidade com a obra. Sugeri que fizessem essa descrição através de brincadeiras, como “adivinhem que cor tem o cachorro que estou vendo”, e as crianças deveriam procurar em qual quadro estava o cachorro e que cor tinha. Outra orientação foi criar alguns brinquedos, como um quebra-cabeça com as imagens para elas montarem. Todas as orientações visavam à apropriação da obra pelas crianças de uma forma lúdica.
  6. Produção: sugeri que produzissem retratos de seus amigos, de sua família, de seus animais e dos frutos que têm o costume de comer. Depois, que escolhessem o quadro que mais chamou a sua atenção e o recriassem. Sugeri, ainda, uma produção antes da visita à exposição e outra depois.

O que mais impressionou as crianças no trabalho do artista?
Alguns detalhes da obra de Eckhout chamaram a atenção das crianças:

  1. A nudez das figuras.
  2. Os detalhes das frutas.
  3. O céu sempre nublado nas naturezas mortas, o que não condiz com o céu de Pernambuco.
  4. O indício de canibalismo na mulher tapuia.
  5. As roupas da mulher mameluca.
  6. A dança tapuia.
  7. As dimensões dos quadros.
  8. As tapeçarias.
  9. O kinescópio4 com as imagens da dança tapuia.

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O que você acha que foi um ganho para as crianças?
A maioria das crianças nunca tinha ido a um local de exposição ou visto uma obra de arte ao vivo. Essa vivência tem estimulado as crianças a pedir para fazer outras visitas. O contato com esse momento da história de Pernambuco e sua ligação com as artes plásticas também foi um ganho não só para as crianças, como para todas as pessoas que estiveram envolvidas com o projeto.

Em uma das unidades da Prefeitura, ficou evidente para a professora Dóris a vantagem da ida ao museu. Ela afirma que o envolvimento e a apropriação das crianças que foram à exposição são visivelmente maiores em relação às crianças que trabalharam apenas com as reproduções em sala de aula.

O que foi mais significativo para você?
O movimento e o interesse das professoras para que as crianças tivessem acesso à exposição. Como o evento inicialmente não contava com esse público infantil, e pelo excesso de demanda, não havia espaço na agenda das visitas e nem transporte. Houve um momento em que achamos que não conseguiríamos ser bem-sucedidos. Foi muito legal o empenho que as professoras tiveram para garantir que as crianças não ficassem de fora da experiência. Além disso, ter notícias de como elas se tornaram mais sensíveis para as artes plásticas é motivo que me leva a achar que vale a pena um trabalho como esse. É a consciência da importância e da necessidade de um trabalho de “alfabetização” visual começando desde cedo.

1Rosinha – Rosângela Maria de Queiroz Bezerra, formadora da equipe de educação do Centro de Cultura Luiz Freire. Projeto Brotar e Prefeitura do Recife.
2Ricardo Brennand é um colecionador que construiu um castelo medieval para abrigar sua coleção particular e exposições como a de Eckhout.
3FELDMAN, Edmund Burke, Becoming Human Through Art; A esthetic experience in the school. Prentice-Hall International, Inc. London; 1970.
4Kinescópio – Sala em que o visitante, por meio de recursos audiovisuais, apreciava imagens de danças indígenas contemporâneas e danças do cotidiano urbano ao som de músicas de Chico Science.

Para saber mais

Mestre Eckhout virtual

Kaique

Kaique

Nada substitui uma visita ao museu para apreciar os quadros originais. Não há reprodução no mundo capaz de transmitir o mesmo calor, a mesma vibração das cores, a impressão que o tamanho das obras nos causa e a emoção de ver de perto obras tão especiais, antigas, portadoras de tanta história. Mas, para quem quiser saber um pouco mais sobre a história de tais obras, informar-se sobre algum artista ou movimento antes de apreciar uma mostra, pode consultar outras fontes.

Além dos livros de arte, encontrados nas boas livrarias, também é possível consultar sobre o assunto na rede. Dos sites especializados, há um especialmente importante: a Enciclopédia de Artes Visuais, que reúne os principais artistas e movimentos da história da arte brasileira. Uma rápida pesquisa permite visualizar obras de Albert Eckhout e outros artistas viajantes.

Também é possível obter biografias, cronologia de trabalho, alguns textos críticos e outros de contexto histórico e jogos de memória a partir de algumas imagens criteriosamente selecionadas. Todas as obras são acompanhadas de fichas técnicas precisas. Imperdível! www.itaucultural.com.br

Bibliografia

  • O Brasil dos Viajantes.Ana Maria Belluzzo. Museu de Arte de São Paulo.Metalivros. Lojinha do Masp:Tel.: (11) 5085-1300
  • Dicionário das artes plástica no Brasil. Roberto Pontual. Civilização Brasileira.
  • História geral da arte no Brasil.Walter Zanini (org.) Instituto Walther Moreira Salles. Tel.: (11) 3825-2560 – Site: www.ims.com.br
  • Cadernos de História do Brasil. Instituto Cultural Itaú. Material disponível para consulta no local.Tel.: (11) 3268-1700

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